ALÉM DA BOA ALIMENTAÇÃO
Quando o processo de adaptação alimentar é adequado, a nutrição e o desenvolvimento da criança são bem-sucedidos. E esse hábito também fortalece a relação com os pais e cuidadores.
Tem sido cada vez mais comum a queixa dos pais com relação à qualidade da alimentação dos seus filhos, seja em um grupo de mães, consultórios pediátricos, psicólogos ou nutricionistas infantis. O discurso na maioria das vezes é: “Meu filho não come bem”. Como entender se é fase de criança ou um transtorno que merece atenção e cuidados profissionais? Como agir? Devo forçar meu filho a comer o que não gosta? Deixá-lo com fome? Alimentar-se é algo essencial na manutenção da vida. Por meio de uma alimentação equilibrada garantimos o crescimento físico e a qualidade do funcionamento de todo organismo. Quando o processo de inserção e de adaptação alimentar é bem-sucedido, a criança tem uma nutrição e desenvolvimento adequados. Além disso, há fortalecimento da relação pais/ cuidador-filho. No entanto, quando problemas alimentares se instalam, essas variáveis podem ser colocadas em risco.
Considera-se dificuldade alimentar (DA) todo e qualquer problema que interfere de forma negativa no processo de suprir alimento ou nutrientes à criança. Porém tais dificuldades abrangem uma série de níveis de gravidade, que incluem: crianças “muito exigentes” com a comida, casos mais sérios de seletividade alimentar (típicos em crianças autistas) e crianças com transtorno alimentar restritivo evitativo.
Dentre os aspectos associados ao desenvolvimento dos problemas com a alimentação, Maranhão e colaboradores (2017) enfatizam alguns pontos principais: dificuldades precoces com alimentação (falha na amamentação e inadequada introdução dos primeiros alimentos) e problemas comportamentais. Os autores apresentam relatos de pesquisa que mostram a associação entre duração reduzida do aleitamento materno e introdução precoce de alimentação complementar com o desenvolvimento de seletividade alimentar na infância, além de outros que apontam que crianças amamentadas por, pelo menos, seis meses apresentam menor índice de dificuldades com a adaptação a novos alimentos.
Com relação ao comportamento, mencionam que, apesar de a maioria das crianças com alterações alimentares apresentar mais de uma causa subjacente, se destaca a frequência dos fatores comportamentais, presentes em cerca de 80% dos casos. Inclui-se como fator comportamental a presença de uma prática alimentar anormal e intrusiva dos pais/ cuidadores (fator mais importante). Buscando auxiliar o entendimento das diferentes dificuldades alimentares, Kerzner e colaboradores (2015) propõem uma classificação baseada em sete perfis.
MÁ INTERPRETAÇÃO DOS PAIS – Nessa categoria encontram-se crianças que apresentam algum tipo de inapetência ou recusa diante de certos tipos de alimento, porém ainda possuem uma alimentação variável. Tais crianças não apresentam problemas de crescimento ou de desnutrição, apesar da excessiva preocupação dos pais. Algumas vezes, a ansiedade dos pais pode até colaborar para uma dificuldade alimentar real, na medida em que adotam práticas inapropriadas diante do momento das refeições, como, por exemplo: gritar, bater ou forçar a criança a comer toda a comida quando esta já está satisfeita.
INGESTÃO ALTAMENTE SELETIVA – Inclui crianças que selecionam ou recusam alimentos de determinada característica (cheiro, sabor, textura, aparência ou consistência) e está intimamente relacionada a quadros de transtorno do espectro autista. Nesses casos, algumas alterações sensoriais podem estar relacionadas, como sensibilidade auditiva, desconforto em manipular ou tocar em produtos de determinadas consistências, como massas de modelar, pisar em areia, entre outros.
A gravidade pode variar desde uma aversão a certo grupo de alimentos (como as frutas ou as verduras) até casos mais graves, como determinar apenas dois tipos de alimentos em sua dieta (p. ex.: suco e arroz). A seletividade pode incluir também preferência para uma única forma de preparação ou marca comercial.
CRIANÇA AGITADA E COM BAIXO APETITE – Fazem parte desse perfil crianças extremamente ativas e inquietas que não possuem necessariamente uma seletividade, mas se preocupam mais em brincar do que comer. Normalmente se levantam durante as refeições, são os últimos a terminar e por isso podem não ganhar peso adequadamente ou ter certo déficit de nutrientes.
FOBIA ALIMENTAR – Normalmente associada a quadros de traumas alimentares (intubações, engasgos, asfixia, vômitos ocasionados por alimentação forçada). Na fobia alimentar, as crianças apresentam reação intensa de medo e estresse ao se deparar com o alimento.
PRESENÇA DE DOENÇA ORGÂNICA – Nesse caso, as crianças demonstram dificuldades alimentares decorrentes de alguma doença fisiológica de base, como transtornos gastrointestinais, doenças neurológicas ou psicomotoras. Não são consideradas, nesses casos, doenças transitórias e mais leves, como aftas ou estomatites agudas.
ALTERAÇÕES PSICOLÓGICAS OU NEGLIGÊNCIA – Casos de abandono, negligência na primeira infância ou problemas de vínculo mãe/ filho podem resultar em alterações de apetite e transtornos alimentares. Muitas vezes, a terceirização precoce dos cuidados com o bebê interfere na formação do apego, muito importante para o desenvolvimento saudável.
TRANSTORNO ALIMENTAR RESTRITIVO / EVITATIVO – Algumas vezes, as dificuldades alimentares trazem sérios problemas para a saúde física, emocional ou social do indivíduo, passando a se encaixarem nos critérios de transtorno. De acordo com os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais – DSM-V, o transtorno alimentar restritivo/ evitativo refere-se a uma esquiva ou restrição da atividade alimentar que causa perda de peso, deficiência nutricional significativa, dependência de suplementação oral ou dieta enteral e/ ou interferência visível na área psicossocial da criança. A perturbação alimentar pode acontecer diante de alterações sensoriais relacionadas a odor, textura ou cor dos alimentos ou pela falta de interesse ou aversão ao alimento e merece maior atenção e tratamento por uma equipe multidisciplinar (APA, 2014).
QUANDO BUSCAR AJUDA?
Alguns problemas podem ser transitórios e se resolvem na ausência de intervenção. Outros precisarão de um acompanhamento especializado. Não é necessário que haja um transtorno estabelecido para a procura de ajuda. Os pais podem e devem buscar orientação e/ ou tratamento sempre que houver algum indício de sofrimento ou prejuízo por parte da criança ou que, de alguma forma, as dificuldades alimentares estejam atrapalhando na dinâmica familiar (p. ex.: as refeições da criança sempre precisam ser diferenciadas das do restante da família; quando sai com a família para algum restaurante não come nada) ou social (criança evita ir para casa de amigos devido à restrição alimentar).
PSICOTERAPIA
Como a terapia cognitivo comportamental (TCC) é uma abordagem semiestruturada, objetiva e baseada em metas, tem sido bem indicada nas intervenções associadas às dificuldades com alimentação, pois é possível identificar os pensamentos distorcidos e padrões comportamentais que influenciam e mantêm o padrão de resistência, seletividade ou aversão ao alimento. Ainda existem poucos registros sobre técnicas específicas para casos de dificuldades alimentares e padrões restritivos, sendo mais comum na literatura estratégias voltadas a transtornos como anorexia e bulimia.
É importante destacar que a família tem uma influência enorme nos hábitos e comportamentos alimentares. É imprescindível que o profissional faça questionamentos precisos sobre a dinâmica alimentar da família, numa construção de uma anamnese seletiva para a questão principal, com a investigação do estilo parental e do perfil da criança.
O processo terapêutico deve ser baseado em atividades lúdicas. Gradativamente, com psicoeducação e exposição, favorecendo inicialmente segurança no processo. Algumas estratégias práticas podem ser adotadas com o auxílio de materiais lúdicos.
PLANO DE INTERVENÇÃO
O desenvolvimento de dificuldades alimentares é complexo e envolve uma série de fatores. A identificação dos fatores causais e a avaliação multidisciplinar colaboram para a elaboração de um plano de intervenção individualizada considerando as particularidades de cada criança e da dinâmica familiar.
O psicólogo tem papel importante nesse processo, na medida em que desenvolve um novo olhar (reestruturação) do ato de comer, trazendo técnicas cognitivas e comportamentais eficazes para mudanças emocionais e comportamentais associadas à alimentação.
De acordo com a literatura e resultados de pesquisas sobre o problema, percebemos que não existe uma única causa para as dificuldades alimentares das crianças, assim como podemos contar com abordagens diferentes em lidar com o problema, por isso é de suma importância que os pais não se desesperem diante dos sintomas e sim busquem observar os fatores associados ao ato de comer, os possíveis ganhos secundários que a criança está tendo e acima de tudo, procurar ajuda de um profissional habilitado para melhor avaliação do caso e tratamento.
FATORES DE RISCO PARA UMA DIFICULDADE ALIMENTAR
Predisposição genética: restrição do crescimento intrauterino, prematuros, baixo peso ao nascer; ausência de aleitamento materno nos primeiros meses: dificuldades alimentares muito precoces (cólicas. vômitos. alimentação prolongada, dificuldade na sucção); introdução tardia dos sólidos para além dos 9 meses; práticas de desmame inadequadas; práticas alimentares inadequadas (pouca variação de alimentos na dieta, poucos alimentos novos apresentados e refeição desestruturada: história de doença médica prévia (doenças neurológicas, doença orgânica crônica, anomalias craniofaciais e síndromes genéticas); distúrbio do sono; conflito entre a criança e o cuidador durante a refeição: história materna de ansiedade, problemas alimentares e preocupação com a imagem corporal.
UMA PREOCUPAÇÃO MUNDIAL
A preocupação relacionada à dificuldade alimentar do filho ocorre em diversos países. Mais de 50% das mães se queixam de que, pelo menos um de seus filhos come mal, o que implica aproximadamente 20% a 30% das crianças. Muitas vezes, a ansiedade materna para que as crianças comam é tão grande que a mãe acaba oferecendo alimentos substitutivos de baixo valor nutritivo e a criança rapidamente associa que quando não come, tem o que deseja, gerando um ciclo vicioso.
PROBLEMAS ALIMENTARES PODEM NÃO SER TRANSTORNO
Como a pirâmide proposta por Kerzner e colaboradores (2015) mostra, nem todas as crianças cujos pais queixam-se de problemas alimentares apresentam diagnóstico de transtorno. Na verdade, apenas uma estimativa de 1% a 5% preenchem os critérios diagnósticos de transtorno na área. A causa de tais dificuldades é multifatorial, envolvendo patologia orgânica, problemas motores, transtornos do neurodesenvolvimento, influência de fatores ambientais e comportamentais.
ESTRATÉGIAS PRÁTICAS COM MATERIAIS LÚDICOS
JOGO DA BOA ALIMENTAÇÃO – Criado pela equipe Bbdu, é um jogo de dados em que cada lado possui uma tarefa a ser cumprida. Durante a refeição, cada pessoa joga o dado uma vez e vai cumprindo o que é proposto. O jogo acaba quando o último terminar seu prato. Embora seja um jogo, não é uma competição e não há ganhadores. Ou melhor, todos ganham. Contém: 2 dados e 12 adesivos, você monta os 2 dados e vai variando as jogadas.
ÁLBUM DE FIGURINHAS – Desenvolvido pela nutricionista Bruna Cavalheiro para estimular as crianças a experimenta rem novos alimentos, o álbum vem acompanhado de todas as figurinhas (113) A mãe ou o pai passa o álbum para seu filho e fica com as figurinhas em seu domínio. Somente entregará a figurinha para preencher o álbum quando ele comer ou experimentar o alimento referente à figurinha. E para estimular mais ainda, ao completar um grupo alimentar com todas as figurinhas, a criança recebe um “troféu figurinha” e tem direito a uma recompensa (mas nada de bens materiais, combine algo com seu filho como passear no parque, ir no cinema…). Contém um álbum e 113 figurinhas.
AVENTAL ALIMENTAR – Criado pela psicóloga Ligia Rodrigues com o objetivo de auxiliar na psicoeducação e estimulação por parte dos pais, profissionais e educadores, por meio do lúdico e do concreto, com manuseio do aparelho digestório e alimentos saudáveis e não saudáveis, numa grande brincadeira, para desmistificar crenças e reestruturar o pensamento sobre o alimento. Contém: um avental com os órgãos do aparelho digestório e cérebro; 2 tags; 1caneta; 4 alimentos: 2 saudáveis e 2 não saudáveis; 1 cocô.
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS- Envolvem os personagens na educação nutricional e funcionam como processo de psicoeducação quanto aos alimentos, auxiliando a terapia, tais como: Turma da Mónica Alimentos Saudáveis e Emília e a Turma do Sítio.
TÉCNICAS TERAPÊUTICAS
O psicólogo pode guiar os pais nessa orientação, com treinamento dirigido à questão alimentar.
ALGUMAS ATITUDES QUE PODEM AJUDAR NO PROCESSO:
- Construir uma rotina alimentar com horários pré-estabelecidos para refeições.
- Refeições servidas em local agradável e limpo, favorável para essa aprendizagem.
- Ambiente de refeição deve ser: tranquilo, sem brigas, agressões e ameaças, para construir registros emocionais positivos.
- Sempre que possível, estimular a participação ativa da criança no preparo do alimento (respeitando a idade e a habilidade; pode ser um agente motivador para provar novos sabores e texturas.
- Refeições em família. Estar na mesa junto com a criança, servindo de “modelo” tanto do ato de comer como pela construção de memórias positivas e agradáveis.
- Transforme o momento das refeições em momento lúdico. Brincar e interagir com os alimentos serve como dessensibilização e construção positiva alimentar. A criança pode tocar na comida e sujar-se. É por meio dos sentidos que ela se relaciona com o mundo.
- Levar a criança a ambientes distintos. que ofereçam a alimentação como foco (supermercado, feiras livres, restaurantes).
- Evitar frases de desanimo: ‘Já sei que não vai experimentar nada’. ‘Hoje você não vai comer, não é?’. ‘Será que um milagre vai acontecer e você vai comer?’.
- Retirar distrações como: televisão, tablet, celulares.
- Podem utilizar de criatividade para organizar as refeições da criança, que podem servir como estímulo para o ato de comer. Varie no formato, faça detalhes divertidos e invista no humor.
- Mantenha os alimentos saudáveis em lugar visível para a criança, para que ela possa se familiarizar.
PADRÕES QUE PRECISAM MUDAR
O livro Comer, Comer É o Melhor para Poder Correr. Entendendo os Padrões de Dificuldade Alimentar auxilia o terapeuta a abordar o tema junto às crianças e aos familiares, ensinando-os de forma lúdica a reconhecer emoções e pensamentos associados ao padrão alimentar, compreender a importância de uma alimentação e elaborar um plano de ação baseado em técnicas cognitivo- comportamentais. Tem base na TCC e envolve uma série de técnicas que têm função de reduzir sintomas e proporcionar melhor funcionamento do indivíduo na sua vida diária. Para o acesso das crianças é necessário adequação da linguagem e fornecer elementos práticos, lúdicos e concretos para melhor engajamento e mudança. Por essa razão, o material traz uma série de exercícios práticos com técnicas eficazes no tratamento de transtornos alimentares.
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