MÍMICA FACIAL
Prestar atenção na alteração de expressões e nas variações de voz daqueles com quem convivemos é fundamental; quem interpreta corretamente os sinais emitidos pelos outros tem mais chance de antecipar intenções alheias e agir de forma adequada.
Quando quero descobrir se uma pessoa é inteligente ou tola, boa ou má, ou o que está pensando naquele momento, procuro imitar sua expressão facial. Aguardo os pensa mentos ou sentimentos que combinam e, inevitavelmente, surgem quando imito sua fisionomia”, escreveu Edgar Allan Poe (1809-1849.) Para o escritor de histórias de suspense e mistério, essa postura parecia muito simples: seu herói Auguste Dupin, de A carta roubada, por exemplo, precisava apenas estudar a face de alguém para desvendar o que lhe passava pela cabeça. De fato, frequentemente os traços faciais de alguém podem oferecer inúmeras pistas sobre estados de humor – e até a respeito de características de personalidade. Na maioria das vezes, emoções fundamentais como alegria, medo ou raiva podem ser interpretadas sem grande dificuldade.
Charles Darwin (1809-1882) tinha grande conhecimento sobre o significado da mímica como forma de comunicação. Em livro publicado em 1872, A expressão das emoções no homem e nos animais, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, o criador da teoria da evolução interpretou as mensagens emocionais emitidas por seres humanos e animais como um comportamento que auxiliava a sobrevivência. Segundo Darwin, quem interpreta corretamente os sentimentos de seus pares consegue antecipar as intenções alheias e, assim, reagir de forma adequada em cada situação. O indivíduo percebe o momento mais adequado para se afastar ou se aproximar. A visão de um rosto distorcido pelo ódio, por exemplo, sugere uma retirada discreta; nariz torcido e expressão de nojo diante de um alimento sugerem que insistir em consumi-lo pode não ser uma boa ideia.
Nem todos, porém, têm habilidade em identificar com facilidade os variados sinais emocionais enviados pelo rosto de outras pessoas. Em situações extremas essa incapacidade pode ser caracterizada como um distúrbio raro denominado prosopagnosia, uma espécie de “cegueira para feições”, causada geneticamente ou por lesões neurológicas. O termo resulta de uma junção da palavra grega prosopon (face) e agnosia (não reconhecimento). Pessoas com esse problema em geral enxergam bem, mas não conseguem reter detalhes das feições na memória ou identificar peculiaridades das variações de expressão.
MAIS FÁCEIS DE ENTENDER
Para descobrirmos quão bem – ou mal – as pessoas podem ler os sentimentos de outras em seus traços faciais, utilizamos no Laboratório de Emoções da Universidade de Ulm o teste FEEL (Facially Expressed Emotion Labeling). Inicialmente, os participantes veem a imagem de uma pessoa com expressão neutra em uma tela de computador durante um segundo e meio. Após pausa de um segundo, aparece o mesmo rosto durante 300 milissegundos, mostrando uma das seis emoções que elegemos como básicas do ponto de vista evolutivo: alegria, tristeza, raiva, nojo, medo e surpresa. Os sujeitos da pesquisa devem dizer o que o modelo aparenta sentir.
O teste revelou que a maioria das pessoas identifica sentimentos de seus semelhantes de forma praticamente imediata. No entanto, nem todas as emoções são percebidas com a mesma destreza: enquanto alegria, raiva e surpresa são quase sempre corretamente interpretadas, o reconhecimento de medo, nojo e tristeza causa alguma confusão.
Além disso, as pessoas diferenciam-se consideravelmente em sua capacidade de decifrar esses sinais. Como demonstramos em outro estudo, os participantes que sofriam de pânico tinham, claramente, maior dificuldade em detectar a tristeza e o ódio do que os integrantes do grupo de controle, que não tinham o problema. Os pacientes com a síndrome tendiam principalmente a interpretar de forma equivocada algumas expressões faciais, vendo-as como irritadas, ainda que não se apresentassem assim.
Em geral, porém, não é tão simples atribuir as divergências individuais a respeito da percepção dos sentimentos a eventuais distúrbios neurológicos ou psiquiátricos. Se a capacidade de empatia dos sujeitos, assim como suas habilidades em demonstrar sentimentos, é testada por meio de um questionário, surgem apenas fracas coincidências com o FEEL. Outros pesquisadores não conseguiram comprovar nenhuma conexão entre os sentimentos de uma pessoa e sua capacidade de reconhecê-los nas demais. Será que essa correlação realmente não existe ou o método de medição é inexato?
Realmente, as condições do teste são simples: afinal, uma foto frontal sem sofisticação não corresponde a uma situação concreta. Na vida real, a mímica emocional modifica-se constantemente e, muitas vezes, surge apenas subliminarmente – inserida em um acontecimento social complexo. Sendo assim, não surpreende quando métodos de reconhecimento da emoção que trabalham apenas com estímulos mímicos levam a resultados que têm pouca relação com autodescrições subjetivas feitas em testes psicológicos.
Considerando essa questão, aperfeiçoamos nosso sistema de testes e passamos a mostrar aos sujeitos de nossas pesquisas vídeos nos quais feições neutras se transformavam, mais uma vez expressando raiva, medo, alegria, surpresa, tristeza ou nojo, só que agora de forma mais dinâmica. Nos filmes, as faces podiam ser vistas durante período semelhante ao do teste estático FEEL: o rosto neutro que surgia por mil a 1.800 milissegundos se metamorfoseava em um intervalo de 400 a 1.200 milissegundos, revelando alguma expressão emocional que, por sua vez, desaparecia após 300 milissegundos.
IMAGENS E INFORMAÇÕES
No teste por vídeo, porém, os participantes tiveram resultados quase iguais aos obtidos na versão por foto: 102 voluntários aos quais mostramos 36 fotos e 36 vídeos identificaram em ambas as séries de teste – apesar das diferenças consideráveis – as variadas emoções de forma quase idêntica. As imagens em movimento apenas levavam ao reconhecimento um pouco mais rápido da surpresa e do medo; as fotos, por sua vez, ofereciam leve vantagem na detecção de traços de alegria.
Ao que tudo indica, as pessoas conseguem processar rapidamente a expressão mímica – pelo menos de forma mais rápida que nosso olhar quando lê o rosto completo do outro. Quem tem um pouco mais de tempo acompanha o movimento facial e consegue, assim, absorver mais informações. Dessa forma, no entanto, a melhora do resultado do reconhecimento da expressão dos sentimentos é irrelevante. Isso nos leva a concluir que, provavelmente, possuímos dois sistemas de decodificação da mímica humana, um rápido e outro lento.
O que se passa então em nossa cabeça quando analisamos expressões emocionais? Estudiosos do cérebro já indicaram há bastante tempo uma região do sistema límbico em formato de amêndoa como importante centro emocional: a amígdala. Essa área se excita durante a observação, assim como ocorre quando a pessoa experimenta emoções, principalmente o medo. O caso de pessoas com a amígdala lesionada mostrou-se especialmente ilustrativo para as pesquisas – como a paciente S. P., que Adam Anderson e Elizabeth Phelps acompanharam. Em 2000, os dois cientistas, na época na Universidade Yale, em New Haven, relataram que a mulher de 54 anos conseguia reconhecer rostos sem dificuldade e também lhes atribuir expressões de surpresa e raiva. Com outros sentimentos, como medo, nojo e tristeza, no entanto, ela falhava completamente. A própria S. P. conseguia, porém, expressar facialmente esses três últimos sem problemas. Assim, sua comunicação social mostrou-se prejudicada apenas em uma direção. Foi constatado, portanto, que a amígdala é indispensável para a recepção de mensagens emocionais como o temor, mas a emissão de sinais por meio do próprio rosto seria possível também sem a participação dessa área cerebral.
Durante muito tempo, pesquisadores acreditaram que a amígdala funcionasse exclusivamente como centro do medo. Diversos novos estudos, entretanto, nos levam a questionar tal suposição. O grupo de pesquisadores dirigido por Christian Keysers, da Universidade de Groningen, na Holanda, conseguiu provar que essa região se excitava assim que os voluntários da pesquisa assistiam a vídeos de pessoas emocionadas. No entanto, não constatamos nenhuma diferença entre a apresentação de rostos neutros, alegres, enojados ou amedrontados.
Por outro lado, a amígdala reagia também quando as pessoas simplesmente estufavam as bochechas no filme, o que nos leva a considerar que essa área cerebral responde a movimentos do rosto de maneira geral e pode estar envolvida apenas indiretamente no processo de detecção de expressões emocionais.
VISÃO ASSUSTADORA
O grupo de trabalho de Ralph Adolphs, do Instituto de Tecnologia da Califórnia em Pasadena, obteve resultados semelhantes. A amígdala de sua paciente S. M. estava afetada de ambos os lados. A mulher, na época com 38 anos, tinha, assim como S. P., grande dificuldade em reconhecer o medo em seus semelhantes. Mas, afinal, o que nos leva a concluir que a pessoa à nossa frente está assustada? Análises dos movimentos oculares revelaram que homens e mulheres sadios se orientam principalmente pelos olhos arregalados, que atraem a atenção do observador de forma intensa. Isso, porém, não acontecia com S. M. Ela parecia evitar os olhos estatelados de medo de uma pessoa as sustada: seu olhar parecia dançar vago e incerto na região central do rosto a ser avaliado.
Em uma segunda série de experimentos, Adolphs e seus colegas treinaram a participante para que observasse especialmente os olhos dos retratos apresentados. Graças ao exercício, S. M. passou a reconhecer rostos amedrontados. Os pesquisadores perceberam então que, em vez de servir simplesmente como um filtro passivo, a amígdala funcional oferece comandos que “avisam” aos olhos que devem atentar para certas características.
Será que podemos concluir que apenas a visão nos revela sentimentos de nossos semelhantes? Para responder a essa questão, os pesquisadores Holger Hoffmann e Henrik Kessler dividiram graficamente as imagens dos rostos de nossos testes em uma região superior (com olhos e nariz) e outra inferior (que incluía a boca e laterais da face). Assim, poderíamos apresentar as expressões emocionais apenas parcialmente, enquanto metade do rosto permanecia inalterada.
CÉREBRO CONFUSO
Essa divisão das faces teve efeito dramático sobre o reconhecimento de estímulos emocionais. De maneira geral, os 57 participantes de nossa pesquisa puderam detectar melhor os sentimentos na parte inferior dos rostos. Nesse caso, o índice de acerto foi de 63%, mas caiu para 49% quando, em vez de boca e bochechas os voluntários viam apenas olhos e nariz. E subiu para 83% quando o rosto completo era mostrado.
A interpretação de cada uma das emoções teve diferenças substanciais: o temor foi, conforme esperado, detectado quase que exclusivamente na parte superior do rosto. Em manifestações de surpresa, os olhos também desempenham papel de destaque. Mas no caso da alegria ocorre exatamente o oposto: sem a boca, ela praticamente não pode ser percebida. Já uma expressão triste ou enojada também se revela, principalmente, por meio da parte inferior do rosto.
Os movimentos do olhar dos voluntários, que acompanhamos com um sistema de rastreamento, comprovaram os diferentes pesos durante o reconhecimento de emoções: em uma fisionomia amedrontada, as pessoas atentavam mais nos olhos; em um rosto alegre, sua atenção voltava-se para a boca; em uma face triste, todos os elementos adquiriam grande importância. Os relativamente curtos períodos de exposição de nossos estudos comprovaram a rápida percepção das emoções. Mas, aparentemente, seres humanos precisam mesmo de informações de todo o rosto para uma correta análise dos sentimentos demonstrados por um semelhante. Caso contrário, o sistema de reconhecimento de emoções pode “se confundir”. Não se pode negar que, de fato, algumas pessoas parecem ter um senso extraordinário para compreender pensamentos e sentimentos alheios. Outras se mostram menos talentosas. Acreditamos, porém, que essa habilidade exista independentemente da capacidade objetiva de detectar emoções em rostos. De maneira geral, fica demonstrado que o processo de apreensão de expressões faciais depende muito do tempo de visualização. Uma apresentação próxima da realidade, como no filme, possibilita que o cérebro analise os traços emotivos da expressão como um todo. Ao que tudo indica, nosso sistema perceptivo precisa acompanhar a dinâmica do rosto do outro para direcionar a atenção para aquelas partes que nos ajudarão a ler as emoções. E, assim, talvez possamos nos relacionar melhor.
O NARIZ DE PINÓQUIO
É possível aprender a mentir convincentemente? “Com certeza. Basta pensar como um jogador de xadrez, controlar os sentimentos e sintonizar a mímica com a atenção do interlocutor, para que ela seja bem interpretada”, garante o psicólogo americano Paul Ekman, da Universidade da Califórnia, São Francisco, que há mais de 40 anos se dedica a estudar a mímica facial humana. Além disso, quanto mais o mentiroso acredita em sua própria história e se sai bem, mais difícil é perceber o embuste. Ekman aconselha que, durante um interrogatório, os investigadores de polícia façam perguntas inesperadas. Em vez de “Você esteve ontem à noite no supermercado X?”, é melhor “Onde costuma fazer compras?”.
Embora seja possível treinar o reconhecimento das micro expressões, nem sempre se consegue considerá-las indícios de mentira.
Quando treina profissionais de segurança, Ekman recomenda que sempre se pergunte o que o interrogado está sentindo. Isso diminui o risco de cometer o “equívoco de Otelo”: no drama de William Shakespeare, o protagonista interpreta o medo no semblante de Desdêmona como sinal de traição, e a mata com base em uma percepção equivocada. Não só mudanças na mímica facial, mas também detalhes da atitude corporal, e variações na entonação da voz, podem apontar deslizes. A prova de que alguém está dizendo a verdade só seria possível mesmo se nosso nariz fosse como o de Pinóquio. Por que é tão difícil reconhecer a mentira? Segundo Ekman, gostamos de acreditar no que nos é contado. “Quem quer ouvir que está sendo traído no casamento? Para aceitar é preciso enfrentar o problema, e isso a maioria quer evitar”, diz. Devido a mecanismos de defesa, as evidências tendem a passar despercebidas. Do ponto de vista evolutivo, não é vantajoso ser um detector de mentiras. Em grupos pequenos, um dos envolvidos geralmente é expulso da comunidade ou se afasta dela.
Ekman vê paralelos entre seu trabalho e o do Dalai Lama, com quem se encontrou algumas vezes. Na busca pela verdade, ele quer ajudar as pessoas a entender melhor seus sentimentos e dominar seus impulsos. Assim, espera colaborar para conscientizá-las das próprias emoções antes que estas sejam expressadas de forma inadequada. “Para decidir quando uma mentira é permitida, pergunto-me como meu interlocutor se sentiria se descobrisse que menti”, explica. Se ele interpretar como quebra de confiança ou tentativa de tirar vantagem, pode ser prejudicial. Isso não vale, porém, para convenções sociais e gentilezas. “Afinal, depois de um jantar, você diria abertamente a seu anfitrião que a comida estava horrível?”
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