OS CÓDIGOS DA MEMÓRIA
Em meio a debates a respeito de como as recordações são armazenadas, duas teorias científicas rivais destacam-se. Uma sugere que cada conceito, pessoa ou coisa de nossa experiência diária está associado a um neurônio específico. A outra hipótese afirma que recordações são distribuídas por milhões de neurônios. Vários experimentos recentes revelam, porém, que pequenos conjuntos de células cerebrais são responsáveis pela decodificação mnêmica
Certa vez, o brilhante neurocirurgião russo Akakhi Akakhievitch recebeu em seu consultório um paciente que dizia querer se esquecer da mãe, autoritária e cruel. Determinado a atender ao pedido, abriu o cérebro do rapaz e, um a um, retirou vários milhares de neurônios – todos relacionados à memória da mãe. Quando o paciente acordou da anestesia, todas as lembranças dela, boas e más, haviam desaparecido. Eufórico com o sucesso, Akakhievitch voltou sua atenção para o empreendimento seguinte: a procura de células ligadas à memória de “avó”.
É claro que se trata de uma ficção. Há 50 anos, o falecido neurocientista Jerry Lettvin (este sim de verdade) contou a história para uma multidão de estudantes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), para ilustrar a ideia provocativa de que apenas 18 mil neurônios poderiam formar a base de qualquer experiência consciente, pensamento ou lembrança de uma pessoa ou objeto ao nosso redor. Lettvin nunca provou ou refutou sua hipótese audaciosa e, por mais de 40 anos, cientistas debatem, em geral em tom de brincadeira, a ideia de “células avó”.
O conceito de neurônios que armazenam lembranças de forma tão específica remete ao filósofo e psicólogo William James, que, no final do século 19, concebeu a noção de “células pontifícias”, às quais nossa consciência estaria conectada. Mas essa tese contraria a visão dominante de que percepções específicas são possíveis graças à atividade coletiva de muitos milhões, ou até bilhões, de células nervosas – que o ganhador do Nobel Charles Sherrington denominou “democracia de um milhão”, em 1940. Nesse caso, a atividade de qualquer célula nervosa individual é insignificante; apenas a colaboração de populações numerosas de neurônios cria significado.
Neurocientistas continuam a discutir se são precisos relativamente poucos neurônios, da ordem de milhares (ou menos), para servirem como repositórios de determinado conceito, ou se são necessárias centenas de milhões distribuídos amplamente por todo o cérebro. Tentativas para resolver essa discussão estão levando a um novo entendimento do funcionamento da memória e do pensamento consciente.
Há alguns anos, juntamente com Gabriel Kreiman, agora membro do corpo docente da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, e Leila Reddy, atualmente cientista do Centro de Pesquisas do Cérebro e da Cognição em Toulouse, França, realizamos experimentos que levaram à descoberta de um neurônio no hipocampo de um paciente, região do cérebro conhecida por seu envolvimento em processamento de memória, que reagiu de modo muito evidente a diferentes fotografias da atriz Jennifer Aniston, mas não a dezenas de outras atrizes, celebridades, lugares e animais. Em outro paciente, um neurônio no hipocampo se iluminou ao ver imagens da atriz Halle Berry e até mesmo diante do nome dela escrito na tela do computador, mas não reagiu a nada mais. Outro neurônio disparou seletivamente para imagens de Oprah Winfrey e para seu nome escrito na tela e falado por uma voz sintetizada por computador. Outro, ainda, reagiu às imagens de Luke Skywalker e a seu nome escrito e falado etc.
COISAS DA VOVÓ
Esse tipo de observação é possível pelo registro direto da atividade de neurônios individuais. Outras técnicas mais comuns, como a ressonância magnética funcional, podem identificar atividade em todo o cérebro quando um voluntário executa determinada tarefa. Mas, embora essa técnica possa rastrear o consumo geral de energia de basicamente alguns milhões de células, não consegue identificar pequenos grupos de neurônios, muito menos células individuais. Para gravar impulsos elétricos emitidos por neurônios individuais, é preciso implantar no cérebro microeletrodos mais finos que um fio de cabelo humano. Essa técnica não é tão usada quanto o imageamento funcional, e apenas circunstâncias especiais garantem a implantação desses eletrodos em humanos.
Uma dessas raras circunstâncias ocorre em tratamento de pacientes epilépticos. Quando as convulsões não podem ser controladas com medicação, esses pacientes podem ser candidatos à cirurgia corretiva. A equipe médica examina evidências clínicas que possam identificar o foco epiléptico, a área onde as convulsões começam e que potencialmente pode ser removida cirurgicamente para curar o paciente. Inicialmente essa avaliação envolve procedimentos não invasivos, como imagens do cérebro, consideração das evidências clínicas e o estudo da atividade elétrica patológica com gravações de EEG feitas no couro cabeludo do paciente: diversas descargas epilépticas que ocorrem ao mesmo tempo. Quando não é possível determinar com precisão a localização do foco epiléptico por esses métodos, neurocirurgiões podem implantar eletrodos profundos dentro do crânio para monitorar continuamente a atividade cerebral durante vários dias no hospital e depois analisar as convulsões observadas.
Às vezes, cientistas pedem que pacientes se voluntariem para estudos de pesquisa durante o período de monitoramento, em que várias tarefas cognitivas são realizadas enquanto se registra a atividade do cérebro. Na Universidade da Califórnia (UCLA) em Los Angeles, desenvolvemos uma técnica singular para registros dentro do crânio usando eletrodos flexíveis com fios minúsculos; a tecnologia foi desenvolvida por um de nós (Fried), que dirige o Programa de Cirurgia da Epilepsia na UCLA, com outros cientistas do mundo todo, inclusive os do grupo de Koch, no Instituto de Tecnologia da Califórnia, e outros do laboratório de Quian Quiroga, na Universidade de Leicester, na Inglaterra. Essa técnica oferece uma oportunidade extraordinária de gravar diretamente de neurônios individuais durante dias, com o paciente acordado, e oferece a possibilidade de estudar o disparo de neurônios durante várias tarefas, monitorando a conversa incessante que ocorre enquanto pacientes olham para imagens em um laptop, recordam lembranças ou desempenham outras tarefas. É assim que descobrimos os neurônios Jennifer Aniston e sem querer reavivamos o debate inflamado pela parábola de Lettvin.
As células nervosas, como o neurônio Jennifer Aniston, seriam as células-avó debatidas há tanto tempo? Para respondermos a essa questão temos de ser mais precisos sobre o que entendemos por esse conceito. Uma forma radical de pensar sobre a hipótese da célula-avó é que apenas um neurônio responde a um conceito, mas, se pudéssemos encontrar um único neurônio que disparasse por Jennifer Aniston, isso sugeriria que deve haver mais – a chance de encontrar um, e apenas um, entre bilhões é ínfima. Além disso, se apenas um único neurônio fosse responsável pelo conceito integral de uma pessoa como Jennifer Aniston, e se fosse danificado ou destruído por doença ou acidente, todos os vestígios de Jennifer Aniston desapareceriam da memória, uma perspectiva extremamente improvável.
BILHÕES DE NEURÔNIOS
Uma definição menos radical de células-avó postula que muitos neurônios, em vez de um só, respondam a um único conceito. Essa hipótese é plausível, mas muito difícil, se não impossível de demonstrar. Não podemos tentar todos os conceitos possíveis para provar que o neurônio é acionado apenas por Jennifer Aniston. Na verdade, o oposto costuma ser verdadeiro: costumamos encontrar neurônios que respondam a mais de um conceito. Assim, se um neurônio dispara apenas para uma pessoa durante um experimento, não podemos descartar que também poderia ter disparado para alguns outros estímulos que, por acaso, não mostramos.
No dia seguinte, ao encontrarmos o neurônio Jennifer Aniston, por exemplo, repetimos a experiência, agora com muito mais fotos relacionadas a ela, e descobrimos que o neurônio também disparava com Lisa Kudrow, colega na série de televisão Friends, que catapultou ambas para a fama. O neurônio que respondeu a Luke Skywalker também disparou para Yoda, outro Jedi de Star wars. E ainda outro neurônio disparou para dois jogadores de basquete, sem contar um para um dos autores deste artigo e outros colegas que interagiram com o paciente na UCLA.
Mesmo assim, ainda se pode argumentar que esses neurônios são células-avó que respondem a conceitos mais amplos, ou seja, a duas mulheres loiras de Friends, a Jedi de Star wars, a jogadores de basquete, ou a cientistas que fazem experiências com o paciente. Essa definição expandida transforma a discussão sobre se esses neurônios devem ser considerados células- avó em uma questão semântica.
Mas vamos deixar a semântica de lado no momento e nos concentrarmos em alguns aspectos críticos desses chamados neurônios Jennifer Aniston. Primeiro, descobrimos que as respostas de cada célula são bastante seletivas – cada uma dispara para uma pequena fração de imagens de celebridades, políticos, parentes, marcos e assim por diante, apresentados ao paciente. Segundo, cada célula responde a várias representações de determinada pessoa ou local, independente- mente de características visuais especificas da imagem usada. Na verdade, uma célula dispara de forma semelhante em resposta a diferentes imagens da mesma pessoa e até mesmo a seu nome escrito ou falado. É como se em seus padrões de disparo o neurônio nos dissesse: “Sei que é a Jennifer Aniston, e não importa como você a apresente para mim, seja com vestido vermelho, de perfil, como um nome escrito, ou mesmo quando você diz o nome dela em voz alta”. O neurônio, então, parece responder ao conceito – para qualquer representação de qualquer coisa em si. Assim, esses neurônios podem ser mais adequadamente chamados de células-conceito, em vez de células-avó. Células-conceito podem disparar para mais de um conceito, mas, se fizerem isso, os conceitos tenderão a estar relacionados.
IMAGENS EM MOVIMENTO
Para entender a forma como um pequeno número de células se liga a um conceito particular, como Jennifer Aniston, ajuda saber algo sobre os complexos processos do cérebro para capturar e armazenar imagens de uma miríade de objetos e pessoas que se encontram no mundo ao nosso redor. Primeiro a informação coletada pelos olhos segue – através do nervo óptico, deixando o globo ocular – até o córtex visual primário na parte de trás da cabeça. Lá neurônios disparam em resposta a uma pequena porção dos detalhes minúsculos que compõem uma imagem, como se cada um fosse iluminado como um pixel de uma imagem digital, ou como se fossem os pontos coloridos em uma pintura pontilhista do francês Georges Seurat.
Não basta um neurônio para dizer se o detalhe é parte de um rosto, de uma xícara de chá ou da Torre Eiffel. Cada célula faz parte de um conjunto, uma combinação que gera uma imagem composta apresentada, digamos, no quadro Uma tarde de domingo na ilha de Grande Jatte. Se a imagem muda ligeiramente, alguns detalhes podem variar, e o disparo do conjunto correspondente de neurônios também se altera.
O cérebro precisa processar informações sensoriais para captar mais que uma fotografia – deve reconhecer um objeto e integrá-lo ao que já é conhecido. A partir do córtex visual primário, a ativação neuronal desencadeada por uma imagem se move por várias regiões corticais em direção a áreas mais frontais. Neurônios individuais nessas áreas visuais superiores respondem a rostos ou objetos inteiros, e não a detalhes locais. Apenas um desses neurônios superiores pode nos dizer que a imagem é um rosto, e não a Torre Eiffel. Se variarmos ligeiramente a imagem, movê-la ou alterarmos a iluminação sobre ela, ela mudará alguns aspectos, mas esses neurônios não se importam muito com pequenas diferenças em detalhes, e seu disparo permanecerá mais ou menos o mesmo, propriedade conhecida como invariância visual.
Neurônios em áreas visuais de alto nível enviam suas informações para o lobo temporal medial – o hipocampo e o córtex circundante –, envolvido em funções de memória e onde encontramos os neurônios Jennifer Aniston. As respostas de neurônios no hipocampo são muito mais específicas que no córtex visual superior. Cada um desses neurônios responde a uma pessoa em particular ou, mais precisamente, ao conceito dessa pessoa: não só ao rosto e outras facetas da aparência, mas também a atributos intimamente associados, como o nome da pessoa. Em nossa pesquisa, tentamos explorar quantos neurônios individuais disparam para representar determinado conceito. Tivemos de perguntar se é apenas um, dezenas, milhares ou talvez milhões. Ou seja, como a representação de conceitos é “dispersa”? É evidente que não podemos medir esse número diretamente porque não podemos registrar a atividade de todos os neurônios em determinada área. Usando métodos estatísticos, Stephen Waydo, na época aluno de doutorado de um de nós (Koch), no Caltech, estimou que determinado conceito aciona o disparo de não mais que cerca de 1 milhão de neurônios, entre os cerca de 1 bilhão no lobo temporal medial. Mas, como usamos imagens de coisas familiares aos pacientes de nossa pesquisa, e que por isso mesmo tendem a provocar mais respostas, esse número deve ser tomado rigorosamente como um limite superior; com o número de células representando um conceito, pode ser dez ou cem vezes menor, talvez próximo à suposição de Lettvin de 18 mil neurônios por conceito.
Contrariamente a esse argumento, um motivo para pensar que o cérebro não codifica conceitos esparsamente, mas os distribui por grandes populações de neurônios, é que podemos não ter neurônios suficientes para representar todos os conceitos possíveis e suas variações. Será que temos um armazenamento grande o suficiente de células cerebrais para retratar vovó sorrindo, tecendo, tomando chá ou esperando no ponto de ônibus, assim como a rainha da Inglaterra cumprimentando a multidão, Luke Skywalker quando criança em Tatooine ou combatendo Darth Vader etc.?
Para respondermos a essa pergunta, devemos primeiro considerar que, de fato, uma pessoa comum não se lembra de mais de 10 mil conceitos, e isso não é muito em comparação ao bilhão de células nervosas que formam o lobo temporal medial. Além disso, temos bons motivos para pensar que os conceitos podem ser codificados e armazenados de forma muito eficiente, de modo esparso. Neurônios no lobo temporal medial simplesmente não se importam com diferentes instâncias do mesmo conceito – não parece relevante que Luke esteja sentado ou em pé, só é considerado se um estímulo tem algo relacionado a Luke. Eles disparam pelo conceito em si sem considerar como é apresentado. Tornando o conceito mais abstrato – o disparo para todas as instâncias de Luke –, reduz a informação que um neurônio precisa codificar e permite que ele se torne altamente seletivo, respondendo a Luke, mas não a Jennifer.
Estudos de simulação por Waydo destacam ainda mais esse ponto de vista. Apoiando-se em um modelo detalhado do processamento visual, ele construiu uma rede neural baseada em software que aprendeu a reconhecer muitas fotos não rotuladas de aviões, carros, motos e rostos humanos. O software fez isso sem supervisão de um professor. Não lhe foi dito “este é um avião e aquilo um carro”. Ele teve de descobrir esses conceitos, usando a suposição de que a imensa variedade de imagens possíveis está, na realidade, baseada em um pequeno número de pessoas ou coisas e que cada um é representado por um pequeno subconjunto de neurônios, assim como encontramos no lobo temporal medial. Ao incorporar essa representação esparsa na simulação de software, a rede aprendeu a distinguir as mesmas pessoas ou objetos, mesmo quando mostrados de formas diferentes, um achado semelhante às nossas observações das gravações do cérebro humano.
Nossa pesquisa está intimamente relacionada à questão de como o cérebro interpreta o mundo exterior e traduz percepções em memórias. Considere o famoso caso de 1953 do paciente H. M., que sofria de epilepsia de difícil controle. Numa abordagem desesperada para tentar cessar seus ataques, um neurocirurgião retirou o hipocampo e as regiões adjacentes dos dois lados do cérebro. Após a cirurgia, H. M. seria capaz de reconhecer pessoas e objetos e se lembrar de eventos que conhecia antes da cirurgia, mas o resultado inesperado foi que ele não conseguiu mais reter lembranças novas por muito tempo. Sem o hipocampo, tudo o que se passava com ele rapidamente caía no esquecimento. O filme Amnésia, de 2000, gira em torno de um personagem que tem condição neurológica semelhante.
O caso de H. M. demonstra que o hipocampo e o lobo temporal medial, em gera dispensáveis à percepção, são críticos par a transformação de memórias de curto prazo (fatos que retemos por curto tempo) em memórias de longo prazo (coisas lembradas por horas, dias ou anos). Alinhados com essa evidência, argumentamos que as células-conceito residentes nessas áreas são essenciais para traduzir o que está em nossa consciência – tudo o que é desencadeado por estímulos sensoriais ou recordações internas – em memórias de longo prazo, que serão posteriormente armazenadas em outras áreas do córtex cerebral. Acreditamos que o neurônio Jennifer Aniston que encontramos não era necessário para o paciente reconhecer a atriz ou se lembrar de quem ela era, mas fundamental para trazer Aniston à consciência par forjar novos laços e memórias relacionados a ela, como mais tarde lembrar-se de ter visto seu filme.
Nosso cérebro pode usar um pequeno número de células-conceito para representar muitas facetas de uma coisa como um conceito singular: uma representação esparsa e invariável. O funcionamento de células-conceito percorre um longo caminho para explicar como lembramos as coisas: recordamos Jennifer ou Luke em todas as formas, em vez de nos lembrarmos de cada poro do rosto deles. Não precisamos (nem queremos) lembrar cada detalhe do que ocorre conosco.
CHEIRO, FORMA E COR
O que é importante é compreender a essência de determinadas situações que envolvam pessoas e conceitos relevantes para nós, em vez de lembrar uma infinidade avassaladora de detalhes sem sentido. Se encontramos alguém que conhecemos em um bar, é mais importante lembrar alguns eventos marcantes nesse encontro do que o que exatamente a pessoa estava vestindo, cada palavra pronunciada ou como eram os outros desconhecidos que curtiam o bar. Células-conceito tendem a disparar para coisas pessoalmente relevantes porque normalmente nos lembramos de eventos que envolvem pessoas e coisas que nos são familiares e não investimos em fazer lembranças de coisas sem relevância particular.
As memórias são muito mais que conceitos isolados únicos. Uma memória de Jennifer Aniston envolve uma série de eventos dos quais ela – ou sua personagem em Friends nessa questão – é parte. A lembrança total de um episódio único de memória exige conexões entre conceitos diferentes, mas associados: Jennifer Aniston ligada ao conceito de você sentado no sofá enquanto toma sorvete e assiste a Friends.
Se dois conceitos estão relacionados, alguns dos neurônios que codificam um conceito também podem disparar para outro. Essa hipótese cria explicação fisiológica de como os neurônios do cérebro codificam associações. A tendência de as células dispararem para conceitos relacionados pode ser a base da criação de memórias episódicas (como a sequência específica de eventos durante o encontro no bar) ou o fluxo de consciência, movimentando-se espontaneamente de um conceito a outro. Vemos Jennifer Aniston e essa percepção evoca a memória da televisão, do sofá e do sorvete – conceitos relacionados que fundamentam a lembrança de assistir a um episódio de Friends. Um processo semelhante pode criar também ligações entre aspectos da mesma noção armazenadas em diferentes áreas corticais, reunindo o cheiro, a forma, a cor e a textura da rosa – ou a aparência e a voz de Jennifer.
Devido a vantagens óbvias de armazenamento de memórias de alto nível como conceitos abstratos, podemos perguntar também por que a representação desses conceitos tem de ser esparsamente distribuída no lobo temporal medial. Uma resposta é fornecida por estudos de modelagem, mostrando consistentemente que as representações esparsas são necessárias para a criação de associações rápidas.
Os detalhes técnicos são complexos, mas a ideia geral é bastante simples. Imagine uma representação distribuída – em oposição à representação esparsa – para a pessoa que encontramos no café, com os neurônios codificando cada característica mínima dessa pessoa. Imagine outra representação distribuída para o bar em si. Fazer uma conexão entre a pessoa e o café exigiria a criação de ligações entre os diferentes detalhes que representam cada conceito, mas sem misturá-los com outros, porque o bar se parece com uma livraria confortável, e nosso amigo se parece com alguém que conhecemos.
A criação dessas associações com redes distribuídas é muito lenta e leva à mistura de memórias. O estabelecimento dessas ligações com essas redes esparsas, pelo contrário, é fácil e rápido. Exige apenas algumas associações entre os grupos de células que representam cada conceito, fazendo com que alguns neurônios comecem a disparar para os dois conceitos. Outra vantagem de uma representação esparsa é que algo novo pode ser adicionado sem afetar profundamente tudo o mais na rede. Essa separação é muito mais difícil de conseguir com redes distribuí- das, em que a adição de um novo conceito desloca limites para toda a rede.
Células-conceito conectam a percepção à memória, produzem uma representação abstrata e esparsa de conhecimento semântico – pessoas, lugares, objetos, todos os conceitos significativos que compõem nossos mundos individuais. Formam os blocos de construção para as memórias de fatos e acontecimentos de nossa vida. Seu eficiente esquema de codificação permite que nossa mente deixe de lado inúmeros detalhes sem importância e extraia significados que podem ser usados para fazer novas associações e memórias, codificando o que é essencial reter de nossas experiências.
Células-conceito não são completamente iguais às células-avó concebidas por Lettvin, mas podem ser uma importante base física de aptidões cognitivas humanas, os componentes do hardware do pensamento e da memória.