AS BRUXAS E AS FACES DO FEMINISMO
Na Europa do século 15 circulavam mitos sobre belas jovens solteiras que se reuniam nos campos para adorar o diabo – e até hoje essas crenças persistem. A autonomia e a sexualidade da mulher foram, por muito tempo, condenadas e relacionadas às práticas pagãs – associação carregada de fantasia e erotismo.
“Por que as mulheres são as principais adeptas das superstições malignas?” “Seriam elas conduzidas pelo demônio ao pecado ou seriam, por sua própria vontade, as responsáveis por seduzir, fazer o mal e pecar?” Essas são duas das dezenas de questões levantadas pelos inquisidores Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger no século 15, no livro Malleus maleficarum, uma espécie de manual prático sobre como reconhecer uma bruxa e se proteger contra ela. Organizado em perguntas e respostas, o documento escrito sob encomenda do papa Inocêncio VIII apontava como fortes suspeitas de praticar feitiçaria mulheres solteiras, sem filhos e com função de destaque em suas comunidades, como parteiras ou conhecedoras das faculdades medicinais das ervas.
Nesse mesmo período, as índias das Américas recém descobertas fascinavam e confundiam os europeus. Em uma xilogravura de 1509 que ilustra as narrativas do explorador italiano Américo Vespúcio, três mulheres tupinambás seduzem um branco enquanto outra prepara o golpe mortal em sua cabeça com um tacape – ação que tradicionalmente caberia a outro homem. Essa imagem é emblemática, pois elege a figura feminina como representante dos vícios do Novo Mundo e de valores que os cristãos europeus deveriam repudiar e combater. Não por acaso, após o descobrimento, nota-se um aumento das produções artísticas que retratam as feiticeiras europeias como adeptas de danças circulares, de rituais antropofágicos e do uso de caldeirões para fabricar poções destinadas a provocar doenças e abortos, o que indica contaminação com o estereótipo das tupinambás, descritas como protagonistas das cerimônias em que es quartejavam e cozinhavam o corpo do inimigo , usando suas vísceras na preparação do cauim, uma bebida ritual.
DESEJO REPRIMIDO
Dissimulação, luxúria, ambição e infidelidade são características atribuídas às bruxas europeias e às índias. Sua beleza é tratada como armadilha. Um imaginário temido que repercute o medo original de Eva e do pecado, a “costela torta” de Adão. Sua ambição e curiosidade estariam implícitas na conduta de suas descendentes. Em uma passagem do Malleus, os inquisidores alertam: “Os homens são capturados quando veem e ouvem as mulheres. Como diz São Bernardo, “seu rosto é um vento quente, a sua voz, um apito das serpentes”.
A razão do aparecimento da tipologia social das feiticeiras é, sem argumentação mais aprofundada, relacionada pelos autores do manual de caça às bruxas ao incontrolável desejo sexual feminino. Havia um forte componente erótico nas confissões. Na ata de uma das primeiras execuções de que se tem registro – a da francesa Angéle de la Barthe, em 1275 -, a acusada dizia haver conhecido o “pênis do diabo”, descrito como gigantesco (por vezes se dividia em dois órgãos), capaz de ejacular de uma só vez quantidade de esperma que excedia a de mil homens. Algumas afirmavam que o membro pendia do traseiro do demônio – imagem corriqueira nas obras que retratam rituais sabáticos, nas quais mulheres beijam o ânus de um ser metamorfoseado em homem e bode.
Os supostos relatos de experiências em êxtase das “bruxas” poderiam ser fruto de alucinações influenciadas por lendas sobre a busca do prazer e o desprezo das convenções sociais pelas praticantes de magia. Os depoimentos denotam não só fantasias femininas, mas também masculinas, especialmente em relação ao órgão sexual. Como ressalta o historiador David Friedman, autor de Uma mente própria – A história cultural do pênis, “cinco séculos antes da caça às bruxas as mulheres eram consideradas insaciáveis; acreditava-se que eram capazes de tornar um homem impotente e até mesmo de fazer seu pênis desaparecer”. Essa noção se traduziu em práticas sociais curiosas no período – alguns homens exibiam por cima da calça falos feitos de tecidos de cores chamativas, moldados em forma de ereção. “A primeira peça na armadura de um guerreiro”, ironizou o escritor francês François Rabelais.
O imaginário da bruxaria evidencia a transmissão inconsciente de construções populares – como as histórias de mulheres que se reuniam para praticar orgias e oferecer crianças ao demônio nos campos (na verdade nunca comprovadas, mas circulavam em locais distintos da Europa) – e de mitos clássicos, como o da deusa pagã Diana, guerreira que não se submetia aos homens e montava altiva em seu cavalo, imagem que remete ao domínio da mulher na relação sexual, por cima do parceiro. A própria vassoura, aliás, é um símbolo fálico.
“São as bruxas culpadas ou vítimas do demônio?”, perguntam os autores do Malleus.
A questão retoma a ambígua relação entre Eva e a serpente, na qual a mulher de Adão, ao mesmo tempo que é seduzida, também induz o companheiro a pecar. As bruxas, igualmente, eram retratadas tanto como donzelas ludibriadas pelo diabo quanto como as próprias protagonistas do mal, responsáveis pela impotência masculina e pela infertilidade das outras mulheres. Ainda, a nudez das ameríndias remetia simultaneamente ao paraíso, um novo Éden, e ao inferno, terreno fértil para os ritos diabólicos.
A ligação com a víbora na passagem bíblica foi habilmente associada à perfídia, falha de caráter “mais frequente nas mulheres que nos homens”, como atesta o manual de caça às bruxas. Estas, por sua vez, são frequentemente representadas junto de animais peçonhentos ou de hábito noturno, como as corujas. O historiador italiano Cario Ginzburg atenta para a figura do sapo – em várias línguas de raiz germânica, essa palavra designa, além do anfíbio, cogumelos alucinógenos. O consumo de infusões que causavam alucinações chegou a ser cogitado por cientistas do século 16 como explicação para as descrições de voos, visões do demônio e reuniões sabáticas relatadas pelas acusadas de bruxaria. Essa hipótese é, no entanto, desconsiderada por Ginzburg. Para ele, “a chave dessa repetição codificada só pode ser cultural”.
CONSTRUÇÃO PSÍQUICA
A pergunta é inevitável: as bruxas existiram? Sim, se considerarmos que elas foram construção social de uma época na qual realidade e ficção se fundiram não apenas entre o povo, – mas entre as instituições. As perseguições contra qualquer manifestação feminina de diversidade resultaram em prisões, torturas e cerca de 100 mil mortes nas fogueiras da Inquisição medieval.
As bruxas personificavam os medos da sociedade, como pestes e infertilidade, e toda sorte de pecado. Temidas representações do feminismo, elas são produto de um “caldeirão cultural” que une poderosamente o exótico e o macabro, e de uma estrutura mental e discursiva que associou o protagonismo feminino às práticas consideradas diabólicas e mágicas.
VÍTIMAS PERFEITAS DA INQUISIÇÃO
Em um documento de 1233, o papa Gregório IX admitiu a existência do sabá – uma festa noturna na qual homens e mulheres prestavam homenagem a divindades femininas pagãs, com sacrifícios de animais, uso de bebidas alcoólicas e orgias sexuais. Essas reuniões nunca foram comprovadas, mas possivelmente os boatos surgiram de histórias sobre costumes antigos, presentes em muitas culturas. As deusas representavam fertilidade, boas colheitas e equilíbrio da natureza. No entanto, a Europa vivia um período histórico e político delicado: havia a ameaça das invasões dos bárbaros, temidos tanto pela violência quanto pelas religiões que propagavam. Obviamente a Igreja enxergava essas crenças como ameaça à sua hegemonia, por isso decidiu combatê-las com violência.
A alta cúpula da Igreja, com apoio de várias monarquias europeias, criou uma instituição para tentar suprimir a heresia, a Inquisição, que adquiriu plena autonomia para decidir o que era suspeito e qual pena devia ser aplicada. Era preciso, antes de tudo, eleger um alvo para as perseguições – e a primeira edição do Malleus maleficarum não deixou a menor dúvida: “Mentirosa por natureza, ela o é em sua linguagem; excita com seus encantos. (…) Matam, efetivamente, porque esvaziam a bolsa, tiram a força, obrigam a perder a Deus”, destilaram os autores do manual sobre a figura feminina. Prevalecia o senso comum de que a mulher se sentia mais atraída pela bruxaria. Segundo o Malleus, por ser “mais crédula, menos experiente, mais maldosa e predisposta à vingança”.
Elas se tornaram vítimas perfeitas de uma sociedade tomada pelo medo da guerra e da fome – uma neurose coletiva que transformou juízes e cidadãos comuns em torturadores, fiéis seguidores das hoje absurdas instruções do Santo Ofício, que encontrou na credulidade do povo uma forte aliada para as repressões. Um dos critérios para reconhecer uma feiticeira, por exemplo, era amarrar pés e mãos da suspeita e atirá-la na água. Se fosse culpada, deveria flutuar; inocente, afundaria. A prova era repetida três vezes, de forma que a ré terminava se afogando. Se continuasse viva, era levada para a fogueira. Critério semelhante era aplicado às lágrimas derramadas durante rituais de tortura: se a vítima chorasse, era uma confissão, sinal da astúcia feminina, uma tentativa de comover os inquisidores. Caso contrário, significava que estava tomada por um endurecimento diabólico.
Dentre os sentenciados à fogueira, estima-se que mais de 80% eram do sexo feminino. Paradoxalmente às descrições do Malleus, que apontava as mulheres jovens e bonitas como principais emissárias do demônio, a maioria das executadas na forca ou na fogueira tinha mais de 60 anos.
Eram, em geral, viúvas, sem chances de se casar, ter filhos, ou seja, um peso para parentes ou vizinhos – que muitas vezes eram os autores das denúncias. Não raro, quando surgia uma suspeita de bruxaria em um vilarejo ou cidade, surgiam várias outras acusações no mesmo lugar. Quase sempre as suspeitas eram presas e a comunidade aguardava ansiosa pelo julgamento, descrito por historiadores como um grande evento.
HISTERIA: OS DEMÔNIOS REPENSADOS
Em 1676, na França, uma mulher de 46 anos foi queimada em praça pública, acusada de bruxaria. No entanto, ela se assemelhava muito pouco à imagem da feiticeira libertina que chegava aos sabás montada em um cabo de vassoura. Segundo os depoimentos de testemunhas, Marie d’Aubray, marquesa de Brinvilliers, apresentava contrações nervosas frequentes na face e, não raro, convulsões. Tinha um histórico de violência sexual e confessou que planejou envenenar o pai pois ele era contra seu relacionamento com um jovem oficial.
Condenada à fogueira, a marquesa de Brinvilliers, se fosse examinada dois séculos depois pelo médico Jean-Martin Charcot (1825-1893), no hospital francês La Salpêtriêre, teria seus sintomas exibidos em uma aula para médicos recém-formados, entre eles Sigmund Freud (1856-1939).
No século 19, os casos de bruxaria e possessões demoníacas migraram dos domínios da religião e da lei para o da medicina. As visões de Satanás e os sintomas físicos de uma atuação maligna passaram a ser, aos poucos, cogitados como alucinações e sintomas de patologias que mal começavam a ser identificadas, como epilepsia e histeria. Charcot, aliás, analisava registros de antigos processos de bruxaria em suas aulas sobre doenças do sistema nervoso, apontando sinais de possíveis distúrbios nas acusadas.
Freud se interessou especialmente pelos casos de histeria – um desafiador conjunto de sintomas, sem causa orgânica aparente, que envolvia desde alucinações até a paralisia de algumas partes do corpo, mais frequente em mulheres. Sob a influência de Charcot, o médico austríaco usou a hipnose para tentar descobrir vivências dolorosas do passado de suas pacientes, muitas vezes esquecidas, o que ele chamava de “trauma”. Segundo Freud, ao se lembrarem do evento, elas reviveriam as emoções que não puderam expressar de forma adequada no passado. Surgiam assim a noção de recalque e o tratamento centrado na fala, fundamentais na psicanálise. Diante de desejos intensos e repressões igualmente fortes, a organização psíquica da histérica elabora fantasias e se manifesta em somatizações. Uma “teatralização” que, segundo sugerem documentos históricos sobre os grandes julgamentos de feitiçaria, encontrou um público sedento pelo bizarro e o espetacular. E, nesse sentido, nada mais sedutor que a bruxaria.
“A histeria é uma forma específica de se relacionar com o outro. O sintoma explicitado no corpo pode ser considerado como instrumento a mais para tentar estabelecer vínculos”, define o psicólogo Fábio Riemenschneider, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), autor de Histeria, para além dos sonhos. Segundo o psicólogo, essa complexa engrenagem tem uma peça fundamental: o intenso – e recalcado – desejo pela figura parental do sexo oposto durante a infância, o que Freud definiu como “complexo de Édipo”. Esse conflito psíquico se manifesta principalmente na sexualidade. É uma queixa pela falta do objeto amado e desejado, que se reflete na criação de fantasias, nos atos (falhos ou não) e na busca por formas alternativas de satisfação da fantasia edípica. “Certamente, muitas das ‘bruxas’ foram queimadas por seus sintomas e não por seus supostos poderes mágicos”, diz Riemenschneider.