MEDOS INCOMUNS E PERIGOSOS PARA A SAÚDE – III
A utilização de exemplos clínicos que permitam avaliações sobre as chamadas fobias estranhas é fundamental para mostrar a importância do trabalho desenvolvido pela Psicanálise na compreensão desses problemas
FOBIAS ESTRANHAS E SEUS POSSÍVEIS NÓS
Torna-se cada vez mais imprescindível discorrer e dividir com todas as pessoas algumas reflexões a importância da fobia no trabalho desenvolvido pela Psicanálise. Para tanto, é fundamental usar exemplos clínicos que permitam análises e avaliações sobre fobias ditas estranhas. As fobias de botões e as fobias de balões são consideradas em nossos dias e no Brasil como fobias raras. Por isso, é interessante usar ocorrências clínicas para demonstrar o que está em jogo nesses casos.
O tema da fobia se apresenta como um desafio para a definição de uma entidade clínica: neurose, psicose ou perversão. Esse desafio se manifesta pelo momento estrutural do sujeito. É muito mais um desafio relacionado ao momento estrutural, porque tais manifestações decorrem das tentativas da pessoa construir para si mesma qual será a sua posição em relação ao seu objeto libidinal. É importante entender que com isso, nesses casos, ainda não se solidificou uma posição que permita a tais pessoas definirem seu fantasma inconsciente, que lhe servirá como um DNA de sua relação de satisfação com o “mundo”.
Vale esclarecer que quando se refere a momento é no sentido de salientar que as variáveis que constituirão a sua vida relacional já estão dadas. Porém, ainda não estão postas em uma disposição que organize certo estilo de satisfação desse sujeito. Essa organização será estabelecida segundo determinadas leis que a linguagem oferece a todos os seres falantes.
Freud se utilizou de um caso clínico de uma criança de 5 anos, o “pequeno Hans”, para tentar nos ensinar a matriz de todas as fobias. Assim, esse caso passa a ser o modelo de todas as fobias, desde que sigamos uma leitura psicanalítica. Tratava-se de uma criança que tinha medo de sair às ruas (agorafobia) porque receava ser mordida por cavalos (fobia de animais). Freud disse que o fato de ter medo de ser mordido pelos cavalos não permitia que o classificasse de agorafóbico.
Hans estava mergulhado na fase fálica e confrontava-se com a angústia de castração, através da falta de pênis na mãe. Em consequência, desenvolveu uma fobia por cavalos no lugar de estruturar a sua neurose. Freud justificou que sua fobia era um sintoma, porque houve um deslocamento, e não uma condensação, do pai para o cavalo e se trata de um momento de espera da solução edípica, ou seja, num momento pré-edipiano. Hans encontrava-se numa triangulação edípica ainda frouxa, devido à mãe não dar lugar ao pai junto a ele, somado a um pai que, por sua vez, não fazia grandes esforços para fazer valer a sua função paterna, contentando-se em ser mais amigo do que um pai.
A análise possibilitou dar um lugar ao Édipo e construir uma fantasia que organizava seu Eu em torno do representante fálico, que se expressava num sonho com o encanador que vem consertar a banheira. Freud concluiu que Hans estava curado de sua fobia, e que, em relação ao seu desejo de saber, apreende que cada saber construído é um retalho e que deixa atrás de si um resíduo: “Nosso jovem investigador simplesmente chegou um pouco cedo à descoberta de que todo o conhecimento é um monte de retalhos, e que cada passo à frente deixa atrás um resíduo não resolvido” (Vol. X Obras Completas).
A análise dos casos que se seguem irá dar chance de se reverem várias noções psicanalíticas a respeito do que Freud e Lacan desenvolveram. O caso Hans, que apresentou uma fobia de animais, é bastante comum. Por isso, é mais relevante discutir, ainda, dois casos que certamente são mais raros. Um se trata de uma apresentação feita na França, intitulada “A fetichização de um objeto fóbico”, e o outro é um caso de fobia por bexigas.
FOBIAS VERSUS FETICHE
O botão é o seu pequeno pênis, que sua mãe o provoca dizendo que é o seu pequeno botão, passagem metonímica de pênis a botão. Aos 6 anos, a mãe lhe pediu para desabotoar seu vestido pelas costas. Foi a primeira vez que sentiu a excitação sexual. Ficou perturbado e inseguro, o que gerou um enrubescimento, tremores nas pernas, mas sempre estava pronto para atender essa demanda da mãe. Aos 7 anos, foi à praia com uma camiseta com um botão e seus amigos zombaram dele.
O botão tornou-se objeto de amor, de atração irresistível, objeto de busca frenética, objeto aparentemente eleito do desejo. Mas, ao mesmo tempo, objeto de horror, repulsão, terror, aversão insuperável, de má sorte, objeto de morte.
Esse objeto, o botão, o transtornou a ponto de ir fazer análise. Ao ver tal objeto sobre a mesa, ao imaginar entre os lábios ou até mesmo ouvir a palavra botão lhe causavam enorme asco, repugnância e ódio. Porém, existia uma modificação em sua relação com esse objeto, desde que o objeto se multiplicasse, viravam botões, aí se transformava em objeto do desejo. Todos os botões tinham que ser de osso ou de pérola e deviam estar preenchendo o vazio da casa. Se não fosse assim, não tinham a menor graça para ele. Sobretudo, deveriam estar sendo “vestidos” por uma mulher para lhe provocar a excitação erótica. Essa contradição no objeto foi analisada num artigo de 1938 por Freud, que diz que há uma constituição simultânea de um fetiche e de uma fobia. Assim, o mesmo objeto exerce atração e horror, busca e evitamento.
As vestimentas que tinham muitos botões o atraíam e as que tinham oito valiam mais dos que as que tinham sete botões. Quanto mais, melhor! Isso lhe causava grande excitação sexual. Mas os botões tinham que ser rigorosamente idênticos, da mesma cor, tamanho, forma, sem nenhuma mancha que os diferenciasse, e não podiam ser recobertos de tecido, tinham que ser dispostos da mesma maneira, e, sobretudo, não podia faltar nenhum. Se assim fosse, sentia grande prazer em contemplá-lo com o olhar, quanto tempo fosse possível. Caso contrário, o que tinha sido motivo de atração se transformava em objeto de extrema repulsão.
Seu pai foi, praticamente, escolhido pelo seu avô materno que o aceitou quando tudo levou a crer que o pretendente não poderia ter filhos, pois o avô havia expressado, explicitamente, que não queria que a sua filha fosse mãe. Ou seja, nascido de um pai proposto como ausente e de uma mãe que deveria ficar carente, segundo o desejo do avô materno.
O paciente sempre estava doente: resfriados, crises de bronquite, muitas complicações infecciosas, que eram, segundo palavras da mãe, verdadeiros calvários. Doenças que tinham a significação de preencher a mãe no lugar do marido e de seu pai. Tinha febres e constipação para fazer sua mãe vir cuidar dele e passou a ter ereções nessas ocasiões. Assim, ele é um pênis em ereção! Era um momento eufórico, em que ele era o sonho do desejo da mãe, a metonímia de sua carência, mas, por isso mesmo, passou a viver momentos de angústia, pois se via preso a esse órgão que denunciava seu desejo, órgão que é chamado de pequeno botão pela mãe e pelo pai, que ele o escuta dizendo colocar o botão na casa que associou com a relação sexual. Vale lembrar que as doenças somáticas podem se desenvolver no intervalo das crises de fobia, principalmente quando a fobia é recalcada por tratamentos medicamentosos ou por condicionamentos que forçam o desaparecimento do sintoma fóbico sem elaborar seus conflitos. Assim, em muitos casos, fica claro que a fobia protege a pessoa do desencadeamento de doenças somáticas. Pois a fobia põe o corpo em suspensão por não enodá-lo à palavra e ao trauma sexual.
FOBIA POR BEXIGA
Esse caso se refere a uma paciente mulher, que procurou análise, ao final da adolescência, por sofrer de ataques de pânico. Após uma intervenção do analista, ela rememorou uma cena infantil, a qual representou a sua primeira conscientização de excitação sexual, ao espiar pela fresta de uma janela os vizinhos fazendo sexo. Desenvolveu uma culpa que não a inibiu quanto à tentação de ver novamente. Dessa forma, a cada oportunidade, voltava para ver e depois se sentia culpada. No auge desse interesse sexual, passou por um grande susto associa- do a outra cena sexual, dessa vez entre uma criança e um adulto da família. O susto foi devido ao barulho do estouro de algumas bexigas, provocado por uma criança mais velha que espetava as bolas de gás. Ainda sob o impacto do susto, vê a cena sexual e conecta os três elementos: ver o ato sexual, ver a sedução e estouro de bexigas.
Podemos dizer que aí se deu o primeiro elemento para a construção da sua fantasia (cena primária): a per- furação de bexigas por um garoto foi a cena sexual violenta, que acarretou na perda da forma (imaginário corpo), ou seja, o seu corpo numa experiência sexual pode desaparecer, assim como o corpo da bexiga desaparece por ser ameaçado pelo trauma sexual que aniquila, dilacera, sidera o seu corpo/Eu. A palavra não tem ação de corte e costura sobre a sobreposição do trauma sexual sobre o corpo.
Passou a ter muito medo de bexigas, e desenvolveu uma série de crises respiratórias, que se intercalavam com as crises de fobia. Essas crises respiratórias são o espelhamento das bexigas perdendo o ar e sua forma.
Desde que nasceu, sua mãe tinha a saúde debilitada, o que não permitiu uma constância nem um processo de presença e ausência para constituir um objeto que pudesse investir a sua libido para formação do seu Eu. Esse fato se associou a um pai que, ao tentar preencher a falta da mãe, se ocupando da filha, perdeu a sua virilidade.
Ela, desde criança, precisava se preocupar com a saúde da mãe, e elegeu ficar no lugar de objeto que preenche a mãe, pois se separar poderia acontecer o pior, aos moldes da placa giratória da fobia descrita por Lacan. Em consequência disso, desenvolveu uma grande dificuldade de lidar com separações.
Assim, o medo de bexiga solucionava, de forma imaginária, sua angústia de castração, que vivia através das bexigas que desapareciam definitivamente, medo que desenvolveu em relação a sua mãe. A bexiga representava o perigo da perda. Portanto, a inibição em relação às bexigas era uma maneira de colocar o agente da castração a distância. Isso gerou uma forte inibição de ir a festas de crianças, a parques de diversões, no Brasil e no exterior, e a qualquer lugar que possa ter bexigas. Um sonho foi paradigmático durante a cura dessa paciente, onde ela apreende que oferece seu corpo para satisfazer a demanda do Outro.
Há um aspecto ligado à organização dos espaços, que se repete nesses três casos. É por isso que Freud apresentou o pequeno Hans como um paradigma da fobia. Esse aspecto é que os círculos de barbantes RIS não giram no sentido levogiro, anti-horário, como é esperado numa solução neurótica. Eles fazem um giro dextrogiro, no sentido do relógio, o que faz o círculo do Real (trauma) superar o do Imaginário (corpo), se distribuindo da seguinte maneira: RIS. O Real do trauma, tendo se sobreposto e superado ao Imaginário do corpo, o coloca de escanteio e promove uma limitação para o sujeito de se movimentar no espaço, o que é evidenciado pelos sintomas fóbicos e faz com que o Simbólico da palavra (corte), na confecção do nó de três, incorra num erro de alternância do nó. O impedimento imaginário do movimento no espaço, que se apresenta nos três casos, permite que o significante circule e seja recalcado, para vir outro em seu lugar, preservando, assim, certa dimensão do registro Simbólico. A castração, incidindo sobre o espaço imaginário, trará como consequência uma redistribuição dos gozos, que serão apertados e configurados diferentemente.
Assim sendo, não se pode falar de um nó borromeano na fobia, e sim de um momento de permutações do Real, do Simbólico e do Imaginário, o que pode elucidar o que tornam confusas e até incompreensíveis certas crenças dos fóbicos. Essa forma de distribuição fica evidente caso se aplainem os nós borromeanos em um desenho numa superfície plana. Existem diversas maneiras de representar os nós nos barbantes: no plano, em 3D, com as retas infinitas etc.
Cada círculo representa um registro e é caracterizado por diferentes propriedades: ex-sistência (Real), furo (Simbólico) e consistência (Imaginário): ex-sistência é que cada registro ex-siste ao outro, a ex-sistência é o que está fora da consistência, é o que da consistência faz furo. Para que haja ex-sistência tem que haver furo para se fazer uma imagem, somos sujeitos porque não somos seres totais, há um furo no ser.
FURO E CONSISTÊNCIA
Para haver um furo, tem que ter uma consistência em volta. Todos os registros são furados e, por isso, um nó entre eles é possível. A consistência se libera do Imaginário. Podemos dizer que cada registro é homogêneo a si próprio, dessa feita cada um tem sua própria consistência. Em todos os três casos há uma angústia frente à castração imaginária e uma resolução imaginária via metonímia (deslocamento), que resulta na fobia.
A resolução imaginária também se expressa pelo componente voyerista que está presente nos três casos: Hans olha as calcinhas, o sexo da irmã; Jean olhava a mãe e depois as mulheres com botões; no outro caso, olhava repetidamente a cena primária dos vizinhos e depois a cena de sedução na festa que vemos que para o psicanalista fazer um diagnóstico de fobia, ele precisará agrupar certos elementos que se apresentarão numa relação que determinará esse diagnóstico. No caso da fobia notamos como a pessoa irá atribuir ao objeto fóbico o valor de significante e, com isso, fazer um deslocamento de uma representação para outra. A perversão é enquanto fixado na posição de objeto imaginário que construirá sua relação com o mundo.
Tal uso do significante será encontrado em todas as fobias, das mais frequentes às mais raras, das mais intensas às mais leves, das mais resistentes às mais fáceis de serem elaboradas. Não diria o mesmo a respeito da bizarria dos sintomas fóbicos, já que como dizer que tal sintoma não seja bizarro?
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