ANGÚSTIAS DA DECISÃO
Considerações racionais são fundamentais num processo de escolha, embora não evitem arrependimentos e culpas
Imagine que você tenha de escolher entre dois empregos que igualmente lhe agradam. Ambos oferecem bom salário, mas um exige poucos deslocamentos, enquanto o outro impõe viagens frequentes. Você opta pelo primeiro e apesar de gostar do trabalho, descobre um dia que a pessoa admitida para a outra vaga ganha um salário bem maior que o seu. Decepcionado com sua opção, você se sente responsável por essa escolha. E se arrepende.
Numa outra situação, você tem de escolher entre viajar para a praia ou para o campo. Você fecha os olhos e imagina o vento do mar no rosto. Então pensa: “Será que, se for para a praia, vou ficar pensando no charme de um chalé com lareira e no clima ameno da montanha?”. Concluí que sim e escolhe viajar para o campo. Você não se arrepende.
Neste caso, foi possível antecipar as emoções que a outra escolha causaria. A manobra mental ajuda na decisão. Todos nós procedemos assim recorrendo às nossas experiências, de modo que os arrependimentos “fictícios”, aqueles que imaginamos como consequência eventual de nossas escolhas e os sentimentos que os acompanham, estão na essência de muitas decisões.
Todos os dias nos confrontamos com escolhas. Às vezes, essas decisões são difíceis, pois é preciso apostar na qualidade daquilo que vamos escolher e na satisfação que nos trará.
NO VERMELHO
Segundo as teorias clássicas da economia, os profissionais da decisão (corretores da bolsa de valores, por exemplo) aprimoram suas estratégias de escolha fundando-se sobre o “valor esperado”, isto é, a probabilidade de obter certo resultado multiplicado por esse resultado. Um jogador de cassino calcula a probabilidade de ganhar R$ 100 no vermelho e R$ 500 no verde. Se a chance de ganhar R$ 100 é de uma em dez e a de conseguir R$ 500 é de uma em 100, o “valor esperado” é de dez no primeiro caso e de cinco no segundo. Se for racional, ele preferirá apostar no vermelho.
Entretanto, sabe-se que as decisões humanas, na prática, são influenciadas por diversas considerações pouco racionais. Muita gente prefere uma soma menor (digamos, R$ 450) com probabilidade de ganho de 100 % (tem-se a certeza de ganhar a quantia) a um valor superior associado a uma probabilidade menor (R$ 1 mil, com chance de 50%), ainda que neste caso o lucro possível seja maior. Por que somos tão racionais?
É possível examinar esse mecanismo voltando-nos para algumas pessoas que, por causa de lesão cerebral no córtex órbito-frontal (na altura da testa, bem acima dos olhos), nunca se arrependem. Elas têm dificuldades consideráveis na vida cotidiana e, sem saber antecipar os arrependimentos a que estarão sujeitas, são incapazes de tornar decisões que possam satisfazê-las. Em nosso estudo, propusemos a esses pacientes – e a voluntários sãos – um jogo cujo princípio é análogo ao da roleta.
Na competição, os jogadores são colocados diante de um monitor de computador onde aparecem, a intervalos regulares, duas roletas. Eles escolhem uma delas para jogar depois de pensar bem, já que as possibilidades de ganho não são as mesmas. Pode-se escolher entre uma roleta que oferece 50% de oportunidade de ganhar R$ 40 e 50% de perder R$ 10 (figura 1a), por exemplo, e outra com 80% de chance de perder R$ 1º e 20% de ganhar R$ 40. Logicamente, os jogadores escolhem a primeira. Durante uma hora, diversos pares de roletas são apresentados, cada uma com apostas e probabilidades variáveis.
Na primeira parte do teste, os participantes desconhecem os resultados da roleta que não escolheram. Assim, é impossível haver arrependimento: no máximo, eles podem ficar satisfeitos ou decepcionados com o resultado da sua roleta, como a pessoa que escolheu o emprego sem viagens e ignora o destino de quem aceitou o outro.
Observamos as reações dos participantes de dois modos. No primeiro, colocamos eletrodos em seus dedos e constatamos que quanto mais forte a emoção, maior a corrente elétrica registrada, pois as mãos ficavam umedecidas de suor. No outro, pedimos que descrevessem como se sentiam naquele momento anotando, numa escala de -50 a +50, se estavam bem ou mal. Todos tiveram reações similares. Se o ponteiro parava, por exemplo, num ponto da roleta que representasse perda de R$ 10, quando poderia parar numa área que lhes faria ganhar R$ 40, todos eles se decepcionavam.
ANTECIPAÇÕES PREJUDICADAS
Além disso, os dois grupos não sentiram nenhuma emoção particular ao ganhar R$ 10 numa situação em que poderiam ganhar R$ 40: a alegria de ganhar menos é temperada pela decepção de não ter ganho mais. Do mesmo modo, eles expressaram pouca emoção ao perder R$ 10 numa situação em que poderiam ter perdido R$ 40: a decepção de perder R$ 10 é compensada pelo alívio de não ter perdido mais. Por outro lado, ficaram contentes em ganhar R$ 10 quando poderiam ter perdido mais: desta vez, eles realmente tiveram sorte. O fato de os participantes com ou sem lesão cerebral terem apresentado as mesmas reações mostra que a zona cerebral em questão não intervém na capacidade de ficar contente ou descontente com o resultado de uma experiência.
Num segundo momento, os participantes tiveram de optar entre as duas roletas, mas, depois de feita a escolha, foram informados sobre o resultado da outra roleta. Com isso, tinham chance de se arrepender quando o resultado da segunda roleta se mostrava melhor que o da escolhida. Eles estavam numa situação parecida à do trabalhador que fica sabendo dos ganhos do colega no emprego que recusou.
Neste caso, os participantes sãos mostraram-se muito decepcionados ao perder R$ 10 e ver que na outra roleta teriam ganho R$ 40. Eles haviam feito uma escolha e eram responsáveis pelas consequências, já que teriam ganho mais se tivessem escolhido o outro equipamento. Ficaram igualmente desapontados ao ganhar R$ 10 e ver que poderiam ter conseguido quatro vezes mais. Quando desconheciam os resultados da segunda roleta, ficavam contentes de embolsar os R$ 10. Mostraram-se, porém, mais satisfeitos de perder a quantia ao ver que na outra roleta teriam perdido R$ 40. Se ganhassem R$ 40, sabendo que na outra perderiam o mesmo valor, então ficariam muito satisfeitos.
PERDAS E GANHOS
A diferença mais evidente verificou-se nos jogadores cujo córtex órbita-frontal é lesado: eles ficam decepcionados se perdem R$ 1O, mas essa decepção não é reforçada por saber que na outra roleta seria possível faturar R$ 40; ela é a mesma de quando não sabem o outro resultado. Do mesmo modo, se ganham R$ 10, ficam contentes. Mas a satisfação não aumenta se contamos a eles que na outra roleta teriam perdido R$ 40.
A ausência de arrependimento parece invejável, mas, de fato, tem um lado prejudicial. Pessoas capazes de se arrepender antecipam no presente os arrependimentos que terão se fizerem uma ou outra escolha, graças a seu córtex orbito-frontal, e essa antecipação aprimora as escolhas: no fim do jogo, constatamos que os participantes normais ganharam em média R$ 60, enquanto aqueles com lesão no córtex orbito frontal terminaram devendo R$ 20.
O córtex orbito-frontal, que nos permite antecipar o arrependimento no momento de tomar uma decisão, é responsável pela capacidade de nos projetarmos emocionalmente no futuro, o que facilita decisões A diferença entre a decepção e o arrependimento está no sentimento de culpa, presente no segundo caso: pacientes com lesão cerebral se decepcionam quando a seta para num valor negativo, o que mostra que são capazes de antecipar um bom resultado e de sofrer uma emoção negativa se o objetivo não é alcançado.
CONQUISTA DA EVOLUÇÃO
Todavia, a decepção não aumenta se a outra roleta tem um bom resultado: eles não imaginam que teriam se dado melhor se tivessem feiro outra opção. A capa cidade de pensar em termos hipotéticos engendra o sentimento de responsabilidade diante da situação presente. Do ponto de vista neurobiológico, o arrependimento pode ser definido como a emoção ligada à capacidade de representar a si mesmo em situações hipotéticas. Sendo um sentimento desagradável associado à noção de responsabilidade, tiraríamos dele lições e, assim, diminuiríamos os riscos de decepção quando precisássemos decidir algo. Essas experiências esclarecem muito sobre a maneira como tomamos decisões e mostram que cada um se projeta inconscientemente no futuro quando se confronta com escolhas. Eis a origem do arrependimento: em tempos pré históricos, o cérebro humano teria desenvolvido essa capacidade, que lhe conferia uma condição superior na tomada de decisões.
Tal superioridade é tão clara que numerosos estudos mostram que pessoas com lesão no lobo orbito-frontal encontram grande dificuldade para tomar decisões no meio social. Por exemplo, tendem a perder o emprego, são incapazes de manter relações pessoais estáveis com as pessoas próximas e fazem repetidamente investimentos financeiros desastrosos. Curiosamente, essa anomalia não resulta de falta de conhecimento ou de inteligência.
Segundo o neurologista Antônio Damásio, ela seria consequência de um déficit emocional. Os pacientes seriam incapazes de produzir “marcadores somáticos”, isto é, reações emocionais manifestadas quando antecipamos uma decisão, as quais nos previnem dos resultados prováveis da escolha que nos preparamos para fazer (por exemplo, o desconforto que sentimos diante da ideia de repreender severamente um amigo).
Nossos estudos sugerem que o arrependimento constituiria um marcador somático controlado primeiramente pelo córtex orbito frontal. Essa região teria se tornado muito importante por conduzir todas as situações de escolha, notadamente pela produção de “arrependimentos antecipados”. Assim, o arrependimento seria um “efeito secundário” de nossa capacidade de tornar decisões. Inversamente, as pessoas incapazes de se arrepender tornam decisões que com frequência as colocam em dificuldade.
ANATOMIA CEREBRAL NO JOGO DA ROLETA
1. Os participantes devem escolher entre duas roletas e clicar naquela com que desejam jogar. Num primeiro caso (a), o participante escolhe jogar com a primeira roleta – que dá 50% de chance de perder RS 10 e 50% de ganhar R$ 40 -, em vez da outra – com a qual teria 80% de possibilidade de perder RS 10 e 20% de ganhar RS 40. O resultado da segunda roleta não é mostrado. Na roleta escolhida, ele perde RS 10 e fica decepcionado. Depois, nas outras três escolhas que faz, ele fica indiferente (b), e em seguida contente. As reações das pessoas sãs e daquelas com lesão no córtex orbito-frontal são idênticas neste caso.
2. Numa segunda parte da experiência, escolhe-se entre as duas roletas, mas, quando elas param de rodar, o jogador vê o resultado da roleta não escolhida. Seu grau de contentamento ou decepção difere da primeira experiência, pois agora ele compara. Assim, quem lamenta ter perdido RS 10 sem saber que poderia ter ganho RS 40, fica louco de arrependimento quando vê o resultado da segunda roleta. Contrariamente, perder apenas RS 10, e não RS 40, traz satisfação, e ganhar RS 10 sem perder quatro vezes esse valor deixa-o extasiado. Nos pacientes com lesão no córtex orbito-frontal, a emoção não varia quando veem a segunda roleta, pois eles não se arrependem.
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