CRIMES, TESTEMUNHOS E FALSAS RECORDAÇÕES
Podemos acreditar no relato de alguém que presencia um crime? Se a testemunha tem boa memória, tendemos a confiar em suas observações, mas os mecanismos que elaboram as lembranças pedem cautela
Jura dizer a verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade? “Juro.” Apesar da fórmula ritual, em geral estamos dispostos a acreditar nos relatos de uma testemunha ocular com boa memória e, obviamente, desinteressada, inclusive nos detalhes relativos às roupas e ao aspecto físico da pessoa que cometeu o delito. Mas a psicologia cognitiva ensina que a mais sincera das testemunhas pode se enganar. Não se trata de uma questão de boa-fé, mas de um problema ligado aos mecanismos que elaboram as recordações.
Entre juízes e magistrados é disseminada a convicção de que a psicologia diz respeito, quase exclusivamente, aos transtornos psíquicos. A disciplina é associada ao uso de testes psicológicos ou terapias, instrumentos para diagnosticar e tratar problemas psicológicos no nível individual ou sistêmico. Assim, o psicólogo só é solicitado como especialista quando o juiz deve conhecer características da personalidade, desenvolvimento intelectual e o eventual tipo de psicopatologia do réu.
Mas, na realidade, um campo da psicologia pode dar contribuições fundamentais a certos aspectos da atividade jurídica e de investigação, como o interrogatório e o testemunho: o estudo da memória e dos processos cognitivos. Não por acaso, há duas associações científicas de psicologia e direito – uma europeia e uma americana – formadas por pesquisadores que se dedicam à interface entre psicologia e aspectos jurídicos.
Para se ter uma ideia da importância da psicologia cognitiva nessa área, basta mencionar que, nos Estados Unidos, durante a administração Bill Clinton, alguns estados modificaram a lei seguindo resultados de pesquisas realizadas no campo cognitivo-jurídico. Essas pesquisas apontaram problemas no modo pelo qual era realizado o lineup, o procedimento que tenta identificar culpados mediante a exibição de retratos ou pessoas. O típico lineup simultâneo leva à identificação de um dos indivíduos mostrados, ainda que o culpado não esteja entre eles. As falsas identificações chegam a atingir níveis muito altos, em torno de 70%.
A psicologia cognitiva é importante para avaliar os testemunhos porque estes se baseiam na memória. Compreender como funciona a memória, quando uma recordação é correta ou incompleta, errada ou inteiramente falsa, permite estabelecer se um testemunho é exato e se pode ser utilizado como prova.
Objeto de investigação dos gregos antigos e dos romanos, o estudo científico da memória só foi iniciado no final do século XIX, com Hermann Ebbinghaus. Apesar disso, seus mecanismos são bastante conhecidos, graças ao surgimento da psicologia e da neuropsicologia cognitivas. Sabemos hoje que a memória humana não é composta de um sistema único, mas de vários, parcialmente independentes. Entre os principais sistemas estão a memória “semântica”, de longa duração, que contém informações relativas aos fatos e aos conceitos, e a “episódica”, também de longo prazo. Nela estão contidos os dados sobre eventos singulares, como o local e o momento em que aconteceram. Lembrar de uma lista de palavras apresentadas uma hora atrás, de um roubo ou do rosto do culpado são tarefas da memória episódica. A parcial independência entre essas duas formas de memória foi formulada e demonstrada por Endel Tulving em uma série de pesquisas realizadas nos anos 70. Recentemente, essa tese foi confirmada por estudos neuropsicológicos sobre pacientes que sofrem de uma forma de déficit seletivo (nos quais só uma pequena área cerebral estava lesionada ou que só tinham alguns aspectos comportamentais delimitados comprometidos).
Estudos na área da psicologia e da neuropsicologia cognitivas possibilitam a compreensão do funcionamento de um dos aspectos humanos mais opacos e difíceis de observar a mente. As experimentações feitas em pessoas normais, os estudos de casos singulares de pacientes neurológicos com problemas específicos e a técnica de imageamento cerebral permitiram formar um quadro aprofundado do funcionamento da memória. Além da memória episódica e da semântica, as investigações delinearam o funcionamento de uma memória de trabalho de curta duração, de uma memória autobiográfica de longa duração, de uma memória explícita e de uma implícita.
Esses sistemas são permeáveis entre si, os conteúdos e processos de um informam os conteúdos e processos dos outros. A interação entre as memórias episódica e semântica é crucial para o testemunho. Envolvendo a recordação de um ou mais eventos específicos, um testemunho recorre à memória episódica e segue suas regras de funcionamento. Várias pesquisas demonstraram, porém, como o conteúdo dessa memória é influenciado por elementos presentes na memória semântica e como os conhecimentos gerais estão ativos no momento em que se assiste à cena ou se tenta recordá-la.
Na literatura científica, há exemplos interessantes que mostram como a ativação do conteúdo da memória semântica influi e modifica o conteúdo da memória episódica. Quando um estudante universitário é instado a recordar as notas que recebeu nos exames de meio de semestre, em geral lembra das mais altas ou mais baixas, dependendo da nota final obtida. Se a nota final for alta, as intermediárias recordadas serão maiores que na realidade o foram, se for baixa, serão recordadas notas menores que as efetivamente obtidas no meio do semestre.
Um efeito similar, embora mais extremo, foi descoberto por uma pesquisa recente sobre a memória autobiográfica. Os participantes foram informados que, no ano em que nasceram, várias maternidades tinham música nos berçários. A informação, apesar de falsa, teve o efeito de fazê-los “recordar” a música. Fenômenos como esse se devem ao fato de que, no momento da recordação, os dados mais recentes da memória são os mais facilmente ativados. Estes interagem e passam a fazer parte do conteúdo da memória episódica ou autobiográfica, produzindo modificações relevantes na recordação originária, como no caso das notas, ou criam lembranças inexistentes, como no caso da música no berçário.
Tais resultados sugerem que a memória não é comparável a um filme ou a uma sequência de fotografias, que poderiam ser reproduzidas e revistas à vontade e sem que seus conteúdos sofressem qualquer alteração. A memória não é reprodutiva. Ao contrário, está articulada a uma série complexa de processos – entre os quais aqueles relativos à atenção e à percepção, cujo papel é preponderante – mediante os quais informações são codificadas de modo fragmentário e distribuídas em várias áreas do cérebro. O hipocampo parece ser responsável pelos processos de codificação. Algumas áreas do lobo parietal e temporal seriam decisivas na representação de informações a longo prazo. Caberia ao lobo frontal planificar e organizar os processos ativos no momento da codificação e da recordação.
A informação codificada, portanto, jamais será a cópia exata do que foi visto ou do que ocorreu. A recuperação efetuada pela memória pode ser o resultado de processos de reconstrução, que reativam e criam informações de natureza episódica e semântica relevantes para o que se deseja lembrar. Essas informações são integradas entre si e a “recordação” é o resultado final dessa integração.
Assim, no momento em que se testemunha um assalto, o fato não é codificado como se fosse uma cena coerente e completa em si mesma. Codifica-se, sim, o fato de que um assalto está ocorrendo, processo que ativa na memória semântica as informações relativas ao que ocorre normalmente durante um evento desse tipo. Além disso, são codificados elementos dispersos relativos ao lugar, aos objetos e às pessoas, mas nem tudo é registrado, e muita coisa se perde. Se houver uma arma, por exemplo, a atenção será concentrada nela e suas características provavelmente serão codificadas de forma clara (no que se conhece como weapon effect), em detrimento de outros elementos, sobre os quais a atenção não se detém. Muitas vezes a testemunha sabe reconhecer perfeitamente a arma do delito, mas não consegue identificar quem a segurava, ainda que o lineup seja conduzido de forma correta.
A informação codificada permitirá à pessoa recordar que presenciou um assalto, reconhecer a arma e, talvez, identificar outros elementos da cena. Mas jamais será possível extrair da memória a recordação completa da cena, como se fosse um filme. Dado que a memória é sempre reconstitutiva, ainda que em graus variáveis, uma testemunha nunca terá o relato exato do ocorrido.
Outro aspecto importante é que o próprio ato de rememorar pode modificar o conteúdo daquilo que se recorda e que será lembrado mais uma vez. Pesquisas recentes demonstram como a lembrança de um elemento reforça sua representação na memória, inibindo e enfraquecendo gradualmente a representação de outros elementos.
Um exemplo claro da interação entre as memórias episódica e semântica é a influência exercida por estereótipos e preconceitos sobre a lembrança episódica. Um estereótipo é uma forma de conhecimento, ou melhor, de convicção, estruturada de forma rígida e, portanto, dificilmente modificável, mesmo que sejam apresentadas informações contrárias a ela. A presença de estereótipos em nossa consciência está vinculada à tendência de nosso sistema cognitivo, em particular aos processos de raciocínio, de privilegiar a rapidez e a eficiência, sacrificando às vezes a precisão ou a verdade.
Nos Estados Unidos é comum entre brancos o preconceito de que os jovens negros são criminosos. Quando há um delito, costuma-se deduzir que o infrator seja negro. Suponhamos que uma pessoa branca presencie um assalto e vislumbre o culpado. Se ela compartilhar do preconceito, este será ativado de modo quase automático na memória no momento em que assistir à cena ou quando tentar recordá-la. O conteúdo do preconceito contaminará assim a lembrança que se tem do ladrão. Ao prestar depoimento, ela provavelmente “recordará” um infrator negro e jovem, ainda que não o tenha visto de forma clara.
A recordação de um negro no papel de ladrão não é um sinal de má-fé ou de confusão mental, mas produto da ativação inconsciente de informações prévias. Esse procedimento de acesso aos dados contidos na memória semântica e sua interferência nas informações da memória episódica é responsável também por outras formas de recordações equivocadas (e, portanto, de depoimentos errados).
Vimos até aqui, que oconteúdo de um testemunho depende da codificação e da recordação e que um papel importante é desempenhado nesses processos pela interação entre os conteúdos das memórias semântica e episódica. Mas o conhecimento que a testemunha possui não é o único fator que pode modificar a recordação. Uma importante fonte de alteração é a informação verbal fornecida durante ou após um interrogatório ou uma entrevista investigativa. Descobriu-se, por exemplo, que se os interrogatórios contêm perguntas que sugerem a resposta ou apresentam versões incorretas dos fatos, novos conteúdos podem ser incorporados na recordação do evento original (missinformation effect). Isso torna problemático decidir se o testemunho é verdadeiro ou não. Falar de pessoas ou objetos que não estavam presentes na cena originária determina um significativo aumento na recordação deles, como se de fato tivessem participado. Sugestões sutis, como a substituição de um artigo indefinido por um definido (“era o homem” em vez de “era um homem”), são capazes de alterar substancialmente a lembrança: é mais provável que as pessoas se lembrem da presença de um homem quando o artigo é definido. Esse efeito é criado pelas informações ativadas automaticamente na memória. Perguntar “era um homem” não fornece dados precisos, ao passo que indagar “era o homem/ativa a ideia de que um homem estava de qualquer forma presente, e a sua presença é codificada na memória.
São comuns os interrogatórios realizados de forma incorreta ou os procedimentos de investigação em que são apresentados fatos e dados, sobre os quais a testemunha nada falou, como se fossem verdadeiros. O resultado de casos registrados e analisados é sempre o mesmo: a testemunha acaba por aceitar os conteúdos sugeridos e, com o tempo, passa a considerá-los parte da recordação do evento originário. O fenômeno é evidente sobretudo nos interrogatórios e nas entrevistas investigativas realizadas com crianças. Quando os inspetores sugerem informações, elas inicialmente negam, mas depois cedem às insistências e aceitam o que lhes é dito.
Além disso, a pressão da conversa durante a entrevista também pode levar as pessoas a criar falsas recordações. Não é difícil encontrar casos em que a testemunha é instada a afirmar falsidades, insistindo-se quando ela nega e estimulando-a, de modo mais ou menos explícito, a descrever o fato como se este tivesse realmente ocorrido.
Um exemplo que gosto de citar é o do suposto abuso sexual sofrido por uma menina. O psicólogo que conduzia a entrevista solicitou que esta fosse filmada. A menina recusou, mas o psicólogo insistiu e ela por fim aceitou a presença de uma câmera, prosseguindo seu relato e informando quem teria sido e como se chamava a pessoa que abusara dela. Essas informações foram repetidas pela menina em várias investigações, após meses e anos.
O estudo mais recente sobre o tema demonstra que, uma vez induzidas a falar e por vezes a inventar detalhes falsos sobre um fato não ocorrido, um percentual elevado de crianças recorda, após muito tempo, do conteúdo dos próprios relatos, como se fossem parte de experiências realmente vividas, e só de forma hesitante conseguem distinguir a realidade da fantasia. Em suma, o conteúdo da narrativa pode se tornar realidade. Um fenômeno similar também foi observado entre adultos, mas no caso das crianças os percentuais foram altíssimos. Mais de 80% afirmam que o conteúdo do narrado durante a conversa era parte do evento vivido.
Infelizmente, os processos responsáveis por tais erros são latentes e escapam à consciência dos indivíduos, seja dos que formulam as perguntas, seja dos que devem responder. Assim, uma testemunha pode, de boa-fé, relatar coisas que não são verdadeiras e modificar bastante o conteúdo dos episódios que narra.
Vimos como o conteúdo da recordação de um evento ao qual se assistiu pode ser alterado. Nesses casos, porém, são modificadas apenas partes da recordação de um fato que, de qualquer forma, ocorreu e foi testemunhado pela pessoa.
Mas, durante a década passada, as pesquisas demonstraram como é relativamente fácil ocorrer a criação de lembranças inteiramente falsas.
A partir de um estudo realizado em 1995 pela equipe de Elizabeth Loftus várias pesquisas mostraram como as pessoas criam recordações autobiográficas falsas. Em um desses estudos, universitários foram informados de que, quando crianças, haviam se perdido em um centro comercial, algo que, de fato, não ocorrera. Para dar mais peso, o episódio era contado a eles por um irmão ou irmã mais velhos, devidamente instruídos pelos pesquisadores. Um certo número de estudantes, após ouvir o relato, disse “recordar’ o evento, enriquecendo-o com detalhes e elementos novos. Essas recordações eram verdadeiras ou falsas. Provavelmente falsas, já que, segundo a família, essas pessoas jamais haviam se perdido num centro comercial.
Como uma pessoa pode recordar eventos que jamais ocorreram? Uma pesquisa recente que realizei com alguns colegas mostra que o simples ato de imaginar um evento pode levar à criação de lembranças autobiográficas falsas. Solicitamos que estudantes imaginassem ou lessem sobre dois acontecimentos. Um destes era um fato comum: ir ao dentista para extrair um dente. O outro, um evento que jamais poderia ter ocorrido aos pesquisados, a extração de um fragmento da pele do dedo mínimo feita por uma enfermeira, procedimento inexistente no país dos participantes. Os estudantes foram então solicitados a fechar os olhos e imaginar a si mesmos aos 6 anos, quando estavam no dentista ou no consultório médico. Deveriam imaginar a cena com detalhes: pessoas que os acompanhavam, roupas, cores, conversas, o tempo transcorrido e o que haviam sentido e pensado naqueles momentos.
Os resultados foram impressionantes. O processo imaginativo, que durava menos de dez minutos, levou muitos deles a aumentar significativamente a certeza que tinham dos eventos, e não só no que se refere à extração do dente, que pode ter lhes acontecido, mas também à remoção da pele, que, como sabemos, é falsa. Cerca de 25% afirmaram lembrar da intervenção no dedo. A imaginação ´permitiu que criassem uma lembrança relativamente completa, ainda que incorreta, de um evento que jamais ocorreu. As falsas lembranças, além disso, eram detalhadas e difíceis de distinguir das verdadeiras. Ouvimos, por exemplo, relatos como este: A escada era cinza, os degraus reluziam. A enfermeira era alta e loira. Ela pegou em minha mão, mas não senti nada. Minha mãe me comprou balas, pois eu me comportei bem”.
A importância da imaginação já havia sido enfatizada por outros pesquisadores. Seu papel pode ser explicado fazendo-se referência, de um lado, a seus efeitos sobre a memória, de outro, ao fenômeno do chamado “monitoramento da fonte de informação”(source monitoring). Há muito se estudam as imagens mentais, e hoje algumas de suas características são relativamente bem conhecidas. Sabemos, em particular, que elas têm aspectos de natureza representativa e funcional em parte similares aos da percepção, isto é, ao conteúdo mental derivado de um ato de percepção visual. Simplificando processos que são na realidade muito complexos, pode-se dizer que o fato devermos uma xícara envolve a criação de uma imagem mental do objeto. Durante certo tempo, a representação conserva algumas de suas características físicas, como cor, luminosidade, e detalhes.
Em geral, para sabermos se a xícara criada na mente é fruto da imaginação ou foi mesmo vista, empregamos uma série de processos de natureza metacognitiva (mecanismos de avaliação relativos aos processos cognitivos), por meio dos quais as características da xícara mental” são confrontadas com as características de uma imagem mental e com as de uma percepção. Essa série de processos metacognitivos é definida como source monitoring, já que permite distinguir a fonte da qual provém a informação que se tem na mente. Imagens mentais detalhadas e vívidas podem enganar os processos de source monitoring e levar a confundir algumas representações mentais com objetos vistos de fato. “Enganos” similares impedem às vezes sabemos se a cena que se tem em mente foi vivida ou sonhada.
A imaginação não é o único meio de criação de falsas recordações autobiográficas. A intervenção de outras pessoas (terapeutas, parentes, entrevistadores) pode levar uma pessoa a acreditar que viveu certo acontecimento e, em seguida, recordá-lo, ainda que isso não seja verdade. Alguns estudos mostram como a interpretação dos sonhos ou a hipnose levam alguém a acreditar que viveu um fato e a desenvolver a lembrança correspondente a ele.
Para estudar o efeito da técnica hipnótica da regressão sobre a memória autobiográfica, Nicholas P. Spanos e colaboradores solicitaram aos seus pesquisados que retrocedessem no tempo até os primeiros meses de vida. Nesse ponto, foram instados a visualizar o brinquedo colorido suspenso em seu berço. Após esse procedimento, cerca de 30% diziam recordar do brinquedo, descrevendo-o com detalhes. As pessoas do grupo de controle, que não foram instadas a visualizar o brinquedo, não eram capazes de recorda-lo.
Estes exemplos sugerem que é relativamente fácil criar falsas recordações autobiográficas. E de fato é. Mas a maioria das pesquisas sobre o tema revelou que cerca de 25% a 30% dos participantes criam uma recordação falsa, enquanto os outros parecem relativamente imunes. Esse dado, por um lado, suscita a pergunta, quais são as características dos indivíduos que criam lembranças falsas e em que se distinguem dos outros? Por outro, indica que a criação de recordações autobiográficas falsas ocasionadas pela intervenção externa não é a norma. Não se trata, porém, de uma exceção, já que o percentual envolve cerca de um terço da população investigada, o que não é pouco
Vale notar que o percentual citado refere-se à criação de recordações falsas de natureza autobiográfica, isto é, de situações em que a pessoa recorda como teriam ocorrido fatos que na verdade jamais aconteceram, ao menos no período de tempo especificado. Mas vimos que as pessoas também criam lembranças falsas na memória episódica não autobiográfica. O exemplo mais simples e claro é o da recordação de uma lista de palavras como sonho -noite – travesseiro – cansaço – cama, todas associadas à uma palavra ausente da lista: “sono”. Ora, os vários experimentos realizados com essa técnica confirmaram que a palavra sono é, em geral (até 80% dos casos, recordada como se tivesse sido apresentada. Isso indica como o fato de recordar coisas que não ocorreram pode ser um fenômeno muito difuso, que não se limita a um percentual relativamente baixo da população.
Parece razoável perguntar se, dada a facilidade com que criamos recordações erradas ou falsas, é possível acreditarem um testemunho. Seria digno de um furo jornalístico dizer que não, mas nosso propósito não é esse.
Os fenômenos bizarros que descrevemos, segundo os quais um indivíduo pode, de boa-fé, recordar eventos jamais ocorridos, suscitam reflexão e sugerem prudência na avaliação da veracidade do relato de uma testemunha. Cabe notar, porém, que a memória humana é exata o suficiente para permitir ao homem sobreviver num mundo e numa sociedade complexas. A memória, em geral, é um instrumento no qual, com razão, confiamos no dia a dia.
A testemunha muitas vezes recorda de modo relativamente preciso alguns aspectos do que ocorreu. Mas a memória, num depoimento, não é formada apenas por conteúdos esquemáticos e dados de base. Trata-se de uma memória de detalhes, às vezes minuciosos (“O senhor lembra se o chapéu do ladrão tinha aba?), e essa memória pode ser mais facilmente manipulada que a memória cotidiana. É preciso, pois, extrema cautela.