A BANALIZAÇÃO DA MORTE
A morte é um tabu sempre presente em nossas vidas. Mas os que sonham com a imortalidade podem agora imaginar possibilidades mais concretas, mostradas na ficção científica e que, quem sabe, serão concretizadas pelos avanços da tecnologia

Uma das descobertas mais importantes do homem foi a morte. Nunca saberemos quando ela ocorreu. Foi uma descoberta avassaladora: a morte como algo universal, predestinado. Tudo que vive é um prefácio de uma morte certa, o tempo de vida é muito curto. Uma descoberta traumática. A inescapável mortalidade. O homem é o animal que sabe que será derrotado pela morte.
Com a descoberta da morte, vieram as tentativas de driblá-la. As religiões inventaram a vida após a morte. Ensinaram-nos a não valorizar tanto a vida, para não sofrermos tanto com a perspectiva da morte. “Quem quiser salvar sua vida a perderá”, diz o Evangelho. E sugere que Deus expulsou Adão e Eva do paraíso pois, ao comerem o fruto da Árvore do Conhecimento, poderiam querer se tornar imortais. A promessa da ressurreição da carne é o coroamento da vida eterna para os cristãos. Curiosamente, o Velho Testamento não faz referência, em nenhuma de suas passagens, à vida após a morte.
“O nosso destino é a escuridão”, proclamou Shakespeare na sua peça Antônio e Cleópatra (ato V, cena lI). A morte é um terna sempre presente na literatura e na Filosofia. Há uma longa estirpe de filósofos que se dedicaram a ele, passando por Agostinho, Pascal, Schopenhauer, Kierkegaard e muitos outros. No século passado, Heidegger foi um dos filósofos que mais se preocuparam com esse tema. Para ele, a morte é o Nada, o abismo cardinal, a fonte de toda inquietação humana e do pensamento. Seguindo as pegadas de Heidegger, alguns pensadores existencialistas como Camus e Sartre se debruçaram sobre o significado da morte e da finitude do homem.
O homem do século XXI continua a se debater com o horror absoluto da morte e da extinção de sua espécie. A biologia moderna é a nova narrativa sobre a vida e a morte. A imortalidade da alma é a ancestralidade da vida, sua reprodução indefinida como estratégia para triunfar sobre a morte. O código genético é praticamente o mesmo em todos os seres vivos e é sempre reeditado através das gerações.
Em seu livro mais famoso, O gene egoísta, o zoólogo Richard Dawkins defende que nossos corpos são apenas portadores de genes sobreviventes que, por meio de sucessivas gerações, garantiram otriunfo da vida nos últimos 3,5 bilhões de anos. Todas as espécies que existem são ramificações que surgiram de uma única linhagem primordial. A morte de uma pessoa pode ser um a tragédia individual, mas a espécie humana continuará por mais alguns milhões de anos. Nossa missão, como seres vivos, é transmitir genes.
Mas a biologia não consola ninguém. Quando a questão é a morte de um ser humano, ela serve, no máximo, para que o refrão “e a vida continua” possa ser repetido. A engenharia genética, o transplante de órgãos e até o transplante de cabeças estão a serviço do prolongamento da vida. Mas não nos contentamos com apenas prolongar a vida. Queremos a imortalidade, queremos uma ciência que negue que ela está reservada apenas para os deuses e não para os homens.
Atualmente, alguns gurus do Vale do Silício tentam nos convencer de que é possível fazer uma cópia digitalizada do cérebro das pessoas, com todos os seus circuitos neurais e lembranças. Essa cópia poderia ser enviada para a nuvem, na qual ela duraria indefinidamente. Quem lê esses gurus acaba se convencendo de que a ciência poderá, em breve, burlar a morte. Mas a estratégia para nos convencer de que a ciência poderá lidar com a morte é resultado de uma manobra sutil nas entrelinhas desses textos. Para laicizar a morte, esvaziá-la de todo sentido trágico, é preciso torná-la cada vez mais banal.
O sintoma dessa manobra aparece na ficção científica. Na novela Carbono alterado, livro de estreia de Richard Morgan (que se tornou um seriado de TV), o autor descreve um mundo no qual todas as pessoas têm um “cartucho”, um chip extraordinariamente poderoso que contém uma cópia digitalizada do cérebro. O corpo de uma pessoa pode ser destruído, mas se o cartucho ficar intacto, ele poderá ser implantado em um outro corpo no futuro, que o autor chama de “capa”. Todos passam a vida economizando para comprar uma capa. A única exceção são os católicos, que se recusam a viver novamente e, por isso, assinam um documento registrado no Vaticano para que seus cartuchos não sejam reimplantados.
O cenário descrito por Morgan é bizarro. Nessa sociedade, ninguém teme morrer, pois a morte pode acontecer várias vezes para uma pessoa e ela continuará a viverse o cartucho for reimplantado em outra capa. Uma ameaça de morte não surte efeito. A destruição do corpo e do cartucho não amedronta ninguém. O corpo pode ser substituído por uma nova capa e para o cartucho sempre haverá um backup, que poderia ficar armazenado na nuvem. A morte não é apenas secularizada. Ela é banalizada.
No seriado Westworld há, também, personagens que dizem não temer a morte pois já morreram e voltaram à vida várias vezes. A morte é algo trivial, pois se tornou um problema científico que em breve será solucionado.
Mas o que significa a banalização da morte? Morgan nos fornece a resposta em uma passagem de sua novela, na qual ele afirma: “Mas gente? Pessoas se reproduzem como células cancerosas, são abundantes […) A carne humana é mais barata que uma máquina. É a verdade axiomática de nossos tempos”

JOÃO DE FERNANDES TEIXEIRA – é paulistano, formado em filosofia na USP. Viveu e estudou na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Escreveu mais de uma dezena de livros sobre filosofia da mente e tecnologia. Lecionou na UNESP, na UFSCAR e na PUC-SP.
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