MUDANÇAS NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS
A era virtual trouxe inúmeros benefícios, mas alguns problemas também surgem. As pessoas começam a fugir da interação pessoal, provocando o que pode ser chamado de solidão real.
Não há como negar que, antes da era virtual chegar, a aproximação física das pessoas era maior e as relações interpessoais mais coesas. As conversas e negociações eram cara a cara, as brincadeiras entre as crianças eram na rua, as refeições e viagens de carro eram recheadas de papos, músicas e brincadeiras até a chegada ao destino final.
As famílias colecionavam revistas e enciclopédias para as pesquisas escolares e, quando não encontravam o assunto pesquisado, os estudantes recorriam a bibliotecas onde interagiam com bibliotecários e outros estudantes.
Quando faltava luz, a distração das famílias era brincar junto até que a luz retornasse. Além das brincadeiras habituais, como mímica e jogos diversos, tinha a divertida brincadeira de criar sombras e até mesmo fábulas com a sombra da luz das velas.
As tardes e os finais de semana eram recheados de interação e diversão. As crianças corriam, exercitavam-se mais e pegavam mais sol. Piscina, praia, futebol, queimada, piques, pipa e bolinha de gude eram brincadeiras que uniam as crianças diariamente.
As pessoas, frequentemente, faziam visitas aos amigos e parentes para ter notícias e conversar. Era comum ver pessoas sentadas na porta de casa ou grupos de amigos reunidos nas calçadas papeando, enquanto seus filhos brincavam por ali; todos se divertindo juntos.
As datas de aniversário eram motivo para as famílias se reunirem. Momento em que cada família largava sua rotina e afazeres e se reunia para comemorar e matar as saudades da família inteira. Primos, tios, avós e sobrinhos curtiam momentos com mais frequência. Os mais velhos, podiam relembrar suas histórias e passar informações valiosas a seus descendentes. Primos eram criados mais próximos e as famílias pareciam mais unidas com este contato mais estreito. Com a chegada do rádio e da TV, esse quadro já começou a se modificar. Inicialmente, as famílias ainda se reuniam na sala, para ouvir ou assistir a seus programas favoritos no único aparelho de rádio ou TV existentes na casa. Mais tarde, a aquisição de novos aparelhos que eram colocados nos quartos provocou o afastamento dos integrantes da família. Cada um isolava-se em seu quarto, onde podia assistir ao programa escolhido. Hoje não é difícil notar filhos trancados em seu quarto, assistindo na sua televisão o mesmo programa que os pais estão assistindo na sala.
Mais à frente, a internet chegou revolucionando, e muito, as coisas. Trouxe, sem sombra de dúvida, muitas facilidades, rapidez e avanços. Notícias que demoravam meses ou dias para chegar, via correios, passam a chegar na mesma hora em quase todos os lugares. Reuniões e negócios podem ser fechados por conferências on-line. Pessoas poupam tempo e dinheiro resolvendo assuntos importantes de sua própria residência ou empresa. Muitos deixam de sair de casa para fazer compras ou movimentar sua conta bancária. Até acompanhar a adaptação dos filhos na escola ou monitorar o dia a dia deles em casa tornaram-se possíveis com o advento da era virtual, de qualquer lugar e em tempo real.
Hoje, amizades e namoros surgem virtualmente. E nem sempre esse novo tipo de relação se dá com pessoas que moram no mesmo bairro, cidade ou país. Cada vez mais vemos pessoas se relacionando a distância com pessoas que, às vezes, nunca poderão encontrar pessoalmente.
Alguns problemas também surgem com a chegada dessa era – as pessoas começam a fugir da interação pessoal, seja pelo motivo que for: timidez, baixa estima, problemas com sua autoimagem. E começam a se esconder atrás dos aparelhos digitais como única maneira possível de se relacionarem ou quando a conversa, as refeições e a convivência familiar e social são prejudicadas pelo uso excessivo de tablets, computadores ou celulares.
Na era virtual, pessoas são substituídas por máquinas, perdendo inclusive seus empregos e o meio de sustentarem suas famílias. As empresas lucram com isso. E, cada vez mais, tratamos e nos relacionamos com máquinas para fazer o pedido de uma refeição, pagar o ticket do estacionamento, comprar entradas para uma sessão de cinema etc.
Pessoas retraídas, que temem por algum motivo o contato físico, tendem a preferir manter relações virtuais. Relações nas quais crianças, jovens e adultos optam por trocar os encontros e reuniões para permanecer teclando ou falando a distância. Os jogos e diversões em grupo dão lugar a disputas on-line com pessoas do mundo todo.
MUNDO PARALELO
Nas “relações virtuais”, podemos ser quem queremos e dizer que temos ou fazemos o que desejamos. Isso faz com que algumas pessoas criem um mundo paralelo e ilusório, muitas vezes, confundido com o mundo real. Podem-se criar identidades falsas, nas quais os traços da personalidade, os gostos, as aptidões e até a descrição da casa ou dos familiares próximos são criados com o objetivo de atrair e agradar os demais.
Isso normalmente passa a ocorrer com pessoas que apresentam baixa estima e que, de alguma forma, reprovam alguns aspectos seus, julgando ou temendo que sejam reprovados pelo outro, podendo resultar em experiências dolorosas de rejeição a sua pessoa. Essas pessoas, via de regra, já passaram por experiências traumáticas nesse sentido, sendo motivo de chacota entre seus colegas ou sendo excessivamente criticados/reprovados em casa por seus familiares ou por alguém que elas admiram e colocam numa posição de destaque e importância em sua vida.
As vítimas em potencial das relações exclusivamente virtuais costumam ser pessoas que não aprenderam a perceber seu valor e, muitas vezes, não conseguem identificar nada de bom, belo ou positivo nelas mesmas. Por isso, elas acreditam que são o que os outros disseram dela e se reduzem a algo bem distante do que realmente são.
Podem ser pessoas diferentes das demais, digo diferente fisicamente, intelectualmente ou emocionalmente, por exemplo. O que não quer dizer que sejam superiores ou inferiores; apenas diferentes e em algum momento de suas vidas foram incapazes de perceber e fazer com que outros percebessem e valorizassem essas diferenças de forma positiva. O que enriquece as relações sociais são justamente as diferenças. Precisamos aprender a lidar com as diferenças de forma a não julgar, excluir, humilhar ou sobressaltá-las. Somos e seremos superiores em relação ao outro em alguns aspectos e inferiores em relação a outros, e essa conta sempre termina equilibrada no final.
Todos nós temos pontos fortes e fracos. Precisamos parar de apontar o ponto fraco do outro para nos fortalecer ou tirar qualquer tipo de vantagem ou proveito. Mas, para que isso não aconteça mais, é preciso que as pessoas se conheçam e reconheçam tal como são. Que aceitem que são dotadas de qualidades e fraquezas como todas as outras. E reconheçam boa parte desses pontos. Uma vez que conhecemos bem a nós mesmos dificilmente ficamos na mão ou somos levados pelo julgamento superficial e distante que fazem da gente. Precisamos estar atentos à leitura que se faz da gente, pois ali pode haver informações úteis a nós. Podemos julgar que algo em nós precisa e pode ser modificado. Mas jamais podemos nos reduzir àquilo que o outro enxerga na gente. Com certeza, somos muito mais do que alguém pode notar em nós.
Por vezes, as pessoas enxergam em nós aspectos que elas mesmas trazem em si. Servimos como uma espécie de espelho, onde o outro projeta sua própria imagem para enxergar aspectos que necessitam de mudança ou revisão. Não aceitemos o lixo do outro como nosso! Um caminho importante para evitar cair na solidão da era virtual é o fortalecimento da autoestima através do autoconhecimento, e se a pessoa notar que não é capaz de alcançar isso sozinha, se ela não consegue colocar no papel uma longa lista das qualidades que possui, precisa procurar ajuda profissional. Pois sem isso, ela corre o risco de se tornar refém do jugo do outro e se subjugar, se empobrecer e se submeter a situações difíceis e dolorosas desnecessariamente.
A era virtual permite que se viva ou fale quase tudo que não se consegue pessoalmente. Os riscos de constrangimento e humilhação para os envolvidos são menores. Os tímidos se empoderam, se fortalecem e se permitem falar de forma mais assertiva e firme. Teclando não se gagueja, não se pode ver o rubor na face nem o embaraço desconcertante que algumas situações provocam. Teclando, pode se pedir alguém em namoro sem que o pavor nos paralise.
Mas tudo isso acaba impedindo, ainda mais, a aproximação física, já que esse mecanismo chega possibilitando o relacionamento virtual e, de alguma forma, reforça a permanência das dificuldades enfrentadas pela pessoa que não consegue manter uma relação pessoal (cara a cara).
Imaginando as situações nas quais foram criados um falso personagem ou uma realidade para lidar ou atrair pessoas, a aproximação colocaria em risco a descoberta de todas as mentiras e a possibilidade de ruptura da nova relação.
E o que começa a ser usado para resolver uma dificuldade de criar uma aproximação física com alguém acaba se tornando uma fonte de isolamento e solidão eternos. E a autoestima dos que usam o virtual para tentar amenizar a solidão real permanece abalada e comprometida.
No virtual, evita-se o mal-estar existente nas “relações reais”, nas quais precisamos lidar com situações de disputa, confronto, decepções e humilhações, por exemplo. E, ao se privar desse tipo de vivência, o jovem acaba se privando de amadurecer e aprender sobre si mesmo, sobre o outro e sobre a sua relação com o outro. O fato é que a cada situação difícil e desconcertante vamos aprendendo e fortalecendo características em nós. E, sem isso, vamos nos tornando incapazes de nos relacionar de forma saudável e madura, fortalecendo cada vez mais a carapaça que nos protege do mundo hostil e distante.
E quanto mais evita esse contato e interação cara a cara, menos o sujeito tem a oportunidade de se conhecer, de saber seus limites e criar caminhos para lidar com situações negativas. E, dessa forma, ele vai se julgando cada vez menos capaz de lidar de forma satisfatória com os demais e diminuindo a possibilidade de passar a fazer algum contato real.
Quanto mais ela cria falsos perfis, contendo todas as características e qualidades que a “vítima da era virtual” gostaria de ter e julga que são importantes e valorosas para atrair alguém, menos oportunidades tem de reconhecer quais características ela, de fato, possui que farão com que as pessoas a conheçam e gostem dela. Essa permanência apenas no mundo virtual passa pela crença limitante e irreal de que ela nada possui para atrair ou agradar o outro.
EDUCAÇÃO INFANTIL
A era virtual facilitou, e muito, a vida das mamães de crianças pequenas e de suas famílias como um todo. Que família conseguimos ver fazendo uma refeição junto ou conversando tranquilamente se trazem consigo uma criança pequena a um restaurante? Como lidariam com a impaciência das crianças da era virtual se não tivessem as milhares de distrações que se têm hoje para elas?
Um pequeno trajeto no assento infantil, para muitos, torna -se um pesadelo se as crianças não possuem algum aparelho que as distraia. Lápis e papel ou brinquedinhos já não prendem a atenção por muito tempo.
E, com isso, as crianças aprendem cada vez menos a esperar. Tornam-se intolerantes e cada vez mais exigem que suas necessidades sejam prontamente atendidas. Um trajeto, uma fila, uma consulta médica, a refeição com seus familiares… nada mais pode ser suportado por uma criança dessa era. E por qual motivo? Por causa dos avanços maravilhosos que ocorreram, nos trazendo produtos e tecnologia para facilitarem nosso dia a dia? Ou pelo mau uso que estamos fazendo desses produtos?
Vemos pais que se sentem culpados pela carga excessiva de trabalho e o pouco tempo oferecido a suas famílias, tentando suprir sua ausência com presentes sem fim. Vemos filhos ocupando seu tempo ocioso e sua carência afetiva com a criação de hábitos e por vezes vícios como: vídeos, jogos, séries, grupos virtuais etc. O resultado disso tudo acaba tomando uma proporção tal que cria marcas irreversíveis nos envolvidos e prejuízos devastadores à relação familiar. Quanto mais tempo mantemos o afastamento e o isolamento dos familiares, mais difícil se torna a reconexão.
Podemos observar crianças bem pequenas superestimuladas por celulares e tablets. Recebem muito estímulo visual e motor e um excesso de informações quando ainda não possuem maturidade suficiente para tal.
Não se pode negar que essa prática facilita e muito a vida das mamães, com diversas tarefas para executar e muitas vezes sem ter quem cuide de suas crianças. Mas, para as crianças, isso não tem sido uma boa alternativa. Vemos crianças e jovens com a saúde comprometida por isso. Quase não tomam sol, realizam pouco exercício físico e desenvolvem problemas como obesidade, colesterol e até trombose ainda na infância. Além disso, aprendem desde cedo a se distrair com aplicativos e vídeos ao invés do convívio com outras pessoas.
PREJUÍZOS
O grande prejuízo das relações nessa era está no uso que fazemos dos aparelhos, que deveriam ser utilizados para unir pessoas e agilizar a transmissão da informação de pessoas que estão distantes e impossibilitadas de se encontrar naquele momento, mas que acabam sendo usados para outros fins. E, ao invés de unir, separam. Em vez de recuperar relações distantes e suprir a falta das pessoas em sua ausência, causam a falta de pessoas que estão fisicamente próximas, mas afetivamente isoladas.
Quem não nota hoje em dia mesas ocupadas por familiares que estão reunidos fisicamente para uma refeição e, ao mesmo tempo, permanecem isolados uns dos outros, com sua atenção capturada por seus aparelhos celulares? Cada um deles está ocupado olhando, falando ou teclando com algum outro alguém que não está ali fisicamente presente ou interagindo com a máquina. E, enquanto isso, aquelas pessoas não interagem entre si, trocando afeto e atenção. São exemplos de casos em que os aparelhos modernos são usados de forma a empobrecer as relações ao invés de favorecê-las.
Além da solidão, presenciamos hoje casos em que crianças, jovens ou adultos se pegam viciados em vídeos, jogos e aplicativos, e suas atividades diárias e compromissos acabam prejudicados pelo uso excessivo e desmedido desses produtos. Baixo rendimento escolar, prejuízo no sono, alimentação ruim, falta da prática de esportes, tudo isso como consequência do vício adquirido. Suas relações pessoais também sofrem as implicações desse vício que toma todo o tempo, livre ou não, de sua vítima.
As vítimas desse tipo de tecnologia não conseguem, sequer, entender como uma atividade despretensiosa e divertida acabou tomando aquela proporção em sua vida. E o que vemos, normalmente, é que eles acabam ocupando um lugar no que diz respeito à anestesia da dor, ao abafamento das carências e insatisfações pessoais e à distração do tempo ocioso.
Para não ter que lidar com conflitos ou situações difíceis vemos pessoas se anestesiando e se escondendo atrás de aparelhos tecnológicos. Na impossibilidade real ou imaginária de enfrentar e atravessar as situações desafiadoras vemos pessoas se distraindo de seus problemas com aparelhos eletrônicos. Digo distraindo porque o problema ou dificuldade continua ali, do mesmo jeito, já que nada se fez ou faz para solucioná-lo. O que se faz é desviar a atenção dele e ignorá-lo, tentando viver como se ele não estivesse ali.
Desse jeito, qual a perspectiva que se tem da resolução dessa questão ou dificuldade enfrentada pela “vítima da era virtual”? Nenhuma. É preciso encarar o mal-estar a fim de descobrir sua causa e buscar sua solução. Ignorar, tamponar ou anestesiar não trarão um resultado satisfatório para nenhuma das partes.
Nos tornamos reféns das coisas. Passamos a ser controlados por elas, uma vez que criamos dependência delas. Julgamos que não somos capazes de solucionar ou superar uma dificuldade e nos escondemos atrás de coisas que não nos garantem satisfação e felicidade. Não podemos trocar as coisas pelas pessoas e continuarmos a nos sentir felizes e nutridos. As coisas devem servir para facilitar e unir pessoas. Elas não podem substituí-las.
O enfrentamento da dificuldade nas relações trará às pessoas informações valiosas acerca delas mesmas, do mundo e das pessoas com as quais convivem. É nesse movimento que cada um percebe o que precisa ser modificado na relação para conseguir restabelecer o bem-estar e a tranquilidade. Por vezes, essa mudança deverá ocorrer em si mesmo. A forma de encarar algo, de sentir, de agir ou reagir podem não estar adequadas à situação atual. A dificuldade pode sinalizar também para a necessidade de mudança em algo no outro ou em ambos. E sempre será necessário que os envolvidos desenvolvam habilidades preciosas, como um bom diálogo, boa vontade, cooperação, perdão, empatia e tolerância para ultrapassar e vencer as dificuldades iniciais apresentadas.
Então, se pudermos utilizar os aparelhos da era virtual para nos unir e divertir o grupo, ao invés de disfarçar e, consequentemente, manter a solidão, estaremos sendo verdadeiramente beneficiados por essa era.
OLHAR CRÍTICO DE LACAN PARA FREUD
m dos principais psicanalistas do século XX, e ainda hoje referência, o francês Jacques- Marie Emile Lacan (1901-1981) se dedicou ao estudo da Psicanálise, sob o ponto de vista da Ciência e da Filosofia, integrando as correntes de intelectuais que nasceram e viveram na França nos anos 50 e 60. Controverso e diverso no pensamento, o seu trabalho conceituai e investigativo chegou aos ouvidos e olhos de vários profissionais da área, influenciando até aqueles que hoje se afirmam como os principais pensadores da atualidade. A sua visão da Psicanálise é voltada para um regresso, embora crítico, aos postulados de Sigmund Freud. Essa abordagem levou-o a discordar da visão freudiana, procurando se voltar para a teoria da relação dos objetos na teoria da Psicanálise, influenciada pela visão psicodinâmica (introduzida também por Freud e que estuda as forças psicológicas que influenciam o comportamento e o crescimento humano). O foco vai também para o desenvolvimento infantil, embora se concentre na construção da psique na relação com os outros, em essencial com a família. Isso formula, em grande parte, a maneira como se relaciona com a sociedade e os seus diversos agentes.
Daniele Vanzan – é psicóloga e especialista em Psicologia Jurídica. Formou-se posteriormente em Terapia de Vida Passada (Terapia Regressiva) e Constelação Sistêmica. Atualmente, atende e ministra cursos para terapeutas interessados nessas áreas de atuação. Autora de dois livros infantis junto Editora Boa Nova: Não Consigo Desgrudar da Mamãe, que versa sobre a ansiedade de separação, e Eu Sou o Rei de Todo o Mundo, que aborda a problemática das crianças que têm dificuldade de aceitar limites. São livros destinados a crianças e adultos que necessitam de informações e orientações acerca desses temas.