VOCÊ ESTÁ MESMO NO COMANDO DA SUA VIDA?
Cientistas pesquisam como nossas decisões são controladas por aspectos físicos e psíquicos dos quais nem sempre temos consciência. A neurobiologia pode ajudar a entender como escolhemos nosso destino.
Em um canto remoto do Universo, em um pequeno planeta azul gravitando em torno de um sol monótono, nos distritos exteriores da Via Láctea, organismos surgiram da lama e do lodo primordial em uma longa luta pela sobrevivência. Apesar de todas as evidências desfavoráveis, essas criaturas bípedes se consideram extremamente privilegiadas, ocupando um lugar privilegiado em um cosmos de um trilhão de trilhões de estrelas. Vaidosos, muitos desses seres incorrem no ledo engano de acreditar que somente eles podem escapar da lei de ferro da causa e efeito que rege tudo. E pensam que podem agir assim por se valer de algo que chamam de livre-arbítrio, essa capacidade de tomar decisões. Mas será que somos mesmo tão livres em nossas escolhas?
A questão não é meramente uma ironia filosófica, mas nos diz respeito como poucas outras da metafísica. Trata-se, na verdade, do alicerce das noções de sociedade, responsabilidade, reconhecimento e culpa. Em última análise, diz respeito ao grau de controle que exercemos sobre nossa vida.
Pense numa situação prática. Imagine que você vive com alguém amoroso, encantador e está satisfeito com sua vida afetiva. Ou, pelo menos, era o que pensava até encontrar, casualmente, um estranho que lhe desperta grande atração e deixa sua vida de cabeça para baixo. Vocês conversam por horas no telefone, compartilham segredos mais íntimos e iniciam um jogo de sedução. Por outro lado, você percebe perfeitamente que tudo isso é errado do ponto de vista ético e pode causar estragos na vida de várias pessoas. Além disso, não há nenhuma garantia de um futuro feliz e produtivo se continuar essa história. No entanto, algo em você anseia por mudança.
Até que ponto de fato há interesse em resolver a situação? Esse tipo de escolha nos confronta com valores e desejos. Em princípio, você acha que pode terminar tudo. Mas, apesar de diversas tentativas, de alguma forma nunca consegue. Por que será?
Embora a filosofia tenha trazido grandes contribuições para o debate sobre o livre-arbítrio, podemos focar nas respostas – ainda que parciais – da psicologia, da física e da neurobiologia sobre esse antigo enigma.
TONS DE LIBERDADE
Recentemente, participei de um júri no Tribunal Distrital dos Estados Unidos, em Los Angeles. O réu era um membro de uma gangue de rua que contrabandeava e traficava drogas. Ele era acusado de assassinar um colega de quarto com dois tiros na cabeça. Enquanto a cena do crime era discutida com parentes e membros atuais e passados da gangue (alguns algemados e vestidos com macacão laranja de prisioneiro), eu pensava sobre as forças individuais e sociais que moldaram aquele rapaz, sentado na cadeira do réu. Alguma vez ele teve escolha? A educação violenta que recebeu o transformou em assassino? Felizmente, o júri não foi chamado para responder a esses questionamentos complexos ou determinar a punição. Tivemos apenas de decidir, mesmo com alguma dúvida, se acreditávamos que ele seria culpado da acusação: atirar em certa pessoa num determinado lugar e numa ocasião específica. Foi o que fizemos. De acordo com o que alguns chamam de livre-arbítrio, um conceito articulado por René Descartes no século 17, somos livres se, em circunstâncias idênticas, podemos agir de formas diferentes. Condições análogas se referem não só a fatos externos, mas também a estados mentais. Assim, a mente pode escolher com autonomia, permitindo que a consciência expresse seus desejos, assim como um motorista que guia um carro pode optar por qual estrada prefere ir. Esse é um dos pontos de vista mais aceitos pelo senso comum.
Agora, compare essa forte noção de liberdade com uma concepção mais pragmática chamada “compatibilismo”, a visão dominante em alguns círculos biológicos, psicológicos, jurídicos e médicos. Segundo essa ideia, somos livres se podemos seguir nossos próprios desejos e preferências. Por exemplo, um fumante de longo prazo que tenta parar, mas reincide, não é livre – seu desejo é frustrado pela dependência. Segundo essa definição, poucos de nós somos totalmente livres.
São raras as pessoas “autônomas” que me vêm à mente: Mahatma Gandhi, com sua força de aço, deixava de comer por semanas a fio por um propósito ético elevado. Também o monge budista Thich Quang Duc, que cometeu autoimolação para protestar contra o regime repressivo no sul do Vietnã, em 1963. A natureza calma e deliberada de seu ato heroico, capturada por fotografia, é assombrosa. Enquanto queima até a morte, Duc permanece na posição de lótus meditativo, sem mover um músculo ou emitir qualquer som, enquanto as chamas o consomem. Para o resto de nós que, muitas vezes, luta para não comer a sobremesa, a liberdade é sempre uma questão de grau, e não um bem absoluto que temos ou não.
UNIVERSO MECÂNICO
O direito penal reconhece casos de responsabilidade diminuída. O marido que bate no amante de sua mulher até a morte durante um ataque cego de fúria depois de pegar o casal em flagrante é considerado menos culpado do que se tivesse premeditado uma vingança semanas mais tarde. O norueguês Anders Breivik, que disparou a sangue-frio contra mais de 60 pessoas, em julho de 2011, foi diagnosticado como esquizofrênico paranoico. Considerado um criminoso insano, será confinado em uma instituição psiquiátrica. A sociedade contemporânea e o sistema judicial são construídos a partir dessa noção pragmática e psicológica de liberdade. Mas é possível ir mais fundo e investigar as causas por trás de ações tradicionalmente consideradas “livres”.
Em 1687, o célebre físico e matemático inglês Isaac Newton publicou a obra Principia, com três volumes, na qual enunciou a lei da gravitação universal e as três leis do movimento. A segunda lei de Newton relaciona a força trazida a um sistema (por exemplo, uma bola de bilhar rolando sobre o feltro verde da mesa) à sua aceleração. Esse postulado tem consequências profundas, pois implica que posições e velocidade de todos os componentes que constituem uma entidade, em qualquer momento particular, juntamente com a força entre eles, determinam inalteravelmente o destino dessa unidade – isto é, sua futura localização e velocidade.
Essa é a essência do determinismo. A massa, a localização e a velocidade dos planetas (que viajam em suas órbitas ao redor do Sol) estabelecem onde estarão em mil, um milhão ou bilhão de anos a partir de hoje, contanto que todas as forças que agem sobre eles sejam devidamente contabilizadas. Uma vez em movimento, o Universo segue seu curso inexorável, como um relógio.
O caos determinístico, porém, é um grande choque contra essa noção de que o futuro pode ser previsto com precisão. O meteorologista Edward Lorenz, morto em 2008, deparou com esse complexo sistema enquanto resolvia três equações matemáticas simples que caracterizam o movimento da atmosfera. A solução prevista pelo programa de computador variava muito quando inseria valores iniciais que diferiam em pequenas quantidades. Essa é a marca do caos: irregularidades infinitesimais em pontos de partida das equações conduzem a resultados radicalmente diferentes. Em 1972, Lorenz cunhou o termo “efeito borboleta” para designar essa extrema sensibilidade às condições iniciais: o bater de asas de uma borboleta cria ondulações quase imperceptíveis na atmosfera que, finalmente, alteram o caminho de um tornado em outro lugar. Extraordinariamente, essa dependência sensível às condições iniciais foi encontrada nas engrenagens celestes, o resumo do universo mecânico. Planetas movem-se majestosamente, impulsionados pela rotação inicial da nuvem que formou o sistema solar. Foi uma incrível surpresa descobrir, por meio da modelagem computacional, na década de 90, que Plutão tem uma órbita caótica, com um tempo de divergência de milhões de anos. Astrônomos não podem afirmar se o planeta estará desse ou do outro lado do Sol (em relação à posição da Terra) daqui a 10 milhões de anos! Se a incerteza vale para um objeto com uma composição interna relativamente simples, que se move no vácuo do espaço sob uma única força, a gravitacional, imagine tentar prever o destino (influenciado por fatores incalculáveis) de uma pessoa ou de uma minúscula célula nervosa.
ORIGENS DA INCERTEZA
No entanto, o caos não invalida a lei natural de causa e efeito. Ele continua a reinar. Físicos planetários podem ter dúvidas sobre onde Plutão estará em algumas eras, mas têm certeza de que sua órbita será completamente dependente da gravidade para sempre. O que se rompe no caos não é a cadeia de ação e reação, mas a previsibilidade. O Universo é um relógio gigantesco, mesmo que não tenhamos certeza para onde os minutos e as horas vão apontar daqui a uma semana.
O golpe mortal contra a teoria de Newton foi o célebre princípio da incerteza da mecânica quântica, formulado por Werner Heisenberg em 1927. O enunciado impõe restrições à precisão com que se podem efetuar medidas simultâneas de uma classe de pares de observáveis em nível subatômico. Basicamente, ele afirma que qualquer partícula, por exemplo um fóton de luz ou um eletro, não pode ter posição e impulso definidos ao mesmo tempo. Se a velocidade é precisa, a posição é correspondentemente mal definida, e vice-versa. O princípio da incerteza de Heisenberg é uma ruptura radical com a física clássica, substituindo a certeza dogmática pela ambiguidade.
Considere um experimento em que há 90% de probabilidade de um elétron estar aqui e 10% lá. Se a experiência for repetida mil vezes, em aproximadamente 900 a partícula estará numa posição e 100 noutra. O resultado estatístico, porém, não estabelece onde o elétron estará na próxima verificação. Albert Einstein nunca pôde se reconciliar com esse aspecto aleatório da natureza. Foi nesse contexto que disse “Deus não joga dados”.
O Universo tem um caráter irredutível, aleatório. Se fosse um relógio, suas engrenagens, molas e alavancas não seriam fabricadas na Suíça, pois não seguem um caminho definido. O determinismo físico foi substituído pelo determinismo das probabilidades. Nada mais é certo.
Mas espere! Há sérias objeções. Não há dúvida de que o mundo macroscópico da experiência humana é construído sobre o mundo quântico microscópico. No entanto, isso não implica que objetos do cotidiano, como os carros, herdam todas as propriedades misteriosas da mecânica quântica. Quando estaciono meu mini conversível vermelho, sua velocidade é zero em relação ao solo. Ele é extremamente pesado em comparação com um elétron, portanto a imprecisão associada à sua posição é, para todos os efeitos, nula.
Automóveis têm estruturas internas relativamente simples. Já o cérebro de abelhas, cães beagles e meninos, é extremamente diferente: os componentes que o constituem têm um caráter frenético. A aleatoriedade é evidente em todos as regiões do sistema nervoso, desde neurônios sensoriais receptores de imagens e aromas até células neurais motoras que controlam os músculos do corpo. Não podemos descartar a possibilidade de que a indeterminação quântica também leva à indefinição comportamental.
A aleatoriedade pode desempenhar um papel funcional. Uma mosca perseguida por um predador que faz uma virada de voo abrupta e repentina tem mais chances de ver a luz do dia por mais tempo do que um inseto mais previsível. É provável que a evolução favoreça circuitos que exploram a aleatoriedade quântica para certos atos ou decisões – e tanto a mecânica quântica quanto o caos determinístico levam a resultados imprevisíveis.
DE PRONTIDÃO
Deixe-me voltar a terra firme e falar sobre um experimento clássico que convenceu muita gente de que o livre-arbítrio é uma ilusão. O estudo foi feito no início de 1980 pelo neuropsicólogo Benjamin Libet, da Universidade da Califórnia em São Francisco.
O cérebro e o mar têm algo em comum: ambos são incessantemente agitados. Um eletroencefalograma (EGG) permite visualizar esse alvoroço por meio das pequenas flutuações do potencial elétrico (de alguns milésimos de volts) na parte de fora do couro cabeludo. Assim como um sismógrafo, o traçado do EGG se move freneticamente, registrando tremores invisíveis do córtex. Sempre que a pessoa testada está prestes a mover um membro, um potencial elétrico (ou de prontidão, como os cientistas chamam) aumenta. O fenômeno precede o início real do movimento por um ou mais segundos.
Intuitivamente, acreditamos numa certa sequência de eventos que leva a um ato voluntário. Quando decidimos levantar uma das mãos, o cérebro comunica essa intenção aos neurônios responsáveis pelo planejamento e execução dos movimentos relacionados. Essas células neurais transmitem os comandos apropriados para as motoras, que por sua vez contraem os músculos do braço. Libet, porém, não se convenceu desse processo. Não seria mais provável que o cérebro agisse ao mesmo tempo que a mente? Ou até mesmo antes?
O neuropsicólogo decidiu determinar o momento em que acontece um evento mental, quando uma pessoa toma uma decisão deliberada, e compará-lo com o tempo de um evento físico, o início do potencial de prontidão após a decisão. Ele projetou numa tela um ponto de luz brilhante que girava em círculo, como a ponta do ponteiro dos minutos do relógio. Um grupo de voluntários, submetidos a um exame de EGG com eletrodos, deveria flexionar o pulso espontânea e deliberadamente. Os participantes agiram no momento em que prestaram atenção à posição da luz, quando se tornaram conscientes da necessidade de fazer algo.
Os resultados foram inequívocos e reforçados por experiências posteriores. O início do potencial de prontidão antecede a decisão consciente de agir por meio segundo ou mais. O cérebro age antes de a mente decidir! A descoberta é uma completa inversão da intuição profundamente arraigada da causação mental.
DECISÃO CONSCIENTE
Se quiser, pode tentar repetir a experiência: flexione os pulsos. Você experimenta três sentimentos relacionados (mas diferentes): o planejamento para se mover (intenção), sua disposição (um sentimento que os especialistas chamam “de autoria”) e a sensação provocada pelo movimento em si. Mas se um amigo dobra sua mão você vivencia somente o movimento, ou seja, não se sente responsável pela ação. Essa ideia, não raro, é negligenciada nos debates sobre livre-arbítrio: o nexo mente-corpo cria uma experiência específica e consciente de “eu quis isso” ou “sou o autor dessa ação”.
O psicólogo Daniel Wegner, pesquisador da Universidade Harvard, é um dos pioneiros dos estudos modernos da volição. Em um experimento, ele pediu a uma voluntária que usasse luvas e ficasse na frente de um espelho, com os braços pendentes. Um membro do laboratório, vestido de forma idêntica, se posicionou atrás dela, estendendo seus braços sobre as axilas da moça, de modo que quando ela olhasse sua imagem refletida tivesse a impressão de que as mãos eram suas. Os dois usavam fones de ouvido, por meio dos quais Wegner emitia instruções, como “bater palmas” ou “estalar os dedos da mão esquerda”. A voluntária deveria informar em que medida acreditava que as ações das mãos do assistente do laboratório eram dela. Quando ouvia as coordenadas do psicólogo antes que as mãos alheias se levantassem, relatava maior sensação de ter desejado realizar a ação, em comparação com os momentos em que as instruções de Wegner vinham depois.
Diversos neurocirurgiões, acostumados a sondar o tecido cerebral com breves pulsos de corrente elétrica, sublinham a veracidade da sensação de intenção. Em um experimento, o cirurgião ltzhak Fried, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, estimulou a área motora suplementar (situada no córtex cerebral e próxima ao córtex motor primário), desencadeando a necessidade de movimentar um membro. O neurocientista cognitivo Michel Desmurget, do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica, e a neuropsicóloga Angela Sirigu, do Instituto de Ciência Cognitiva, na França, descobriram algo semelhante ao estimular o córtex parietal posterior, uma área responsável por transformar informações visuais em comandos motores. “Senti que queria mover um dos pés, mas não sei explicar o motivo”, disse um dos voluntários. “Fiquei com vontade de rolar a língua pela boca”, acrescentou outro. O sentimento surgiu sem que houvesse sugestão do examinador. Com isso, aprendi duas lições. Primeira: uma concepção mais pragmática sobre o livre-arbítrio. Eu me esforço para viver o mais livre possível de restrições. A única exceção se refere ao controle deliberado e consciente que me imponho, geralmente motivado por preocupações éticas, como não ferir os outros e tentar deixar o planeta melhor do que encontrei. Outras considerações incluem vida familiar, saúde, estabilidade financeira e consciência. Segunda: tento entender melhor minhas motivações inconscientes, desejos e medos. Procuro refletir mais profundamente sobre minhas próprias ações e emoções do que quando era mais jovem.
O que proponho não é nenhuma novidade. São lições que homens sábios de diversas culturas ensinam há milênios. Os gregos antigos tinham o aforismo seauton gnothi (conhece-te a ti mesmo) inscrito acima da entrada do Templo de Apolo, em Delfos. Os jesuítas mantêm a tradição espiritual de aproximadamente 500 anos, segundo a qual é imprescindível examinar a consciência duas vezes ao dia. Os budistas examinam seus atos quando se sentam para meditar e, a partir daí, refazem o compromisso pessoa de renunciar ao que faz mal e se aproximar daquilo que realmente querem para si. Esse interrogatório interno constante aguça a sensibilidade para nossas ações, vontades e motivações. A atitude permite não só nos compreendermos melhor, mas também vi vermos mais harmoniosamente conosco e com nossas metas de longo prazo.
INTERDEPENDÊNCIA:
o termo “efeito borboleta” foi cunhado por Edward Lorenz, em 1972, para designar a extrema sensibilidade às ligações que os seres e os fenômenos têm uns com os outros: o bater de asas cria ondulações quase imperceptíveis na atmosfera que, finalmente, alteram o caminho de um tornado em outro lugar do planeta
CHRISTOF KOCH – é diretor científico do Instituto Allen de Ciências do Cérebro, em Seattle, e professor de biologia comportamental cognitiva do Instituto de Tecnologia da Califórnia. Adaptado de Consciência: confissões de um reducionista romântico, por Christof Koch. © Instituto de Tecnologia de Massachusetts, 2012. Todos os direitos reservados.