QUANDO O CORPO SE TORNA UM ESTRANHO
Lesões no hemisfério direito do cérebro fazem com que pacientes ignorem tudo que se passa no lado esquerdo do corpo, braços e pernas inclusive

A primeira descrição de anosognosia foi feita pelo neurologista francês Joseph Babinski, em 1914. Do grego nossos, “doença” e gnosis, “conhecimento” é o que se dá a um estranho quadro desenvolvido por pessoas com determinadas lesões cerebrais, em geral confinadas ao hemisfério direito, que passam a não reconhecer a metade paralisada do próprio corpo, ignorando sua doença.
Uma paciente com paralisia do lado esquerdo em decorrência de derrame sofrido dois dias antes aguardava minha avaliação. Quando entrei no quarto do hospital, ela falava animadamente no telefone, enquanto os parentes se entreolhavam assustados. Ninguém podia compreender como uma mulher ativa como ela estava paralisada numa cama e ainda conversava animadamente por telefone com pessoas da família e amigos, como se nada houvesse acontecido. Notei que ela segurava o aparelho com a mão direita e movimentava ostensivamente a cabeça de um lado para o outro enquanto falava. Tive a impressão de que procurava abarcar em seu ângulo de visão todos os que estavam no quarto – sete ou oito pessoas, entre filhos, noras e netos. Assim que ela deu por encerrada a conversa telefônica, uma das filhas me apresentou como o neurologista que fora chamado para examiná-la. Ela me estendeu a mão direita num aperto forte e um sorriso franco nos lábios:
– Como vai, doutor? Espero que o senhor não tenha entrado na conversa dessa gente.
– A senhora está se referindo exatamente a quê? – perguntei, como se não tivesse entendido aonde ela queria chegar.
– Eu não preciso de neurologista, doutor. Já devia estar em casa, onde tenho inúmeros afazeres, e estão me prendendo aqui sem nenhum motivo. Ainda bem que o senhor veio me libertar.
Se a senhora me permitir, vou examiná-la antes de sua saída do hospital. Estamos de acordo?
– Claro, doutor. O senhor não vai encontrar nada errado comigo.
– A senhora pode movimentar ambos os braços?
– Perfeitamente – ao mesmo tempo, ela levantou o braço direito para o alto.
– Pode fazer o mesmo com o braço esquerdo?
– Naturalmente – e, mais uma vez elevou o braço direito.
– A senhora pode mover as duas pernas?
– Não tenha nenhuma dúvida disso.
– Quer dizer que pode mover a perna direita:
– Claro – e levantou a perna direita em 45 graus.
– Pode fazer o mesmo com a perna esquerda7
– Sim! Como não!?
– Então levante a sua perna esquerda – insisti.
E levantou de novo a perna direita. Na continuação do exame, notei que ela negligenciava tudo o que estivesse a sua esquerda. Ao tentar testar a extensão de seu campo de visão, usando um método simples solicitei que olhasse fixamente para meu nariz e contasse os dedos que eu colocava em seu campo visual esquerdo. Errou em todas as tentativas, ao contrário do que ocorria quando lhe apresentava os dedos em sua área direita de visão. Porém, quando insisti para que prestasse mais atenção, pois assim teria condições de responder corretamente, de fato acenou algumas vezes. Ela apenas confirmava o que acontece com quase todos os pacientes com anosognosia e lesão no hemisfério direito – ignoram tudo que se encontra a sua esquerda. A negligência chega a ser tão completa que essas pessoas podem comer o alimento que se encontra no lado direito do prato, sem tocar na parte oposta. Ao vestirem-se, enfiam sem dificuldade o braço direito na manga da camisa, a perna direita na calça e, se não forem alertadas, simplesmente ignoram que é preciso vestir também o outro lado. Quando, parcialmente, recuperados, readquirem a capacidade de se locomover, vão de encontro a móveis e portas por desconhecerem a metade esquerda do corpo.
COMANDOS INDEPENDENTES
Nos casos em que a anosognosia persiste durante muito tempo, a própria reabilitação é dificultada. Como poderia um paciente que ignora que seu lado esquerdo está paralisado participar ativamente de sua recuperação? O cotidiano, já conturbado pela paralisia, fica agravado pela negligência. Homens com o distúrbio podem, por exemplo, sebarbear apenas do lado direito. Quando procuram a xícara de café sobre a mesa, exasperam-se por não encontrá-la, até que alguém aponte o objeto colocado ligeiramente à sua esquerda. Caso se peça a um anosognósico que desenhe um relógio, ele poderá até traçar um círculo completo, mas amontoará os números no lado direito. Se lhe solicitam que desenhe uma figura humana, há grande probabilidade de que faça apenas a metade direita do corpo, deixando-a sem os membros esquerdos. Se questionado, não se importará – talvez diga que está tudo bem ou invente uma pequena história.
Porque apenas a lesão hemisférica direita provoca a negação? Algumas pistas podem ser delineadas pela constatação de que existe especialização entre os hemisférios. A mais notória é a linguagem falada, própria do lado esquerdo do cérebro, em 95% das pessoas, incluindo os canhotos. O surgimento da especialização talvez tenha sido um recurso incorporado pela espécie durante a evolução. A realização de movimentos coordenados e harmônicos com as duas mãos só seria bem-sucedida se houvesse apenas um controlador, um único comando. Se durante a execução de um ato motor complexo que exigisse as duas mãos os comandos fossem independentes – cada mão querendo executar o movimento do seu modo – esse indivíduo hipotético teria muito poucas chances de sobreviver num mundo competitivo, cheio de ameaças. A dominância cerebral do hemisfério direito em relação à integração global do corpo, envolvendo a noção das sensações viscerais, a posição dos membros em relação ao espaço, do tronco e dos músculos é hoje bastante aceita e amplamente discutida por especialistas. Eduardo Bisiach e Claudio Luzzatti estudaram dois pacientes milaneses com um dano no lobo parietal direito que os deixou com a síndrome de negligência visual, seus olhos registravam todo o campo, mas os dois pacientes prestavam atenção só na metade direita: não faziam caso dos talheres do lado esquerdo do prato, desenhavam um rosto sem olho nem narina esquerda e, ao descrever um aposento, ignoravam detalhes volumosos – como uma cadeira ou um piano – à esquerda. Bisiach e Luzzatti pediram que eles se imaginassem na Piazza dei Duomo, em Milão, de frente para a catedral, e que descrevessem os edifícios da praça. Os pacientes mencionaram apenas os prédios que seriam visíveis direita – deixando de lado a metade esquerda do espaço imaginário. Em seguida, pediram que, mentalmente, atravessassem a praça, se colocassem na escadaria da catedral, de frente para a praça, e descrevessem o que havia nela. Eles mencionaram os prédios que haviam omitido da primeira vez e deixaram de fora os que haviam citado antes. Os surpreendentes resultados desse experimento nos mostra que o processo de negação que se segue a uma lesão do córtex parietal direito envolve não só imagens reais do próprio corpo do paciente como suas imagens mentais.
À primeira vista, podemos ter a falsa impressão de que um paciente com anosognosia está confuso, ou mesmo demente. No entanto, a negação da doença é apenas mais um sintoma específico do seu quadro clínico e não envolve a memória como um todo nem a consciência para outros fatos que lhe dizem respeito – exceto a própria paralisia. Podem argumentar com sensatez sobre qualquer assunto, reconhecem seus interlocutores, realizam cálculos complexos, lembram-se de eventos antigos e recentes perfeitamente situados no tempo e no espaço. O fato destoante é a não identificação do lado paralisado. Agem como se a paralisia não existisse e, por isso mesmo, estão propensos a acidentes quando tentam sair da cama, sofrendo quedas frequentes.
O BRAÇO DO CADÁVER
O caso mais estranho de anosognosia de que se tem notícia é mencionado por Oliver Sacks, sobre um homem, internado num hospital, que caíada cama várias vezes na mesma noite. A cada queda, os enfermeiros o levantavam e certificavam- se de que estava bem acomodado. Alguns minutos depois, ouvia-se de novo o ruído do seu corpo chocando-se contra o chão. Intrigado, o médico perguntou-lhe por que continuava caindo da cama. O pobre homem, demonstrando verdadeiro pavor, respondeu, ‘Doutor, esses estudantes de medicina colocam o braço de um cadáver na minha cama e eu tento me livrar dele a noite inteira. Como não admitia a existência de seu membro paralisado, o homem era arrastado para o chão toda vez que tentava empurrá-lo para fora do leito.
Uma particularidade presente nesses pacientes é atribuírem o membro paralisado a outra pessoa. Se lhes perguntam a quem pertence a parte paralisada do corpo, respondem com naturalidade, “Ao meu filho”, “Ao meu médico ou “À minha esposa”.
Há indícios consistentes de que a avaria que acomete os circuitos cerebrais responsáveis pelo aparecimento da negação em pacientes anosognósicos não é definitiva e pode ser compensada depois de algum tempo. Na maioria dos casos, o fenômeno tende a desaparecer depois das primeiras semanas, embora persista em alguns pacientes. A constatação experimental dessa afirmativa foi obtida por Bisiach e seus colaboradores. Os pesquisadores conseguiram a remissão temporária da doença estimulando o sistema vestibular dos pacientes, injetando água fria em seu ouvido esquerdo. O neurocientista indiano Villayamur S. Ramachandran retomou a experiência de Bisiach com uma paciente com anosognosia. Depois de constatar que ela repetia não estar paralisada e dizia que seu braço pertencia ao seu filho, o pesquisador injetou-lhe 10 ml de água fria no ouvido esquerdo. Ramachandran pretendia investigar a memória da paciente durante o período em que ela estava sob a ação do estímulo calórico. O diálogo abaixo foi transcrito do trabalho de Ramachandran.
Experimentador: A senhora está se sentindo bem?
Paciente: Meu ouvido está muito frio, mas do outro lado eu estou bem.
Experimentador: A senhora pode usar as mãos?
Paciente: Posso usar meu braço direito, mas não meu braço esquerdo. Eu queria movê-lo, mas ele não se mexe.
Experimentador, pegando o braço paralisado e colocando-o em frente da paciente)
De quem é este braço?
Paciente: É o meu braço, claro
Experimentador: A senhora pode usá-lo?
Paciente? Não, ele está paralisado.
Experimentador: Há quanto tempo seu braço está paralisado? A paralisia começou agora ou já existia antes?
Paciente: Ele está continuamente paralisado, agora por vários dias.
Depois de passado completamente o efeito calórico, o experimentador aguardou mais meia hora e perguntou:
Experimentador: A senhora pode usar seu braço?
Paciente: Não, meu braço esquerdo não funciona.
Oito horas mais tarde, as questões foram repetidas.
Experimentador: A senhora pode andar?
Paciente: Sim.
Experimentador: Pode usar ambas as mãos?
Paciente? Sim.
Experimentador: Pode usar seu braço esquerdo?
Paciente: Sim.
Experimentador: Esta manhã, dois médicos fizeram alguma coisa com a senhora. A senhora se recorda?
Paciente: Sim, eles colocaram água no meu ouvido: ela estava muito fria.
Ecérimentador: A senhora se lembra de que eles fizeram algumas perguntas sobre seus braços, e a senhora então lhes deu algumas respostas. A senhora se lembra do que respondeu?
Paciente: Não me lembro, o que foi que eu disse?
Experimentador: O que a senhora pensa que disse? Tente relembrar.
Paciente: Eu disse que meus braços estavam OK.
Algumas conclusões podem ser tiradas dessa experiência. Em primeiro lugar, ela confirma o trabalho de Bisiach quanto à extinção da negação pela ação do estímulo calórico no ouvido esquerdo. Segundo, ao admitir que esteve paralisada por vários dias, a paciente nos permite supor que, embora negasse continuamente sua paralisia, a informação estava sendo armazenada em seu cérebro, sem que aflorasse à sua consciência, ou, como quer Ramachandran: o acesso a eles fora bloqueado, isto é, a negação não impediu a consolidação da memória. A água fria agiu como uma espécie de ‘soro da verdade’, trazendo à tona as lembranças reprimidas sobre sua paralisia”.
O estímulo calórico fez aflorar a consciência da paralisia. Podemos supor, por esse resultado, que ela tinha conhecimento de seu estado, pelo menos em nível mais profundo, ao qual em condições normais não tinha acesso. Foi preciso, porém, a estimulação do ouvido esquerdo para que a constatação viesse à tona. É interessante notar ainda que, quando a paciente estava sob esse efeito, admitiu a paralisia, mas, ao ser questionada oito horas depois, não somente reverteu a negação como reprimiu o fato de ter reconhecido a paralisia naquela situação.
É notável o fato de que, ao admitir estar paralisada, aparentemente não esboçou nenhuma reação que denunciasse surpresa ou sofrimento. De certa forma, nesse momento ela “estaria reprimindo a negação à qual estivera engajada dez minutos antes”, como escreveu Ramachandran. O fato de não haver projeções do nervo vestibular para o córtex parietal do hemisfério direito, nem para parte alguma desse lado cerebral, dificulta a compreensão do fenômeno. Embora tudo indique que a estimulação do nervo vestibular esquerdo produza o “despertar” dos circuitos interrompidos no hemisfério direito, fazendo a pessoa tomar consciência da paralisia, não podemos, até o momento, determinar com exatidão como isso acontece.
O fenômeno da negação foi testado por Ramachandran com outras experiências simples. Numa delas, solicitou ao paciente que executasse uma tarefa que exige o uso das duas mãos. Como esperado, o paciente se atrapalhou, agindo como se as duas mãos estivessem disponíveis para a ação. Repetimos a experiência de Ramachandran com um de nossos pacientes com anosognosia e paralisia do lado esquerdo do corpo. Pedimos que pegasse uma bandeja redonda, colocada sobre a mesa, com cinco copos de plástico com água até a metade. Uma pessoa com os dois lados do corpo funcionando normalmente costuma pegar a bandeja pelas beiradas, com cada uma das mãos. Se você amarrar um de seus braços e solicitar que pegue a bandeja, provavelmente vai tentar segura-la pelo meio, qualquer que seja a mão livre, evitando derramar os copos com água. Quando pedi a meu paciente paralisado e anosognósico que pegasse a bandeja, sua mão saudável (a direita) foi para o lado direito da bandeja. Obviamente, ao tentar levantá-la da mesa, os copos caíram e a água derramou. O mais surpreendente é que esse paciente ao perceber o desastre, não se mostrou impressionado, apenas usou uma justificativa: “Estou meio desajeitado hoje”. Repeti a experiência três vezes com o mesmo paciente. Surpreendentemente em todas as ocasiões ele tentou levantar a bandeja pelo lado direito.
A MÃO CINZA
Ramachandran e sua equipe realizaram uma experiência curiosa utilizando uma caixa de realidade virtual, semelhante à empregada para estudar membros fantasmas. Vestiram com luva cinza a mão direita de um anosognósico e pediram que a colocasse no interior da caixa onde havia um espelho. Em seguida, solicitaram-lhe que movimentasse a mão para baixo e para cima no ritmo de um metrônomo. O paciente o fez com desenvoltura. Pediram-lhe depois que olhasse através de um buraco na caixa e visse o que estava ocorrendo.
– Vejo minha mão mover-se para baixo e para cima.
Em seguida, orientaram o paciente para que fechasse os olhos. E, sem seu conhecimento, um estudante escondido por trás da caixa enfiou a mão com luva cinza dentro da caixa. Mudaram a posição do espelho de tal forma que, quando o paciente olhasse para o interior da caixa, veria o reflexo da mão enluvada do aluno que participava da experiência e não a sua. Os examinadores determinaram que o estudante mantivesse a mão absolutamente imóvel e ordenaram ao paciente que continuasse movendo a sua e olhasse para o interior da caixa:
– Vejo minha mão se mexendo para cima e para baixo no ritmo do metrônomo, exatamente como antes.
A pessoa saudável que fosse submetida a esse tipo de experimento e nem de longe sonhasse que havia alguém oculto na caixa provavelmente pularia da cadeira assustada. Não foi o caso do paciente de Ramachandran. Embora visse a mão imóvel do estudante, insistiu que era sua a mão em movimento. Entre as especulações que o autor faz sobre os resultados desse experimento, está que a negação atravessou para o lado direito do corpo – o lado normal. Ele argumenta que essa experiência põe por terra a teoria da desatenção para explicar a anosognosia. É como se o que estivesse danificado nos pacientes fosse o modo pelo qual o cérebro lida com uma discrepância em informações sensoriais relacionadas à imagem corporal. A discordância pode se originar tanto do lado esquerdo quanto do direito do corpo. Para Ramachandran, porém, o hemisfério esquerdo é considerado “um conformista”, em grande parte indiferente a incongruências da imagem corporal, enquanto o direito é altamente sensível a perturbações.
O neurocientista indiano especula se a estimulação calórica não poderia ser útil em casos de pacientes com anorexia, doença psiquiátrica que pode levar à morte por inanição. Nesses casos há distúrbio do apetite, e as pessoas se iludem sobre sua imagem corporal, como nos casos de dismorfofobia, em que o paciente está firmemente convencido de que seu corpo ou parte dele sofreu modificações que apenas ele constata. Quem sabe um procedimento tão simples como a estimulação calórica do nervo vestibular “desperte o hemisfério direito de pacientes com depressão grave, que veem o mundo com cores escuras demais, muitos deles procurando uma saída no suicídio. Talvez pudéssemos tentar sem nenhum dano adicional, estimular o nervo vestibular de pacientes depressivos graves, antes de enviá-los para a eletroconvulsoterapia, que sabidamente pode deixar sequelas graves, sobretudo relacionadas à memória. Até o momento, essa experiência ainda não foi tentada.
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