CAMINHOS DIFERENTES
Número de feminicídios de negras aumenta e o de brancas diminui

Aos 44 anos, Ester Rufino se considera uma exceção que esteve perto de entrar nas estatísticas que fazem das mulheres negras as principais vítimas de feminicídio no Brasil. Negra e nascida na periferia de São Paulo, sofreu desde a juventude com a violência física, sexual, psicológica, patrimonial e verbal. Mas conta que conseguiu romper o ciclo de agressões.
“Sou uma sobrevivente”, diz a advogada, que foi empregada doméstica e hoje é diretora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
As mulheres negras representam 67% das vítimas dos casos notificados em 2020, dos quais 61% são de mulheres pardas e 6% pretas, segundo dados levantados pelo Instituto Igarapé. As brancas correspondem a 29,5% das vítimas dos feminicídios, e as indígenas, a 1%.
Enquanto o homicídio de mulheres brancas diminuiu 33% entre 2000 e 2020, o assassinato de pretas e pardas aumentou em 45%.
“Sofri violência na família, no meu primeiro casamento. De me mandarem tirar a roupa para saber se era virgem”, lembra Ester. “Por falta de apoio do Estado, e viver num ambiente muito conservador, não pude abrir a boca por muitos anos. Até que a rede de feminismo negro e a psicóloga Cleide Neves, que atua há mais de 20 anos na Educafro, me alcançaram. E me deram força para sair desse ciclo”, detalha.
Ativista há 16 anos da Educafro, Ester ajuda mulheres vítimas de violência doméstica, no coletivo Manas Pretas Egressas. Segundo ela, a ausência de políticas públicas nas comunidades contribui para o aumento do feminicídio de negras.
“Nós não temos que buscar as políticas públicas. Elas que precisam estar por perto. Quando não estão, é o Estado declarando a pena de morte dessa vítima”, afirma Ester, que ainda hoje convive com as sequelas da violência que enfrentou. “Quem sobrevive à violência segue em tratamento constante. Hoje vivo com medo, mas cercada de mulheres que me dão acolhimento, proteção e vontade de seguir em frente.”
PIORA PARA INDÍGENAS
Há, também, um recrudescimento dos casos envolvendo mulheres indígenas, segundo os dados colhidos pelo DataSUS, do Ministério da Saúde, pelo Igarapé, para a plataforma Evidências sobre Violências e Alternativas para Mulheres e Meninas. O aumento foi de sete vezes no período de 20 anos, de acordo com o levantamento.
O assassinato de brancas por armas de fogo diminuiu 46% em 20 anos. O de mulheres indígenas aumentou em 79%, e o de negras, 64%.
“O aumento da violência contra a mulher precisa ser analisado sob a perspectiva racial e etária, e os dados precisam ser acompanhados de perto pelos tomadores de decisão, sobretudo diante da desigualdade racial presente na violência. O racismo estrutural afeta mulheres negras e as coloca em posição de vulnerabilidade e risco”, afirma Renata Giannini, pesquisadora à frente do projeto. “O racismo estrutural impacta diretamente a posição que mulheres negras ocupam na sociedade. Infelizmente, a grande maioria dessas mulheres está na base da pirâmide social e econômica, tem menos acesso a serviços e está mais propensa a sofrer todos os tipos de violência.”
Além disso, uma vez sofrida a violência, mulheres negras também não recebem o mesmo suporte.
De acordo com os números do DataSUS, em 20 anos, 32% das mulheres foram assassinadas dentro de suas casas – a proporção é de 14% no caso dos homens. Entre 2000 e 2020, houve um aumento de 167% nos assassinatos de mulheres indígenas dentro de casa; 97% no caso das mulheres pardas; e 41% no caso das mulheres pretas. O de brancas diminuiu 15%.
“As mulheres negras, além da questão de gênero, acumulam marcadores sociais. Muitas residem em regiões periféricas, não possuem autonomia financeira, são dependentes financeiramente de seus agressores e sofrem muito mais com a revitimização do próprio sistema. Quando batem na porta de uma delegacia para denunciar a violência, são, em grande parte dos casos, descredibilizadas, desencorajadas de denunciar e mandadas de volta para a casa junto aos seus agressores”, afirma Izabella Borges, advogada, historiadora, psicanalista e fundadora do Instituto Survivor. “Sabemos que a violência doméstica é um fenômeno complexo, que exige uma rede de apoio. As mulheres negras, assim como as indígenas, estão muitas vezes solitárias nesta luta. Não têm acesso aos serviços sociais e à rede de apoio, e acabam permanecendo no ciclo da violência até que ele atinja o seu ápice, que é o feminicídio.”
As informações extraídas dos sistemas de saúde são fundamentais para um quadro mais fidedigno da gravidade do problema, segundo o Igarapé. Os dados extraídos das polícias e secretarias de segurança pública são subnotificados, pois nem todas denunciam as violências aos órgãos do sistema de justiça criminal, de acordo com o instituto.
ARMAS DE FOGO
Em 2020, 3.822 mulheres foram assassinadas no Brasil, o que representa um aumento de 10% na comparação com 2019. A maioria das assassinadas estava na faixa etária de 15 a 29 anos (41%) e 30 a 44 anos (33%).
Metade das mulheres foi morta por armas de fogo em 2020, o que representou um aumento de 5,7% frente ao registrado em 2019. Objetos cortantes foram os instrumentos utilizados em 26% dos feminicídios, enquanto a força física levou a 9% dos assassinatos. Objetos contundentes estiveram presentes em 6% dos casos e produtos químicos, em 3%.
“Arma de fogo é um fator de risco para as mulheres, especialmente dentro de casa. A política de descontrole de armas de fogo tem um impacto desproporcional nas mulheres”, diz Melina Risso, diretora de Pesquisa do Instituto Igarapé.
Como mostrou levantamento exclusivo, no Congresso Nacional, 73% das parlamentares da próxima bancada feminina são contra a flexibilização da posse e do porte de armas.
ALVOS PREFERENCIAIS
Segundo levantamento com base em dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde, há dois anos, as mulheres foram o alvo em 89% dos casos de violência sexual; 84% dos casos de violência psicológica; 83% dos casos de violência patrimonial; e 69% dos casos de violência física.
Mulheres têm 3,5 vezes mais probabilidades de sofrer violência que homens. A taxa de violência é de 270 para cada 100 mil habitantes, enquanto que a de homens é de 79 por 100 mil. Negras também são as mais afetadas: correspondem a 54% dos casos. Brancas são 37%, e indígenas e amarelas somam 1% cada.
Em 2020, 228 mil mulheres foram vítimas de violência. A maior parte sofreu violência física (56%), sexual (15%) e patrimonial (2%). Embora as mulheres entre 15 e 29 anos concentrem 38% das vítimas de todos os tipos de violência, meninas de zero a 14 anos correspondem a 58% das vítimas de violência sexual.
This is very sad! 😭
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