O CORPO PÓS-MODERNO
Se cérebro e corpo são a mesma coisa, a mente de um doador de órgãos seria incorporada ao transplantado?

O que é o corpo? Essa é uma pergunta que muitas vezes passa despercebida para os filósofos da mente quando eles se referem ao “problema mente-corpo”.
Nas últimas décadas, os progressos da neurociência levaram a reformular esse problema, que passou a ser o “problema mente cérebro”. Mas nem todos os neurocientistas pensam assim. António Damásio, por exemplo, afirma no seu livro E o cérebro criou o homem (2011) que “exagera-se a separação entre corpo e cérebro, pois os neurônios que compõem o cérebro são células corporais, e esse fato é de grande importância para o problema mente-corpo”.
Muitos filósofos da mente do século passado aderiram à ideia de tratar o problema mente corpo como o “problema mente- cérebro”. Outros, os fisicalistas, consideram o problema mente-corpo como uma variação de um problema mais amplo, o problema mente-matéria. Penso que essa é uma formulação muito vaga e que deveríamos atentar para o que há de específico quando se fala em relações entre mente e corpo. A matéria é composta por moléculas. Nosso corpo também é um conjunto de moléculas. Mas, como tudo é constituído por moléculas, essa explicação não ajuda muito.
No Tratado do homem (1662), Descartes concebia o corpo como um grande dispositivo hidráulico no qual todas as partes estavam ligadas por meio de nervos que funcionavamcomo cordas para movê-los. O corpo era percorrido por tubos (artérias e veias) que ligavam seus membros ao cérebro. Quando ele recebia um estímulo, os espírios animais, uma forma sutilíssima de matéria, eram transmitidos por meio desses tubos (veias e artérias) até chegarem ao cérebro, que os redistribuía e, com isso, acionava de volta outras cordas para fazer os membros se moverem. Nesse modelo mecânico, a distinção entre o movimento dos objetos físicos e o movimento muscular era a presença de um cérebro.
No caso dos seres humanos, os espíritos animais, além de chegarem ao cérebro, eram retransmitidos para a mente por meio da glândula pineal, um órgão abrigado sob as duas metades do cérebro. Descartes acreditava que a glândula pineal tinha propriedades especiais que a tornava m uma interface entre a mente e o corpo, duas entidades radicalmente distintas. Ele acreditava que os animais não possuíam mentes (ou almas) e, por isso, não tinham, tampouco, uma glândula pineal.
No entanto, a dissecação de animais revelou que as hipóteses de Descartes eram incorretas, pois alguns animais possuíam uma glândula pineal. Além disso, pesquisas realizadas na época mostraram que havia animais que não precisavam do cérebro para se mover. Um contraexemplo era a tartaruga que, mesmo tendo o cérebro amputado, ainda era capaz de se mover por três dias. O mesmo ocorria com cobras quando eram decapitadas.
Em um livro recentemente publicado, Novos horizontes no estudo da linguagem e da mente, Noam Chomsky observa que, apesar de as hipóteses fisiológicas de Descartes terem sido abandonadas, sua descrição do corpo por meio de uma metáfora mecânica não foi descartada pelos filósofos e cientistas que o sucederam. Até hoje a medicina concebe o corpo como uma máquina extraordinariamente complexa comandada por uma consciência. O problema é que nada foi proposto para substituir as ideias de Descartes.
Nas últimas décadas, a ideia de corpo foi se tornando cada vez mais complicada e elusiva. Sabemos, hoje em dia, que ao longo da evolução muitas espécies de bactérias foram incorporadas em células do corpo humano. Muitas bactérias vivem no nosso corpo em uma simbiose harmoniosa e há mais células bacterianas no interior de cada organismo do que células humanas. Só nos intestinos há cerca de 100 bilhões de bactérias, e no resto do corpo mais 1O bilhões. Se mente e corpo são o mesmo, como sustentam alguns filósofos, nossas mentes são compostas, primordialmente, por bactérias. E se dermos um passo a mais e reduzirmos as bactérias a seus elementos constituintes, encontraremos 70% de moléculas de água.
O problema mente-corpo pode se tornar ainda mais bizarro quando consideramos a tecnologia dos transplantes. Essa tecnologia reforça ainda mais a ideia de que o corpo é uma máquina, pois suas peças são substituíveis como em qualquer tipo de mecanismo.
Muitas pessoas, no desespero da pobreza, vendem um rim, uma parte do fígado, um pulmão ou um testículo. A Organização Mundial da Saúde estima que ocorram, todos os anos, 10 mil cirurgias no mercado negro envolvendo transplantes de órgãos.
Imagine um milionário cristão praticante que tenha recebido rins de um muçulmano jihadista. Ou um supremacista branco que respire com o auxílio de pulmões de negros e enxergue o mundo através dos olhos de algum moleque de rua africano. Ou, quem sabe, um cardeal com o fígado de uma prostituta de uma comunidade carioca? Já não temos mais apenas um corpo, mas uma justaposição de peças de uma máquina, cuja origem contradiz nossa intuição costumeira de unidade. Supondo que a tese da identidade mente corpo ou mente-cérebro seja correta, como defendem muitos filósofos, será que a mente do transplantado incorporará parte da mente dos doadores?
Temos corpos pós-modernos. Uma colcha de retalhos indefinível, na qual há organismos vivendo em outros organismos, máquinas dentro de máquinas. Reduzir a mente ao corpo ou à matéria, como querem os fisicalistas, parece tornar o problema mente-corpo, mente-cérebro ou mente-matéria mais obscuro. E querer explicar o obscuro pelo obscuro.

JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA – é paulistano, formado em filosofia na USP. Viveu e estudou na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Escreveu mais de uma dezena de livros sobre filosofia da mente e tecnologia. Lecionou na UNESP, na UFSCAR e na PUC- SP.
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