‘DIRIGI DORMINDO’
Sem controle, remédio para insônia provoca sonambulismo e dependência

“Dirigi por aí dormindo.” “Mandei áudios no grupo do trabalho.” “Esqueci como falar português.” Os relatos são muitos, e têm dominado as redes sociais. As experiências aconteceram durante a noite, mas foram descobertas apenas no dia seguinte. A causa é a mesma: o remédio hipnótico para insônia Zolpidem, cujas vendas explodiram no Brasil.
Especialistas explicam que o medicamento por si só não é um problema, mas o uso inadequado, o quadro de dependência e a busca para fins recreativos, que tem crescido entre os jovens, oferecem riscos graves que têm acendido o alerta em hospitais e consultórios.
A preocupação não é à toa. A compra do medicamento de fato cresce em ritmo alarmante entre os brasileiros: de 2017 até 2020, por exemplo, aumentou 121,5%, saltando de 10,5 para 23,4 milhões de caixas vendidas. Somente nos seis primeiros meses de 2022, já foram comercializadas 10,6 milhões.
“Esse crescimento ocorre em parte porque muitos médicos que prescreviam benzodiazepínicos, geração anterior de remédios para a insônia, passaram a indicar o Zolpidem. Mas também é pelo fácil acesso, que leva ao uso abusivo e inadequado, até mesmo de forma recreativa, o que é muito grave. E tem também essa característica de hoje as pessoas que querem ter tudo sob controle, até mesmo o adormecer, sendo que a realidade não é bem assim”, avalia a coordenadora do Ambulatório de Sono do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Rosa Hasan.
Alguns efeitos colaterais do remédio são bem conhecidos, como a amnésia, a agitação e os pesadelos, porém um que tem ganhado destaque é o sonambulismo. Segundo um estudo publicado no periódico European Neuropsychopharmacology, a consequência acomete cerca de 5,1% dos pacientes, mas especialistas alertam que entre aqueles que fazem uso de forma inadequada, como tomar fora da cama ou além do período recomendado, de no máximo quatro semanas, a probabilidade é bem maior.
O sonambulismo foi justamente o que levou a dona de casa Rica Gomes Todeschini, de 49 anos, de São Paulo, a interromper a medicação. Ela começou a tomar o Zolpidem por orientação médica, em 2019, logo depois de ter perdido a mãe e ter descoberto um nódulo no pâncreas, cenário que a deixou com dificuldades intensas para dormir.
Antes de começar a tomar o remédio, ela ia para o seu ateliê de costura ao perder o sono. Por isso, seu marido não estranhou a princípio quando, após cerca de quatro meses tomando o hipnótico, Rica passou a se levantar e sair do quarto no meio da noite.
“Mas ele ficou cismado porque estava começando a ser quase todo dia. Então um dia decidiu me procurar no ateliê, mas não encontrou. Ao abrir a porta de casa, viu que o carro não estava na garagem. Eram 3h da manhã”, conta.
Ele esperou Rica retornar, pensando se tratar de uma emergência, mas quando ela voltou, aproximadamente 45 minutos depois, conversou com ele como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte, ele perguntou se ela lembrava que havia dirigido na noite anterior, o que a pegou de surpresa.
“Eu não sei para onde eu fui, não sei o que eu fiz, não sei se parei num boteco e bebi, não me lembro de nada. Fico com medo de ter feito algo errado, é muito perigoso. Liguei para o psiquiatra e ele mandou eu parar, mas aos poucos, porque pelo tempo que eu estava tomando não poderia interromper imediatamente. Nesse meio tempo, meu marido escondeu a chave do carro”, diz.
USO INADEQUADO
Neurologistas ouvidas explicam que o Zolpidem não é um vilão, mas acabou não sendo o medicamento perfeito para a insônia como foi prometido nos anos 1990. Ele foi criado para substituir os benzodiazepínicos, descobertos nos anos 1960, que eram amplamente utilizados porém provocam quadros graves de dependência e déficit cognitivo a longo prazo.
O Zolpidem faz parte das chamadas drogas Z, ou não benzodiazepínicos, que atuam também no sistema do cérebro chamado de GABA. Esse mecanismo promove uma redução da atividade no sistema nervoso.
“É um hipnótico muito mais específico [que os benzodiazepínicos], atua no subtipo de receptor GABA A. Quando ele se liga, vai especificamente para um local onde existe o efeito de fazer a pessoa dormir rapidamente. Outros remédios induzem o sono de uma maneira menos abrupta, por serem menos específicos”, explica a neurologista Dalva Poyares, professora de medicina do sono na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora do Instituto do Sono.
Para Rosa Hasan, ele não foi o que se esperava porque hoje sabe-se que o remédio também promove dependência e tolerância, e pode levar a efeitos colaterais preocupantes, como os vividos por Rica. Porém, destaca que é importante para os casos de insônia desde que haja a devida orientação médica:
“Se é uma pessoa que toma direito, indicado pelo médico, na cama, sem ultrapassar o limite de quatro semanas, nós não temos problemas com a medicação. É um bom remédio, o problema é esse uso indevido”, afirma ela.
Poyares concorda que não se trata de uma terapia de uso prolongado, e que exceder o prazo da bula de quatro semanas é uma das principais causas da dependência.
“Com o uso crônico, você pode desenvolver tolerância, ou seja, precisar de uma dose maior para ter o mesmo efeito, e ele começa a reduzir o tempo de ação. Então passa a acordar no meio da noite, por causa do medicamento, e toma outro”, diz a especialista.
Tanto ela, como Rosa Hasan, contam atender muitos pacientes com quadros de vício, uma quantidade que cresce em ritmo alarmante. Além dos riscos já conhecidos pelo comportamento inconsciente – como bater o carro, ter relações sexuais indesejadas e desprotegidas, passar por situações de constrangimento ou criar despesas financeiras -, a dependência a longo prazo pode levar a problemas neurológicos, como perda de memória ou um quadro ainda pior de insônia.
“No HC nós temos até internado com uma certa frequência casos gravíssimos de dependência, com números absurdos de comprimidos, pessoas que tomam mais de 100 por dia. Toda semana eu atendo dois, três casos novos”, conta Hasan.
FISCALIZAÇÃO
Uma das críticas das especialistas sobre o fácil acesso ao Zolpidem é em relação às regras para a prescrição no Brasil. O fármaco faz parte da categoria B1 de medicamentos, os psicotrópicos, e portanto deveria demandar uma receita do tipo azul para a compra nas farmácias. Nessa modalidade, cada receita é padronizada, tem uma numeração controlada, fica retida e exige mais informações do médico e do paciente. Portanto, a fiscalização é mais rígida.
No entanto, medicamentos à base de Zolpidem com menos de 10 mg podem ser prescritos com a receita de controle especial, uma forma mais branda.
“Gostaria que fosse uma medicação mais controlada, porque a facilidade dá a sensação de ser um remédio tranquilo, para qualquer um. Na França, por exemplo, restringiram o acesso e isso reduziu bastante o consumo”, defende a neurologista.
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