O MITO DA
MERITOCRACIA
Porque devemos tomar cuidado com esse conceito em um país tão desigual como o brasil e o que fazer para corrigir as distorções sociaisno mundo do trabalho
Duzentos e vinte e cinco anos. Esse é o tempo que um brasileiro
nascido entre os 10% mais pobres levaria para alcançar a renda média do país –
hoje de 1.370 reais. A conclusão é da Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Segundo o estudo da instituição, O Elevador
Social Está Quebrado? Como Promover a Mobilidade Social, a desigualdade por
aqui é tamanha que são necessárias nove gerações para que o membro de uma
família desafortunada conquiste uma condição melhor. Crianças cujos pais não
completaram o ensino médio, por exemplo, têm apenas 15% de chance de chegar à
universidade, probabilidade que sobe para 60% quando pelo menos um deles é
diplomado.
De acordo com a Oxfam, que luta pelo combate à
desigualdade no mundo, o Brasil é o nono país mais desigual do planeta. Quem
recebe um salário mínimo hoje, por exemplo, precisa trabalhar 19 anos para
ganhar o equivalente a um mês de rendimento do 0,1% mais rico.
Fato é que desvantagens no início da jornada podem
perseguir uma pessoa ao longo da vida, traduzindo se não só em salários mais
baixos, mas em mortalidade precoce. “A situação socioeconômica influencia
o aprendizado, as perspectivas de emprego e até a saúde. Um homem de 25 anos
que frequentou faculdade pode esperar viver quase oito anos mais do que seu par
de pouca escolaridade. Entre as mulheres, a diferença é de 4,6 anos”, diz
o relatório da OCDE, divulgado no ano passado.
É dessa perspectiva que a meritocracia vem sendo
questionada. O conceito – mistura da palavra latina meritum, “mérito”,
com o sufixo grego cracia, “poder” – sugere que o sucesso é
determinado única e exclusivamente pelo esforço pessoal.
Isso, em tese, coloca o presidente da empresa e o
operário da fábrica em pé de igualdade. Mas como comparar o desempenho de um
profissional de classe alta com o de um suburbano? Um tem comida farta, o outro
pula refeições por falta de dinheiro; um corre para hospitais de ponta quando
está doente, o outro enfrenta filas do SUS; um realiza cursos fora do país; o
outro faz bicos para complementar a renda. “A meritocracia é um mito. Ela
só faria sentido se a sociedade promovesse igualdade de oportunidades
educacionais, econômicas e sociais. Não sendo esse o caso, é um jogo de cartas
marcadas. Ganha quem larga na frente: os que estudaram em boas escolas e
tiveram recursos para acessar livros e bens culturais”, diz Sidney
Chalhoub, pesquisador brasileiro e professor de história na Universidade
Harvard. Para ele, nivelar a competição no mercado de trabalho, desconsiderando
a história, a raça e o gênero, é um equívoco.
A questão é que, mesmo controversa, a meritocracia caiu
nas graças dos líderes. Está no discurso dos políticos para evidenciar que não
há nepotismo nem fisiologismo na gestão pública e na fala dos empresários para
mostrar que os sistemas de recompensa são justos. Ganhou a simpatia dos RHs, o
vocabulário das startups e os corredores do mundo corporativo.
CORRENDO EM
CÍRCULO
Quem inventou o conceito, no entanto, não o imaginava
como algo tão positivo assim. Quando cunhou a expressão no livro The Rise of
the Meritocracy (“A ascensão da meritocracia”, sem edição no
Brasil), em 1958, Michael Young, sociólogo e membro do Partido Trabalhista
britânico, o fez de maneira crítica. Na obra, ele narra a meritocracia como um
mecanismo que divide a sociedade entre os bem-sucedidos e os fracassados. Os
vencedores se tornam arrogantes, pois supostamente são os únicos responsáveis
pelo próprio êxito, e os perdedores ficam amargurados, uma vez que não podem
culpar nada além de si mesmos.
Embora ninguém discorde de que seja correto avaliar as
pessoas de maneira democrática, recompensando quem se dedicou com afinco e
entregou bons resultados, o que se observa é que, ao ignorar o contexto e os recursos
de cada um, a prática reforça as injustiças. Imagine a seguinte cena: dois
funcionários recebem a missão de avaliar o que enxergam por cima de um muro de
2 metros de altura. A melhor análise será recompensada pelo chefe. Um deles tem
2,10 metros e o outro 1,60. Para que ambos sejam avaliados de maneira justa
pela entrega – a melhor versão do que veem do outro lado -, o mais baixo
precisaria receber um banco de 50 centímetros para ficar em pé de igualdade. A
altura do primeiro profissional não é mérito dele, é privilégio.
Essa é a linha de raciocínio dos estudiosos que
consideram a meritocracia problemática. Segundo eles, se as organizações
quiserem ter legitimidade em promoções e seleções, devem levar em conta
deformidades sociais, culturais e estruturais do país. Em outras palavras, o
que se defende é que negros e brancos, homens e mulheres, estudantes de escolas
públicas e privadas não sejam avaliados todos pela mesma régua. “E não se
trata de baixar a régua, mas de ajustá-la a cada realidade. Da forma como são
feitos os recrutamentos hoje só reproduzimos as desigualdades”, diz Vanessa
Cepellos, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas da
Fundação Getúlio Vargas (FGV- Eaesp). Vanessa se refere aos processos de
estágio e trainee que triam os currículos pelo nome da faculdade do candidato
ou usam o teste de inglês como corte. Nesse tipo de peneira é inevitável
eliminar alunos de escolas públicas, que, por causa de circunstâncias difíceis,
não conseguiram entrar numa universidade de elite ou aprender outro idioma.
“Como alguém da periferia vai competir de igual para igual com pessoas com
inglês fluente e experiências internacionais? É dessa forma que as empresas têm
excluído certos grupos e favorecido outros”, diz Patrícia Santos, CEO e
fundadora da consultoria Empregue Afro. “Numa dessas, as organizações
contratam quem tem inglês em detrimento de quem trabalha desde os 12 anos e
possui inteligência emocional e uma enorme resiliência por tudo que já
viveu”, completa Liliane Rocha, fundadora da Gestão Kairós, especializada
em sustentabilidade e diversidade.
Núbia Mota, de 29 anos, estudou a vida toda em colégio do
governo e não aprendeu inglês na adolescência. Filha de uma empregada doméstica
e de um vendedor de carros, começou a trabalhar aos 14 anos como recepcionista
para complementar a renda da família. Aos 19, foi selecionada para ser
atendente em uma das primeiras autorizadas da Apple no Brasil. Os anos em que
lidou com o público ajudaram-na a desenvolver habilidades como comunicação e
negociação. Hoje diretora de marketing e novos negócios para América Latina da
Magento, empresa americana de plataforma para e-commerce, adquirida em 2018
pela Adobe, ela conta que sua sorte mudou quase por acaso. Na loja da Apple,
Núbia conheceu um empresário que a convidou para participar da seleção de
estágio na empresa dele, uma multinacional de tecnologia. Na época, a jovem
cursava gestão comercial na UniCid, em São Paulo. “Eu concorri com gente
de faculdades de renome, mas fui escolhida porque minha história de vida fez
diferença”, diz. Uma vez contratada, precisou compensar a falta de
bagagem. “Qualquer dinheiro que sobrava, eu investia para impulsionar meu
currículo e ser mais respeitada.” Com 50% da mensalidade subsidiada pela
companhia, Núbia fez MBA em vendas na Fundação Getúlio Vargas e bancou um curso
de inglês de cinco meses no Canadá. Em três anos, passou de atendente de call
center a gerente de vendas. Há três meses, recebeu a proposta para se tornar
executiva da Magento. Quem lê sobre a trajetória dela pode imaginar que foi
fácil. Núbia discorda. “Todas as vezes que fui promovida ou recebi
aumento, tive de levantar a mão e pedir. Para alguns, as portas se abrem. No
meu caso, eu tive de empurrá-las.”
É um erro pensar, portanto, que profissionais de origem
humilde não saem da inércia porque não se esforçam o suficiente. Conforme
apontou a pesquisa da OCDE, o elevador social está quebrado: apenas 7% dos
pobres no Brasil conseguem saltar da base para o topo da pirâmide. Sem saúde,
educação, moradia e alimentação de qualidade, é complicado abraçar
oportunidades, criar redes de contatos e romper o ciclo de pobreza. No caso de
Núbia, ponto fora da curva, houve muito esforço, é verdade, mas também
aleatoriedade (de estar no mesmo lugar e hora que um empresário) e a
flexibilização de critérios por parte da empresa, que priorizou a história de
vida ao currículo – algo que ainda acontece pouco nas entrevistas de emprego.
EFEITO COLATERAL
Um estudo liderado pelo acadêmico Emílio Castilla, do
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), em parceria com o sociólogo
Stephen Benard, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, investigou por
qual razão, mesmo quando supostamente há meritocracia, as mulheres continuam
ganhando menos e ocupando cargos de menor relevância do que os homens –
inclusive quando são mais qualificadas. O estudo simulou a aplicação de
políticas meritocráticas em companhias privadas para observar se haveria
mudanças no comportamento da liderança. Os pesquisadores descobriram que, em
locais que consideravam o mérito algo fundamental, os gerentes atribuíam recompensas
maiores aos homens do que às mulheres, mesmo com avaliações idênticas. A conclusão?
“Trabalhar em um ambiente que destaca a meritocracia como valor pode,
ironicamente, fazer com que as pessoas acreditem ser mais honestas e objetivas
do que são. Como resultado, ficam propensas a preconceitos”, escreveram os
autores. A realidade feminina no mercado de trabalho é o retrato de que nem
sempre funciona gratificar só pelo empenho. De acordo com números do Instituto
Ethos e da ONU Mulheres, nas 500 maiores empresas do Brasil, há 38,8% de
mulheres na supervisão, 31,3% na gerência, 13,6% no quadro executivo e apenas
11% no conselho administrativo. Nenhuma dessas esferas de poder reflete o
censo, onde elas são 51,4% da população. “A ausência feminina na liderança
significa a ausência de modelos, Elas não se sentem representadas e não se
enxergam naquele lugar, por isso, muitas desistem no meio do caminho ou nem
chegam a vislumbrar uma carreira executiva”, diz Amanda Gomes,
sócia-fundadora do Elas, escola de liderança e desenvolvimento feminino.
Para alguns especialistas, a meritocracia reforça o
preconceito de gênero à medida que recompensa o excesso de trabalho e a
disponibilidade de tempo. Isso porque muitos chefes ainda acreditam que quem
fica até tarde no escritório é mais merecedor. Como boa parte das mulheres sai
no horário para buscar os filhos na escola e dar andamento às atividades da
casa, cria-se uma desvantagem. A questão é estatística. Dados do IBGE mostram
que elas dedicam, em média, 21,3 horas por semana aos afazeres domésticos,
quase o dobro dos homens – que gastam 10,9 horas com as mesmas
responsabilidades. Talvez por isso, num levantamento global da auditoria Grant
Thornton, as profissionais tenham apontado a falta de tempo livre (32%) e o excesso
de tarefas fora do trabalho (25%) como dois dos principais impedimentos para se
desenvolverem na carreira.
Neuza Chaves, conselheira sênior da consultoria de
negócios Falconi e autora de Meritocracia – A Influência da Cultura Brasileira
no Desempenho e no Mérito (Falconi, 51 reais), ressalta que um traço
cultural dos executivos brasileiros é a influência por relacionamento, o que
acaba por favorecer quem é parecido com eles ou está mais presente em seu
networking. O dilema é que muitas mulheres não conseguem conciliar a happy hour
da firma com a vida pessoal. “A empresa deve preparar os gestores para
reconhecer distorções que inibem a meritocracia”, diz. Ao desenvolver
pesquisas para o livro, ela concluiu que o conceito funciona melhor na teoria
do que na prática. “Constatei que o mérito é amplamente desejado, mas
dificultado por traços de nossa cultura, como personalismo, subjetividade e o
famoso jeitinho brasileiro.”
Em economias desenvolvidas, como a de países nórdicos, há
políticas públicas para ajustar assimetrias e estimular a cultura do merecimento.
A Islândia, por exemplo, instituiu multas para organizações com diferenças
salariais entre homens e mulheres. Foi a primeira nação do mundo a tornar
ilegal a disparidade nos pagamentos. Já a Finlândia e a Suécia são pioneiras em
oferecer programas de trabalho flexíveis: 92% das empresas finlandesas e 86%
das suecas oferecem jornadas inteligentes para mulheres. “Se realmente
quisermos avançar em direção a um sistema mais justo, precisamos enfrentar a
realidade das grandes desigualdades de remuneração entre os gêneros, pensar em
como atuar juntos de forma cooperativa, e não mais competitiva, e trabalhar
duro para recrutar pessoas de diversas origens e experiências”, afirma Jo
Little, codiretora de pesquisa do departamento de sociologia da Universidade de
Londres, e autora do livro Against Meritocracy: Culture, Power and Myths of
Mobility (“Contra a meritocracia: cultura, poder e mitos da
mobilidade”, sem edição no Brasil).
OUTRO TOM
Foi ao se tornar diretor de operações da Aegea, maior
grupo de saneamento do segmento privado no país, que Josélio Alves Raymundo, de
42 anos, colocou em xeque o poder do mérito. “Como filho de uma dona de
casa e de um detonador de pedreira, que só estudaram até a 4ª série, eu
acreditava na meritocracia, afinal, cheguei até aqui porque batalhei muito.
Mas, ao me tornar líder, olhava para o lado e era o único negro. Isso me
incomodou.”De fato, só 4,7% dos cargos executivos são ocupados por negros nas
empresas brasileiras, de acordo com o Instituto Ethos. “Ou existe algo estrutural
ou a maioria de nós não quer nada com nada. E eu não acredito na segunda
opção”, diz. A pedido do CEO da Aegea, Hamilton Amadeo, Josélio encabeça
hoje o programa de diversidade da companhia, chamado Respeito Dá o Tom. Seu
primeiro passo foi visitar as 49 unidades da empresa para dar um testemunho
pessoal. Estudante de escola pública, aos 13 anos foi apadrinhado por
professores dispostos a oferecer a ele reforço durante as tardes para que
passasse no curso de edificações da Escola Técnica do Espírito Santo. Depois de
formado, ganhou bolsa em um cursinho de Vitória e ingressou em engenharia civil
na Universidade Federal de Viçosa. Mesmo com os obstáculos, considera-se
privilegiado. “Sou negro, mas não parti do mesmo lugar que todos de minha
raça. Meu pai fazia questão que eu não trabalhasse para me dedicar aos estudos.
Quando se aposentou, virou ajudante de pedreiro para que eu pudesse seguir na
escola. Quantos têm a mesma possibilidade?”, questiona.
Hoje, a mensagem que ele passa aos colegas líderes é que
a meritocracia não existe no Brasil. “Precisamos olhar de forma atenciosa
para o racismo em nosso país. Ele é real e muito presente. No condomínio onde
moro não há negros. A maioria de meus vizinhos pergunta se sou militar”,
conta. O programa que ele coordena na Aegea tem 12 comitês para reforçar a
inclusão e um profissional contratado para manter vivos três pilares:
desenvolvimento, empregabilidade e relacionamento com grupos minoritários. Em
2017, a Aegea realizou processo seletivo na comunidade quilombola Tia Eva, em
Campo Grande, onde fica uma de suas unidades. “Contratamos um quilombola.
Uma de nossas metas é representar internamente o censo da cidade em que estamos
inseridos”, diz Ricardo Malvestite, diretor de recursos humanos.
Como a última nação do mundo a abolir a escravidão, em
1888, o Brasil prejudicou os negros. Pouco antes de alforriá-los, o Parlamento
aprovou uma lei eleitoral, em janeiro de 1881, proibindo o voto de analfabetos
(até então autorizado) e aumentou a já existente renda anual mínima para ter
direitos políticos. “Somos o resultado de um acúmulo de violências que
criaram condições permanentes para a reprodução de desigualdades”, diz
Sidney Chalhoub, de Harvard. O professor explica que a abolição não foi acompanhada
de medidas para reparar a população escravizada. Pelo contrário. “Com a
proibição de votar e sem condições de estudar, gerações de negros permanecem
até hoje excluídas da cidadania e das oportunidades econômicas. Qualquer
processo que desconsidere esse passivo de nossa história é ilusório”,
completa o pesquisador.
Luana Santos Braguin, de 29 anos, é filha de pai negro
com mãe branca e faz parte da primeira geração da família, juntamente com seu
irmão, a cursar uma universidade. Ela foi a única a estudar em uma faculdade
pública. Visto que apenas 4,5% dos alunos dessas instituições são negros,
segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), Luana realizou um feito e tanto. Para obter o diploma de
engenharia de materiais da Universidade Federal de São Carlos, no entanto, a
jovem enfrentou uma série de entraves.
O primeiro desafio foi financeiro. Como a família morava
em Bauru, no interior de São Paulo, a 155 quilômetros de São Carlos, ela
precisou pleitear auxílio-moradia e alimentação para a universidade,
inscrevendo-se no programa para alunos de baixa renda da UFSCar: vivia num
alojamento com mais nove pessoas, dividia o quarto com três colegas e podia
almoçar e jantar de graça no refeitório da instituição. Por seis meses, recebeu
também a bolsa-atividade, que representava 180 reais em troca de prestação de
serviços na própria universidade, como limpar e organizar os laboratórios. Ela
utilizava essa renda para as demais refeições e para pagar as cópias das
apostilas necessárias para as aulas.
Outro obstáculo foi a defasagem escolar. Filha de pais
semianalfabetos que vieram da Bahia tentar a sorte em São Paulo, Luana só
estudou em escola pública. “Realizei meu sonho de passar em uma federal
utilizando o benefício da cota para negros e estudantes de escolas públicas,
mas foi muito difícil me manter lá porque minha formação não estava nivelada
com a exigência do curso.” Disciplinas que derivavam da matemática, como
cálculo e geometria analítica, eram a principal dificuldade. “Quando pedia
ajuda, os professores questionavam: “Como posso te ajudar? Como vou tirar nove
anos de atraso de você?” Luana pegou DP nas duas matérias. Para correr
atrás do prejuízo, começou a participar de mentorias e grupos de estudos. ”Eu
me tornei ainda mais disciplinada e virei figura carimbada nas monitorias e
salas de professores”, lembra.
Com dificuldade de se sustentar, tentou se inscrever para
bolsas de iniciação científica. No entanto, a Fapesp não aceitava pesquisadores
que tinham DP e o CNPQ só os aprovava se tivesse uma boa justificativa do
professor orientador. “A universidade é cruel quando vê os alunos apenas
como números e notas, mas não enxerga a história e a luta para ir bem. Um professor
me deu a chance. Ele foi realmente meritocrático, considerando meu esforço e
quanto eu queria aprender. E isso era muito raro”, diz a engenheira, que
desenvolveu o projeto de pesquisa na área de materiais amorfos e teve a bolsa
renovada por mais de um ano. O apoio do professor, somado à batalha pessoal
renderam a oportunidade de estudar um ano na Austrália pelo programa Ciências
Sem Fronteiras, quando ela cursou engenharia metalúrgica na Curtin University.
“A oportunidade que o professor me deu, ao olhar para mim e para minha
história, e não apenas para meu currículo escolar, me colocou em posição de
igualdade para pleitear esta vaga”, conta Luana, que, logo depois,
conquistou uma vaga de trainee na mesma Aegea de Josélio, na qual 75% das vagas
do programa de trainee são ocupadas por negros.
CAMINHO MAIS JUSTO
Se a meritocracia gera assimetrias no mundo corporativo,
excluindo de seleções e promoções os qt1e possuem menor escolaridade e menos
recursos financeiros, no universo das startups é pior. Nas rodadas de
investimentos e nos processos de aceleração, o lugar-comum são jovens abastados
e ultra qualificados, com retaguarda dos pais para dedicar tempo e dinheiro a
algo incerto, que pode dar errado. Esse não era o caso do empresário Fábio Leger,
de 37 anos. Criado por uma diarista, ele começou a vender picolés aos 11 anos.
Aos 16, virou menor aprendiz no Instituto de Tecnologia do Paraná, onde
desenvolveu apreço por tecnologia. Há seis anos, após uma tentativa anterior
frustrada, ele fundou a Certus Software, especializada na implantação de
ferramentas de gestão para pequenas indústrias. Em 2017, decidido a escalar o
negócio, ele se inscreveu para um pitch em busca de aceleração. “Na
ocasião, eu nem sabia o que significava. Fiquei constrangido com os termos em
inglês que as pessoas usavam. Por outro lado, demonstrei uma força que os
jovens de classe média não tinham”, diz.
Fábio ficou em segundo lugar na competição, mas ganhou 10
horas de mentoria. Com os conselhos e feedbacks que recebeu, abocanhou três
acelerações alguns meses depois. Em uma delas, passou o ano inteiro viajando de
ônibus de Curitiba a Campinas (SP), onde tinha treinamento às segundas-feiras.
As 20 horas de bate e volta valeram a pena. No final de 2018, ele recebeu 1
milhão de reais de aporte de três fundos. “Crescemos 230% no ano passado e
esperamos crescer mais 400% em 2019. O verdadeiro mérito não é a formação que
você tem, mas o conhecimento que adquire”, diz o empreendedor, que
pretende abrir sete filiais neste ano. Na opinião de especialistas, ações
afirmativas, tanto dentro como fora das empresas, são a solução para corrigir
essas defasagens e dar a indivíduos inteligentes, com vontade de realizar, a
chance de superar barreiras e prosperar. No setor público, as medidas mais conhecidas
são as cotas em universidades, os financiamentos estudantis, como o Fies, e o
Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), que oferece auxílio-moradia,
alimentação e transporte, entre outros, aos alunos de baixa renda. Elas
funcionam como aquele banco de 50 centímetros do início da reportagem, lembra?
E visam equilibrar o acesso dos menos afortunados, dando a eles a oportunidade
de disputar vagas entre si, e não mais com concorrentes da elite, que, por
razões óbvias, acumularam maior capital intelectual. “São medidas para
corrigir, pelo menos em parte, desigualdades sociais criadas por uma história
violenta”, diz Sidney, de Harvard. Desde que a política foi instituída no
sistema educacional brasileiro, em 2000, o número de negros e pardos que concluíram
a graduação cresceu mais de 7%.
Já no mundo corporativo as cotas garantem mais presença
de mulheres na liderança e de negros, PCDs e público LGBTI+ nos processos
seletivos. Nesses casos, Liliane, da Gestão Kairós, faz um adendo: o termo
“cota” carrega uma pecha, por isso, a expressão mais adequada a usar
é “meta”. “Minha lógica é simples: “Sua empresa tem metas
financeiras? Tem metas de gestão? Tem metas de RH? Por que só em diversidade
não se tem meta?”, diz. De acordo com a consultora, objetivos claros – como
50% de mulheres na liderança ou 40% de negros nos programas de trainee –
funcionam como um freio às anomalias sociais. Mas é preciso ter em mente que
essas estratégias são temporárias e destinadas a consertar, pelo menos em
parte, mecanismos que excluem os mais fracos dos ambientes onde circulam
conhecimento e dinheiro. Não se trata, portanto, de puro assistencialismo.
Filho de uma cozinheira e caçula de cinco irmãos, Diego
Pereira dos Santos, de 28 anos, só está conseguindo mudar o enredo de sua
história por causa de políticas afirmativas. Estudante de economia na
Universidade Paulista (Unip), cursa o ensino superior graças ao empréstimo
estudantil público. “Tirei uma nota boa no Enem e consegui o
financiamento”, diz. Há seis meses, ele também se beneficiou de ações
desse tipo no mercado de trabalho, tornando-se estagiário de responsabilidade
social na Gerdau, maior produtora de aço do Brasil. “Vi a divulgação do
programa no LinkedIn, mas não achei que pudesse dar certo. No último processo,
eu e outros quatro candidatos negros fomos dispensados na fase presencial
porque não estávamos no ‘perfil da vaga’. E só havia branco nos
avaliando”, afirma. No ano passado, a Gerdau realizou dois processos
seletivos só para negros. Em outra iniciativa, contratou apenas mulheres para
repor o turnover na área de logística de uma das unidades de negócio.
Nessas situações, para lidar com críticas internas, como a de que um grupo está
sendo favorecido em detrimento de outro, comunica os motivos de maneira direta.
“Fazemos os times refletirem se estamos sendo justos ou criando barreiras
na porta de entrada”, diz Carla Fabiana Santos, gerente de desenvolvimento
organizacional e de pessoas. A RH acredita na meritocracia. E diz que, se a
empresa faz um trabalho inclusivo, o sistema de recompensa se equilibra
naturalmente. Além disso, quando há representatividade dentro do escritório,
criam se produtos e serviços que refletem melhor as necessidades das pessoas.
A convivência entre trabalhadores de realidades diversas desafia o statu quo
e fortalece a inteligência coletiva da organização. Não à toa, um estudo da
consultoria McKinsey mostrou que companhias com pouca diversidade étnica e de
gênero tendem a ter ganhos 29% inferiores aos de concorrentes mais heterogêneas.
Por isso é tão importante que as lideranças se sensibilizem para a causa.
Quando a alta cúpula toma consciência de que nem todos tiveram as mesmas
oportunidades de desenvolvimento, flexibiliza exigências que reforçam a
exclusão social, como diploma de primeira linha e flt1ência em inglês, e abre
espaço para que profissionais aparentemente menos qualificados, mas tão
competentes quanto os colegas bem-nascidos, façam a diferença nos negócios e na
sociedade.
TÃO DESIGUAL
O abismo social do
brasil em números
19 ANOS – É quanto uma pessoa que recebe salário mínimo
teria de trabalhar para ganhar o equivalente a um mês da renda de um brasileiro
que pertence ao grupo do 0,1% mais rico do país.
6 BRASILEIROS – Todos homens brancos, concentram riqueza
equivalente à metade mais pobre da população (cerca de 100 milhões de pessoas).
E os 5% mais ricos do país recebem por mês o mesmo que os demais 95% juntos.
2089 – É quando, se mantida a tendência dos últimos 20 anos,
os negros conseguirão, enfim, ganhar o mesmo que os brancos. As mulheres só
devem alcançar equidade salarial em relação aos homens em 2047.
36 ANOS – Éo tempo que os seis maiores bilionários
brasileiros, juntos, levariam para esgotar todo o seu patrimônio, mesmo
gastando 1 milhão de reais ao dia.
SINAL DE FOGO
Seis indícios de
que a meritocracia é um mito
1. Mesmo sendo mais qualificadas, elas ganham menos do
que os homens. segundo a pesquisa profissionais Catho, 30% das mulheres
têm nível superior ou pós-graduação, ante 24% dos homens – mesmo assim, eles
ganham até 52% mais do que elas.
2. Jovens menos favorecidos não concorrem de igual para
igual com os de elite a uma vaga em universidade porque a qualidade de colégios
públicos e privados é díspar. Segundo o Inep, 91% das escolas públicas estão abaixo
da nota mínima do Enem.
3. Sete em cada dez negros no país são pobres e apenas
4,7% dos cargos executivos são ocupados por eles. A exclusão se reflete m
outras esferas: de acordo com o Censo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
apenas 1,4% dos juízes são negros.
4. Quando conseguem ingressar em uma boa faculdade,
negros e pobres têm dificuldades de bancar os custos dos estudos. Segundo um
levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de
Ensino Superior (Andifes), 42% dos estudantes de Universidades Federais
advindos de escola pública apontam a dificuldade financeira como um entrave ao
desempenho acadêmico.
5. Enquanto boa
parte dos adolescentes brancos de classe média tem tempo para estudar, a
realidade de jovens de periferia é outra. Segundo um estudo da Oxfam, na idade
em que deveriam estar na faculdade, entre 18 e 24 anos, 53,2% dos negros estão
trabalhando e ainda cursando ensino fundamental ou médio.
6. De acordo com consultorias de recrutamento, quase 10%
dos processos seletivos para estágio e trainee aplicam teste de inglês e, na
maioria das companhias, universidades de primeira linha ainda são critério de
corte – o que vem perpetuando a homogeneidade das contratações: em sua maioria,
brancos bem-nascidos e qualificados.
PULANDO OBSTÁCULOS
Veja as dicas dos
especialistas para driblar os entraves que a meritocracia impõe
CORRA POR FORA
Faça o que estiver ao seu alcance para se qualificar. Invista
em cursos gratuitos, inclusive on-line; e frequente reforço em universidades e plantões
de professores. Buscar instrução, mesmo remando contra a maré, conta pontos a
favor.
SEJA FIRME
Não tema as acusações de assistencialismo. Não há
vergonha em se beneficiar de cotas, bolsas e auxílios. Esses recursos existem
para corrigir uma distorção social.
FREQUENTE O ECOSSISTEMA
Busque entidades de classe, fóruns e ONGs que discutam a situação
das minorias as quais pertence. Esses grupos possuem redes de contatos e informações
sobre oportunidades.
CRIE REDES DE CONTATO
Construa um networking com profissionais inspiradores que
o representem, como mulheres, negros e líderes humildes que partiram do zero e
construíram grandes negócios. Siga-os nas mídias sociais e esteja por dentro de
eventos e dicas que dão.
BUSQUE AJUDA
Conecte-se a consultorias especializadas em diversidade. Elas sabem onde as vagas estão e podem ajudar no caminho das pedras.
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