O QUE FOI QUE EU DISSE?
A troca de palavras e a inversão de sílabas, os chamados lapsos verbais, revelam como a linguagem se estrutura além das intenções puramente racionais.
Às vezes cômicos, às vezes constrangedores, os lapsos de linguagem dificilmente passam despercebidos. Se o autor do deslize é alguém famoso, na certa o episódio vai parar na TV, na internet, nos jornais e nas revistas. Foi assim que a secretária de Estado americana Condoleezza Rice fez o mundo inteiro rir quando disse a um jornalista que a questionava sobre projetos dos Estados Unidos no Iraque: “Você deve perguntar ao meu mari…, quer dizer, ao presidente”. Todo mundo sabe que Rice é solteira, e mesmo assim não houve piadinhas maldosas aludindo a um possível romance entre ela e George W. Bush, possivelmente porque seu lapso revelava cumplicidade intelectual e um tipo de vínculo cotidiano muito semelhante ao do casamento, sem significar necessariamente adultério.
O então presidente dos Estados Unidos é recordista em lapsos. Acumulou tantos, e tão particulares, em suas aparições públicas, que deu origem ao neologismo “bushismo”- que naquele país é usado para referir as gafes linguísticas do presidente. Mesmo sendo difícil superar Bush, o presidente Lula não fica muito atrás. Numa entrevista coletiva em 2005, em meio a denúncias de corrupção envolvendo membros de sua equipe, disse: “Eu durmo com minhas cabeças tranquilas”. Mas, além da diversão que proporcionam ao público e do embaraço que causam aos autores, o que são exatamente os lapsos? Por que acontecem? O que podem nos dizer sobre o funcionamento de mente?
Entre os precursores das pesquisas sobre lapsos de linguagem estão o filólogo Rudolf Meringer e o psiquiatra Karl Meyer. Juntos, eles publicaram, em 1895, o livro Erros na fala e na leitura: um estudo psicológico, no qual constam cerca de 8.800 erros verbais de escrita e de leitura. O principal objetivo era elaborar classificações, mas os autores também tentaram determinar a existência de mecanismos psíquicos associa dos ao fenômeno, particularmente aos sons proferidos, pois atribuíam valor psicológico aos fonemas.
Quem abordou o lapso com mais profundidade foi Sigmund Freud no texto Psicopatologia da vida cotidiana, de 1901. O pai da psicanálise não poupou críticas à abordagem de Meringer e Mayer e propôs que o lapso seria a confissão involuntária de um conflito interior, de um pensamento escondido em si mesmo e removido da consciência. Para Freud, é a dimensão involuntária que dá valor particular ao lapso. “No procedimento psicoterapêutico que utilizo para resolver e eliminar os sintomas neuróticos apresenta-se com frequência a tarefa de encontrar um conteúdo mental nos discursos e nas ideias aparentemente casuais do paciente. Esse conteúdo tenta ocultar-se, mas não consegue evitar trair-se inadvertidamente de diversas maneiras. É para isso que, em geral, servem os lapsos. Por exemplo, falando da tia, um paciente insiste em chamá-la de ‘minha mãe’ sem perceber seu erro, ou ainda uma senhora que fala do marido como se fosse o ‘irmão’. Para esses pacientes, tia e mãe, marido e irmão são, portanto, ‘identificados’, ligados por uma associação pela qual se evocam mutuamente”, escreveu.
MEDOS E DESEJOS
Não há consenso sobre as interpretações psicológica e psicanalítica dos “escorregões” da fala. Para alguns autores, a explicação freudiana dos lapsos é útil apenas num número limitado de casos. Uma hipótese muito mais simples sugere que esse tipo de erro ocorre devido à complexidade cognitiva da linguagem. Segundo essa abordagem, os lapsos revelariam muito mais sobre sua estrutura e uso que sobre nossas intenções inconscientes. Hoje, algumas áreas da linguística e da psicolinguística consideram os equívocos fenômenos esperados no fluxo do discurso e os analisam como reflexos do mecanismo de produção da linguagem. No entanto, não conseguem explicar por que, quando investigados mais a fundo, os tropeços invariavelmente esbarram em conteúdos psíquicos inconscientes.
Essa constatação, entretanto, não elimina a evidência de que o lapso não é uma forma normal de comunicação, mas seu funcionamento fornece informações preciosas que ajudam a compreender certos aspectos cognitivos da fala. Isso não exclui, naturalmente, a interpretação freudiana, segundo a qual os lapsos expressam medos ou desejos que escondemos até de nós mesmos. Experiências realizadas nos anos 80 pelo pesquisador Michael T. Motley, da Universidade da Califórnia em Davis, ampliam o enfoque psicanalítico. Seu grupo elaborou uma série de testes que manipulavam os desejos dos sujeitos, induzindo-os a cometer enganos.
CONTRA O TEMPO
Grande parte do crédito à abordagem moderna do estudo dos lapsos cabe a Victoria Fromkin, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que nos anos 60 deu início a um paciente trabalho de coleta de milhares de exemplos. De suas pesquisas conclui-se que os lapsos verbais seguem, em geral, as mesmas regras. A troca de palavras (por exemplo, “sacuda os pratos e lave a toalha”), observada quando se invertem dois vocábulos na mesma frase, ocorre quase sempre com termos que pertencem à mesma categoria gramatical ou sintática (verbos por verbos, substantivos por substantivos). Já os lapsos de substituição, nos quais uma palavra é trocada por outra externa à frase, acontecem entre termos da mesma categoria semântica (“gato” no lugar de “cachorro”). É o caso, extremamente constrangedor, mas não raro, de alguém que vai ao velório e ao se dirigir à família do falecido diz “Parabéns” em vez de “Meus pêsames”.
Existem também erros de deslocamento (de um ponto a outro na frase), de perseverança (reutilização de um elemento depois de sua colocação no lugar correto), de antecipação (utilização de palavra ou sílaba antes de sua colocação correta) ou de amálgama (união de dois elementos para formar um terceiro, quase sempre inexistente). Um exemplo de lapso de perseverança é dizer que Roma foi fundada pelos irmãos “Rômolo e Rêmolo”, quando o correto é “Rômulo e Remo”.
Os enganos mais comuns implicam a troca de palavras e de fonemas, o que sugere que esses dois elementos são particularmente importantes na elaboração do discurso. No entanto, segundo a teoria linguística, existe uma hierarquia entre as várias unidades da linguagem (frase, palavra, morfema, sílaba, fonema), mas diversos tipos de lapsos podem ocorrer em qualquer um desses níveis.
Afinal, falar é uma tarefa cansativa. Uma verdadeira corrida contra o tempo. Escolhemos em média três palavras por segundo de um vocabulário de pelo menos 40 mil, que para serem pronunciadas recrutam aproximadamente 100 músculos. As possibilidades de errar, portanto, são inúmeras.
JOGOS LINGUÍSTICOS
Muitos lapsos terminam em brincadeira. Foi o caso do sacerdote anglicano e professor da Universidade de Oxford William Spooner (1844-1930), cuja inclinação para trocar a primeira letra ou sílaba das palavras tornou-se célebre, dando origem a uma categoria particular de jogos de palavras chamados “spoonerismos”. São atribuídos a ele lapsos como tons of sai/ (toneladas de terra) em vez de sons of toil (filhos do sacrifício) e our queer dean (o nosso excêntrico presidente) no lugar de our dear queen (nossa prezada rainha). O equivalente francês é a contrepeterie, espécie de jogo que parece ter sido introduzido na França pelo renascentista François Rabeiais (1483-1553). Entre os notáveis praticantes dessa “arte da palavra” estão outros franceses, como o escritor Victor Hugo (1802-1885), o pintor e escultor Marcel Duchamp (1887-1968) e o poeta Jacques Prévert (1900-1977), autor do trocadilho Partir c’est mourir un peu/ Martyr c’est pourrir un peu (partir é morrer um pouco/ mártir é apodrecer um pouco).
Na língua portuguesa, quando um fonema (ou um de seus elementos) é deslocado de uma sílaba a outra (por exemplo, tauba, no lugar de tábua) fala-se em hipértese – fenômeno muito comum no modo de falar caipira. Se essa troca se estender à frase (como no divertido “transmimento de pensaçâo”) temos a hipértese intervocabular. O que soaria apenas como uma brincadeira de palavras, uma informalidade jocosa da língua, tomou-se recurso literário nas mãos de escritores como Millôr Fernandes na fábula “A baposa e o rode”, escrita toda com spoonerismos. No poema “Diversonagens suspersas”, Paulo Leminski (1944-1989) juntou as palavras personagens, suspensas, dispersas para falar do fazer poético. Na literatura em geral, os erros linguísticos, longe de constranger, encantam e comovem. Como disse Leminski: “A única razão de ser da poesia é o antidiscurso. Poesia, num certo sentido, é o torto do discurso. O discurso torto”.