AS DIMENSÕES DA PAIXÃO
A ideia de se apaixonar provoca desejo e medo. Não é um terreno seguro. Ainda que a paixão seja correspondida, gera fragilidade, pois o objeto de amor pode ou não suprir as expectativas

Há uma supervalorização das ações e significados de tudo que envolve o ser amado. Por isso o medo das pessoas de se verem enredadas nas garras da paixão. Evitar a todo custo relacionar- se por medo da paixão e do amor é um indício de grande bloqueio e revela mecanismos de defesa muito consolidados, provocados geralmente por vivências traumáticas.
Como escreve o psiquiatra Renato Mezan no livro Os Sentidos da Paixão: “A defesa – qualquer defesa – tem a finalidade óbvia: evitar o desprazer. Isso não a impede de gerar, por vezes, um intenso desprazer; mas esse último será sempre fantasiado como um mal menor, se comparado com aquilo que sucederia caso a defesa fosse abandonada. Boa parte do trabalho psicanalítico, aliás, consiste no reexame das fantasias e das angústias que povoam a vida psíquica do paciente”. Entregar-se à paixão é antes de tudo um ato de coragem.
Baixar as defesas que impedem o contato com o outro e o risco da paixão como possível consequência é iniciar uma jornada de heroísmo. O que enfrentaremos nessa empreitada é um mistério. Quando se está aberto à vida e às experiências, estamos sujeitos ao apaixonamento. Esse processo geralmente revela a nossa “sombra”. Sombra é um conceito da psicologia junguiana que designa conteúdos arquetípicos tanto destrutivos como construtivos, que foram recalcados e esquecidos e assim passíveis de projeções. A revelação da nossa sombra e de nossos complexos, através da relação com o outro, pode ser equiparado simbolicamente aos 12 Trabalhos de Hércules, ao enfrentamento da Medusa e das sereias na jornada de Ulisses e seus companheiros ou aos desafios de Psique para reencontrar o amor de Eros. Metáforas da mitologia que podemos considerar como os desafios de viver e amadurecer. Todos os seres assustadores desse caminho estão dentro de todos e podem ser despertados. Não há melhor forma de conhecermos nossas fragilidades psíquicas e inseguranças do que na relação com o outro. Após algum tempo de relação, as idealizações iniciais começam a colapsar e a realidade se apresenta. Se os parceiros avançaram pouco na senda do amadurecimento e autoconhecimento, podem surgir muitos conflitos e o relacionamento pode tornar-se um campo de disputas. Por questões narcísicas arcaicas pode não ser fácil para o indivíduo reconhecer a parte que lhe cabe nos conflitos, gerando mágoa e ressentimento no parceiro. Principalmente se houve interrupções em seu processo de amadurecimento afetivo.
Amar talvez seja a tarefa mais complexa da existência humana. Desde que nascemos, de uma forma ou de outra, estamos nos preparando para amar. “Talvez seja o trabalho para o qual todos os outros trabalhos não sejam mais do que a preparação”, disse o psiquiatra Ronald Laing (1954). O amor diferentemente da paixão exige um grau de maturidade a ponto de se ter condições de considerar o outro e suas necessidades, diferentemente da paixão que é permeada por questões mais narcísicas e autocentradas. Na busca de alcançar a maturidade para que a paixão possa evoluir para um sentimento verdadeiro e compartilhado em que o outro é tão igualmente importante e1n seus desejos e necessidades, existe um árduo caminho.
Esse caminho é descrito por Carl Jung nos estudos alquímicos e o processo de individuação. Transformar nossas mazelas na “pedra filosofal” como desejavam tanto os alquimistas é tarefa nobre. Não alcançaremos o Opus sem antes passar por todos os processos de transformação, tão bem descritos por Edward F. Edinger em seu livro Anatomia da Psique. Nesse livro o autor descreve as etapas do processo alquímico a que são submetidos os materiais e a sua correspondência ao processo de autoconhecimento. Esses processos incluem: submeter-se ao fogo, à água, ao ressecamento, à dissolução para que ocorra a verdadeira transformação do “metal bruto” em “ouro”. Tudo isso simbolicamente pode acontecer quando estamos apaixonados e sujeitos a todas as intempéries que isso significa. Não vamos ganhar os louros sem antes enfrentar nossas batalhas internas.
Neste momento, esse trajeto pode ser feito com muito mais conforto e profundidade se o indivíduo estiver disposto ao processo psicanalítico. A situação transferencial da análise também é de certa forma uma relação amorosa, que pode reproduzir em seu contexto os enfrentamentos reais do paciente em seu cotidiano. A análise se propõe a propiciar local adequado e seguro para que as defesas sejam aos poucos identificadas e afrouxadas, enquanto outros recursos mais saudáveis estão sendo alicerçados no trabalho conjunto com o analista.
ELAINE CRISTINA SIERVO – é psicóloga. Pós-graduada na área Sistêmica- Psicoterapia de Família e Casal pela PUC- SP. Participa do Núcleo de Psicodinâmica e Estudos Transdisciplinares da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA. Atuou na área de dependência de álcool e drogas com indivíduos, grupos e famílias.
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