UM PARADOXO NA FORMA DE DESEJO E SUSPENSE
Em Ex-Machina: Instinto Artificial, o diretor Alex Garland levanta questionamento sobre o sujeito a partir da visão pulsional. A pulsão que está para além do instinto e traz inscrita nela inúmeras variáveis
Filme britânico dirigido e roteirizado pelo estreante diretor Alex Garland, já lança com seu título aqui no Brasil uma questão no mínimo dúbia ao unir o tema do instinto ao artificial, criando, assim, no título, um paradoxo. Lembrando que em Psicanálise não falamos do sujeito a não ser a partir da visão pulsional, a pulsão está para além do instinto e traz inscrita nela variáveis múltiplas. O filme surpreendeu e ficou com o Oscar de Melhores Efeitos Visuais
Levado por um suspense que vai se apresentando aos poucos, o espectador se vê diante de questões que animam as discussões atuais e pesquisas sobre um futuro ficcional, que se constrói com as descobertas científicas contemporâneas. Ao mesmo tempo remete, de maneira muito pontual, ao que nos faz pensar nas fronteiras da subjetivação. Onde estará a precisa linha que marca a construção de um aparelhamento psíquico próprio do ser humano? Nessa construção, que aspectos não poderão deixar de ser observados? h0ode me dar um exemplo de consciência… que exista sem a dimensão sexual? (…) A consciência pode existir sem interação?
Conheceremos, então, a sedutora personagem, Ava, representada pela recentemente oscarizada atriz Alicia Vikander, trazendo, ainda, nos papéis principais o ator Domhnall Gleeson (como Caleb Smith), que também foi muito elogiado por sua participação no já consagrado The Revenant, e Oscar Isaac como Nathan. O file usa e abusa da tensão sexual não explícita, levando não somente o ingênuo e confuso Caleb a interrogações acerca do lugar do desejo. Em tempos de discussões mais aprofundadas sobre sexo virtual, relações amorosas via rede, solidão compartilhada e novos artefatos excitantes para a atividade sexual, ele cai como uma eficácia inquietante para vivências já corriqueiras. Foi noticiada recentemente, deixando uma grande parcela de intrigados, a confecção de bonecos muito iguais a uma pessoa, cuja finalidade é tão somente para atividades sexuais.
O que se busca com o desejo? A relação de Caleb com Nathan é inicialmente a de um grande fã com seu ídolo, compara conversando com Ava, Nathan a Mozart da ciência da computação. Aos poucos, verá, como logo o adverte Ava, aproveitando-se de uma queda de energia, quando então não podem ser observados, que ele não é seu amigo e que também não é confiável. A rotina dos dois, Nathan e Caleb, entre conversas e o desenvolvimento da pesquisa, vai em uma tensão crescente, acompanhando e dando o ritmo de suspense ao filme. Interessante que em uma conversa dos dois sobre o comportamento de Ava, Caleb diz que ficou intrigado com o fato dela ter feito uma piada, e que isso foi até aquele momento o sinal mais evidente pra ele de ter ali uma IA (Inteligência Artificial)m segundo sua interpretação, porque ela só poderia fazer isso consciente da própria mente e também da minha. É interessante, então, lembrar do quanto Freud destacou o complexo trabalho psíquico envolvido em um chiste, dos mais elaborados, a ponto de dizer que: “Na brincadeira, se pode dizer tudo, até a verdade”. E será exatamente isso que Ava faz com sua brincadeira de devolver a Caleb sua própria fala sobre querer ver a escolha que faria. De maneira muito intensa, a partir desse momento, ela ganha a cumplicidade do seu interlocutor.
Ava é uma aula de sedução, não poupando nada no uso de tudo aquilo que se constrói culturalmente, como o que faz uma mulher: uma sedutora em potencial A primeira vez que ela se veste se parecendo, então, completamente com uma humana, é cheia de sinais e significados: embora longe dos artefatos de mulher fatal, sua aparência frágil e meio recatada provoca, como ela mesma observa, uma exaltação dos sentidos sexuais em Caleb.
O diálogo entre Caleb e Nathan sobre a questão de gênero e sexualidade presentes em Ava, intelectualmente, é um dos pontos altos do filme entre a importância da sexualidade para o processo de busca de interação, até ao fato de que não sabemos o que compõe o “programa” da nossa orientação sexual. Jogadas, como em um pingue-pongue entre dois grandes mestres, que faz com que nossos olhos não acompanhem o trajeto da bola, conquistam o já atordoado espectador, que só poderá elaborar em uma posteriori bastante amplificado pelas impressões do que se verá logo a seguir, guiado pelo roteiro intrigante que Garland compôs. Numa sequência como essa é que um cinéfilo suspira pelo prazer que há em se deparar com filmes autorais, daqueles que são engendrados a partir das próprias reflexões e fantasias de seu realizador. Pretensioso ou não, diz o que quer dizer, ousa e se coloca em risco.
POLLOCK
“O desafio é encontrar uma ação que não seja automática”. Partem dessa discussão em torno da pintura que há na casa de Nathan, de Jackson Pollock, artista norte-americano, nascido no início do século passado (em 1912), que parte suas obras de um pingo de tinta. Não usa nem cavalete nem pincéis, com a tela no chão e pisando nela, sua execução partiria de um sentido supostamente aleatório, sem intenção. Sua arte ficou conhecida como “pintura de gotejamento”.
Em pleno início de século, quando se descortinava a questão do inconsciente como determinante dos nossos impulsos, é interessante observar a relação que o roteiro estabelece com o determinismo que ainda hoje buscamos e o desconhecimento que persiste quanto ao que nos move, nossa “programação”. O que há de insondável, o que há de aleatório, o que há de fortes impulsos em tudo aquilo que realizamos sem saber? Nathan, de certa forma, é a expressão de Pollock, já que este também sofre de alcoolismo, depressão e ataques de fúria, como o pintor em questão. O inconsciente é sempre infantil, já nos lembrou de certa forma isso, também, o diretor Paolo Sorrentino em seu magnífico La Grande Belezza (2013), que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro (2014), na cena onde a menina joga tintas em uma tela, meio tipo Pollock, tomada pela angústia de ser levada a se exibir pelos seus pais para uma plateia fútil e adestrada.
Dia 5, Ava diz que vai testar Caleb. Pela sua capacidade de decodificar as microexpressões faciais ela é, como lhe diz Caleb, um detector de mentiras ambulante. E lança a pergunta: o que acontecerá comigo caso eu falhe no teste? Coisa que Caleb realmente não sabe responder, e ela questiona se existe alguém que o desligue caso falhe e por que seria justo fazer isso com ela? A essa altura vê-se que nosso jovem protagonista já se encontra totalmente capturado pela enigmática Ava, totalmente seduzido por aquele ser que parece tão real, e que luta por sua “sobrevivência”. Ela o deixa com a difícil pergunta: você quer ficar comigo?
“Os bons atos anteriores de um homem o defendem”, diz Nathan, após citar Oppenheimer, em meio a uma bebedeira, talvez refletindo sobre seus próprios atos e pesquisas. Ele, um homem riquíssimo, que alcançou a fortuna por ter desenvolvido um programa de buscas e armazenamento de dados chamado de “Livro Azul”, que se torna a base de sua pesquisa secreta sobre IA. Ele acredita que esse tipo de programa não é uma questão de “se”, mas, sim, de “quando”. Então, por que não realizar tal artefato?
Caleb constata que, antes de Ava, Nathan havia produzido outras “Ias”. Fica chocado com a descoberta de que até mesmo a auxiliar Kyoko (Sonaya Mizuno) é uma das suas fabricações – ela serve de todas as maneiras a seu inventor, inclusive sexualmente, como em cenas anteriores já tinha sido demonstrado. (Ava até então, em Kioko, uma subserviência que intrigava e incomodava, não somente Caleb, mas acreditamos que também quem assiste ao filme. Ao puxar sua pele artificial e mostrar a Caleb sua estrutura de máquina, ela revela sua obediência e, ao mesmo tempo, que há inquietação, e de certa maneira deixa clara a visão de dominação que Nathan, em seu isolamento, tem como visão da mulher, talvez de todos. Podemos pensar isso até pela escolha da forma em como colocar Caleb naquela experiência, um falso concurso onde, na verdade, a escolha foi feita pelo histórico de buscas de Caleb e sua inocência.
QUESTIONAMENTO
A pergunta que Nathan coloca fecha a indagação que o filme quer levantar, ou seja, se a capacidade de simular emoção para alcançar o objetivo seria, então, o que se poderia pensar que se alcançou um novo ser com inteligência artificial. Segundo ele, isso fará com que um dia os humanos sejam vistos como olhamos para os fósseis de animais pré-históricos. Ela sente ou simula como meio de alcançar resultados?
Ava, a nova da criação da IA, faz morder a maçã embebida da ilusão fantasiosa
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