A DIFÍCIL ARTE DE EDUCAR
Pesquisa investiga como pais e mães promovem a obediência dos filhos. Entrevistas evidenciam conceitos piagetianos de formação da moral do indivíduo e dificuldades em estabelecer limites.
A educação dos filhos é uma tarefa complexa. Em palestras de formação de pais e mães de crianças pequenas ou de adolescentes, é comum a presença de genitores atentos e ansiosos por orientações, buscando na voz do especialista que discorre sobre tema cão polêmico as respostas para incontáveis dúvidas. Muitas delas se apresentam em momentos como “convencer o adorado menininho de três anos a descer da escance da televisão”, entre outras questões do dia-a-dia, que se convertem em desafios e dificuldades.
É importante que se compreenda que é nesse cotidiano da criança – hora de tomar banho, alimentar-se, decidir com que roupa vai à casa da avó, escolher o horário de retornar do passeio – que verdadeiras “guerras” se travam entre pais e filhos. Todavia, é exatamente nessas entrelinhas do corriqueiro que, com suas intervenções, adequadas ou não, os pais e outros adultos que convivem com as crianças vão auxiliando os pequenos na construção de sua personalidade moral, na formação de seu caráter.
Mas o que sabem os pais sobre a educação de seus filhos? Recente pesquisa foi realizada com o objetivo de investigar o conceito de obediência dos pais e mães de crianças de 2 a 6 anos, ou seja, como eles acreditam que esta deve ser promovida. O levantamento, na elaboração de seu questionário, teve como referencial teórico o trabalho de Jean Piaget, biólogo suíço, reconhecido mundialmente por seus escudos epistemológicos relatados pela Psicologia Genérica. Segundo o estudioso, o sujeito é ativo na construção do seu conhecimento e, ao agir sobre o mundo, vai construindo estruturas de inteligência que lhe permitem cada vez mais interagir com objetos e pessoas que o rodeiam, de uma maneira inicialmente sensorial e motora nos dois primeiros anos de vida, até atingir, por um processo de estágios sucessivos e integrados, o pensamento abstrato. Este último é o que lhe permitirá um raciocínio sobre hipóteses, análogo ao raciocínio científico.
Os valores morais também se constituem em um objeto do conhecimento para as crianças, que para compreendê-los se utilizam de todo esse aparato cognitivo. A construção da moral dependerá de um processo interno de auto regulação, ou seja, de acordo com a vivência com os adultos, os pais e com as outras crianças, elas vão compreendendo o porquê das regras e dessa forma vão se organizando para o auto controle nos momentos de resolução de conflitos, tal como no livro, O juízo Moral da Criança, publicado por Piaget em 1932.
AMBIGUIDADE
De volta à pesquisa, o total de 60 pais e mães respondeu às questões: “o seu filho lhe obedece? Por que acha que ele lhe obedece, ou não lhe obedece?”, entre outras questões. Não se encontraram respostas definitivamente positivas, uma vez que a maioria dos participantes da entrevista respondeu à primeira questão com interlocuções como “às vezes obedecem”, “na maioria das vezes”, “depende” e não só “sim” e “não”. A fala de um desses pais, cuja resposta foi “sim”, revela, ainda que a afirmação pode não ser absoluta, conforme suas próprias palavras: “normalmente minha filha obedece. Quando coloca alguma coisa na cabeça, você tem que usar um pouco de pressão nela, senão ela não obedece”. Portanto, ainda que existam afirmativas e negativas, o contexto das respostas demonstra aquilo que nos propõem as teorias estudadas, ou seja, a obediência está relacionada ao convívio com o adulto e às suas intervenções junto aos pequenos. Os pais indagados evidenciaram muitos dos conceitos piagetianos.
Alguns entrevistados explicaram a dificuldade de a criança obedecer a partir das características que lhes são comuns nesta fase do seu desenvolvimento. Provavelmente desconhecem o conceito de egocentrismo, mas o discurso parental demonstra intuitivamente a percepção de uma dificuldade do filho se colocar em pontos de vista diferentes do seu, da impossibilidade da conservação de valores nas crianças pequenas, da necessidade de fazer valer a sua vontade, desejo e interesse, algumas entre tantas características desces pequenos. Assim, afirmam que eles “querem fazer o que querem”, “têm mais vontade que obediência”, “falam que eu não mando neles e me enfrentam”, “batem o pé na sua opinião”, “dentro da cabecinha deles, acham que têm razão”.
Ao afirmar que as crianças pequenas são egocêntricas, Piaget sugere que estas características que compõem o egocentrismo infantil tendem a desaparecer espontaneamente, à medida que esta criança relacionar-se com outras, para que vá tomando consciência da existência de diferentes pontos de vista. Nisso o papel do adulto é fundamental, já que suas atitudes proporcionam à criança tal descentração. Todavia, se o pai acredita que o egocentrismo é normal e não faz nada para que a criança tenha oportunidade de rever o seu ato de consertar o que quebrou, de guardar os seus brinquedos, e, enfim, compreender que não cumpriu uma regra, ela crescerá sob a orientação do permissionismo, cujos resultados lhe serão inadequados na formação de seu caráter. A criança não saberá seus limites e não desenvolverá correta mente o processo de auto regulação necessário para a constituição de sua personalidade moral.
EXIGÊNCIA UNILATERAL
Por outro lado, quando os pais mandam que suas crianças repartam seus brinquedos. não contem mentiras ou outros cantos exemplos de ordens que são impostas às crianças. impedem-nas, segundo Piaget, de progredir em direção à construção da moral da reciprocidade. As crianças apenas obedecem e/ou recusam-se a fazê-lo, até mesmo como uma necessidade de testar o “poder do seu egocentrismo”, e impelidos pelo respeito unilateral e pelo temor dos castigos. Enfim, permanecem no estágio não evoluído da moral heterônoma (são governados pelo seu superior), e encontrarão poucas oportunidades de construir os seus valores estando sempre dependentes da vontade exterior.
Especialmente em relação aos castigos físicos, Piaget afirma: “o castigo corporal, por exemplo, nasceu na escola e passou daí para a família, como Durkheim provou em textos que deviam ser objeto de meditação por parte de todos os pais e educadores. Ora, se desapareceu de quase todas as escolas da Europa, salvo raras exceções bem conhecidas, continuou infelizmente a ser regra na pedagogia familiar. Por outro lado, as punições não corporais mais igualmente expiatórias continuam sendo necessárias em toda a parte onde a lei não foi estabelecida em colaboração com a própria criança.
Na pesquisa, o uso de coação fica claro nos discursos de pais que contam os seguintes procedimentos utilizados para a imposição de sua autoridade às crianças: “ergo a voz”, “dou uma bronca, “sou mais rígido”, “dou uns trancas”, “eu imponho limites”, “se tiver que falar não, pode chorar que vou falar não”, “quando preciso, algumas palmadas ajudam”, “meu filho me obedecendo ele sabe que vai ter o melhor de mim, é a lei da ação e reação”, “faço cara feia e falo forte”, “se não obedecer vai ter um castigo”, “mudo a expressão do rosto, por isso ela tem aquele impacto, aquele medo, aí ela ouve”, “e se você usa da sua autoridade costuma dar certo”, dizem os pesquisados, entre outros depoimentos.
INTERAÇÃO E DÚVIDAS
Outros pais apresentam uma proposta diferenciada de relação com as crianças. Piaget afirma que a disciplina e o sentimento moral podem ser construídos sem a necessidade das sanções expiatórias (castigos que fazem sofrer e que não têm relação alguma com o ato a ser corrigido na criança). Aliás, a tendência é de que a permanência da punição expiatória conduza a criança à ausência da experiência da cooperação.
Relatos verificados no estudo expressam propostas de experiências de trocas de pontos de vista com as crianças, vivência do respeito mútuo e da explicação racional das regras, muito próxima da ideia da educação elucidativa de Elliot Turiel, que relaciona educação e desenvolvimento humano em suas aulas na Universidade de Berkeley, Estados Unidos: “Conversar bastante”, “explicar que a vida tem certo e errado”, “não é só a vontade da mamãe, primeiro ele se explica, ele pode argumentar”, “eu sempre explico e digo o porquê”, “aquilo é uma regra por tal motivo”, “conversando a gente resolve as situações”, ‘eu quero compreensão, compreensão é fundamental”, “eu falo de uma maneira que ela entenda, “procuramos dar escolha, pois a criança tem que colocar suas ideias”.
As respostas revelam uma realidade presente nas entrelinhas dos discursos dos pais: há uma dificuldade permanente em saber com exatidão qual a melhor atitude a se tomar em relação à educação das crianças. Os genitores afirmam por várias vezes que se soubessem a resposta correta das perguntas a que responderam, com certeza teriam menos conflitos em casa! Não houve nenhum participante que em algum momento da entrevista não tivesse emitido expressões que revelassem suas dúvidas e incertezas a respeito do bem educar: “isto é difícil”, “boa pergunta esta”, “você vai nos responder o correto após a entrevista?”, “nossas atitudes são sempre tentativas cheias de boas intenções”, entre tantas outras.
Uma mãe que participou da pesquisa chego a afirmar: “eu não sei se devo educá-lo para ser bonzinho ou para ser esperto”. Segundo La Taille (1998, p.65), os pais de hoje não têm mais certeza dos seus próprios valores, assim, com ensinar o certo e o errado se não se tem certeza deles? Daí dois grandes problemas são enfrentados: a inconsistência da educação e a ausência de limites. O autor afirma que muitos pais, por não terem certeza dos seus próprios conceitos, terminam por optar pela negligência.
TENTATIVAS E MAIS TENTATIVAS
Os pais admitem, em maioria, um passo a passo na busca da obediência, isto é, um bom pai deve primeiramente conversar com seu filho. Uma vez que tal estratégia não alcance resultados, deve-se tentar a ameaça; se ainda não houver correspondência, para que não se perca a autoridade, é preciso então que se cumpra o prometido, seja um castigo ou umas palmadas.
O relato de um dos participantes da pesquisa exemplifica a questão: “a princípio ria da conversa, apesar de que às vezes escapam alguns croques na cabeça e aí a minha esposa briga comigo. Geralmente, eu coloco ele de castigo ou digo pra ele dormir mais cedo, corto a TV; como a gente mora em apartamento ele não desce pra brincar, geralmente corto dele alguma coisa que gosta, desde que seja alguma coisa errada que ele fez. Lógico que também ganha umas palmadinhas! Não escapa, não.”
Muitas vezes, os pais demonstram que pro curam o diálogo como fórmula de educar, mas quando as crianças não respondem aos seus apelos panem para as ameaças. E aí, o melhor é cumpri-las, caso contrário se estará perdendo a autoridade. Entretanto, é necessário que se reflita sobre o fato de que a idade dos seus filhos é exatamente o tempo da gênese da moral, ou seja, é a partir das intervenções dos adultos mais caros para a criança, que se instaura a moral. Isso significa que os pais precisam ensinar o certo e o errado para as crianças. As regras inegociáveis, como escovar os dentes, dormir na hora adequada, tomar banho, ir para a escola, enfim, regras que implicam na saúde física e psicológica das crianças, precisam ser preservadas, e isso é papel dos pais.
A dificuldade de assumir uma atitude ideal e eficaz para a educação dos filhos revela-se quando eles mesmos assumem que seguem o tal ” passo a passo” empírico na busca da atitude que alcance maior sucesso na promoção da obediência da criança. É bem verdade que a intervenção junto às crianças não tem receita ou verdades absolutas, pois conta com a relatividade do contexto, das características de cada criança e do próprio estado psicológico dos pais. Entretanto, pode-se afirmar que falta realmente aos genitores a definição dos principais objetivos da educação moral.
Talvez seja mais prático gritar, castigar e, nos momentos de crise, os sentimentos tendem a se sobrepor a razão. Porém, quando se quer educar para a autonomia, para a justiça, enfim, formar pessoas conscientes, responsáveis, solidárias, críticas, faz-se necessário que os objetivos estejam bem claros, durante as intervenções do dia-a-dia. É preciso que os pais assumam o papel de adultos da relação.
Entretanto, é nítido que a obediência cega não é mais o objetivo de nenhum pai. Outros aspectos compõem o desejo dos pais de formarem boas pessoas, porém, com frequência as suas intervenções inadequadas acabam traindo os seus próprios objetivos e desta forma, a relação pais e filhos precisa ser repensada. Uma coisa é certa: seus propósitos ao educarem suas crianças são positivos, e negam o conformismo.
“Bom, ele obedece porque sabe que se não obedecer tem as consequências. Primeiro eu explico porque estou dando aquela ordem, porque ele tem que obedecer, porque eu não estou deixando, porque estou deixando, né? Para ficar bem claro! E não porque é só uma vontade da mamãe. Não, a mamãe não deixa porque tem algum problema. É o perigo…” (relato de uma mãe)
O discurso da mãe revela o desinteresse na obediência à autoridade, sem reflexão ou compreensão. Sua busca é pelo entendimento da regra, pela compreensão do filho de que todo ato tem consequência. A lei da reciprocidade está implícita, e com ela a ideia da construção da obediência do bem pautada no auto- controle. Conforme Piaget: ”A regra, devido ao acordo mútuo e à cooperação, enraíza-se, pelo contrário, no interior da consciência da criança e conduz a uma prática efetiva, na medida em que se associa com a vontade autônoma.
ROTINA INTERROMPIDA
O cansaço do dia-a-dia, as dificuldades pessoais, os sentimentos de culpa, entre outros, acabam sendo responsáveis por uma não conservação das regras e combinados com as crianças por parte dos pais. Conforme as palavras de Marques (2000, p.207): “A inconsistência paterna se refere ao comportamento dos pais, que varia de acordo com o tempo e situações. Este comportamento é mais óbvio no caso da disciplina, quando os pais algumas vezes punem a criança por um determinado ato e outras vezes permitem que o ato se repita sem qualquer repercussão para ela”.
A autora, que pesquisou diferentes formas de abuso psicológico infantil, também afirma que a inconsistência paterna pode suscitar grandes problemas de comportamento nos pequenos, entre eles, o mais comum, segundo ela, a agressividade extrema. Os fragmentos de discursos obtidos nas entrevistas revelam exemplos da inconsistência: “eu mesmo deixo o barco correr um pouco solto com ele”, “quando você fica meio liberada, a criança fica passando por cima”, “se você fizer corpo mole ele não obedece”, “aí vai enrolando e enrolando, então não aguento mais e passo para o pai”, “falta atitude mesmo da minha parte, porque ele sabe que eu sou fraca e ele vai até onde ele consegue”, “às vezes a gente acaba cedendo em alguma coisa”.
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