O TAMANHO DA VAIDADE
Falta de padrão da numeração das roupas escancara truques da indústria da moda que prejudicam autoestima feminina e aumentam as vendas e a gordofobia

De frente para um grande espelho, no provador com luz âmbar e música ambiente da sua loja favorita, a vendedora lhe oferece uma calça um ou dois números menores. A peça serve, deixa sua silhueta definida e você, surpresa com a situação, fica feliz por ter a peça na hora e compra. Embora fictícia, a cena tem sido cada vez mais frequente e escancara uma questão que as mulheres vêm percebendo ao longo dos anos: as etiquetas não são apenas irregulares, sem padrão definido. Elas andam “encolhendo” para “seduzir” as consumidoras. “Esse truque não é novo. Nós somos conscientes do nosso tamanho e qual é ele nas marcas e lojas onde compramos”, diz a stylist Manu Carvalho. “Mas existe aquela ilusão momentânea e acompanho isso com as minhas clientes. Um dia, uma delas falou: ‘Nossa, essa roupa é 38, e eu não sou 38!’. Ela vibrava, empolgada. O mesmo acontece com quem veste tamanhos maiores e se vê usando uma peça que não é de uma loja plus size. Essa emoção mexe com todas, independentemente do manequim”, completa a também consultora de moda.
A técnica, como diz Manu, tem nome: vanity sizing, ou tamanho da vaidade. “Importada” dos Estados Unidos, é uma maneira de “melhorar” a autoestima da consumidora fazendo com que ela se sinta mais magra ao provar uma roupa e, consequentemente, compre mais. “É muito comum também a vendedora falar, ‘vou pegar o tamanho 40, porque essa coleção veio menor. Ou, 36, porque essa está maior’. Outro ponto são as estéticas de cada coleção: você pode ter peças mais sequinhas e outras oversized. E isso também vai interferir no tamanho de cada pessoa. É muito difícil, quase impossível regulamentar isso. Se um dia for regulamentado, pode ter certeza que, no próximo, já vai ter alguém fazendo algo por fora”, analisa ela.
Na verdade, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) emitiu uma norma no fim do ano passado em que padroniza o tamanho das roupas, oferecendo novos referenciais de medidas para as marcas com base em dois tipos de corpos que, segundo a associação, são mais frequentemente observados nas brasileiras: “retângulo” e “colher”. Enquanto no primeiro, as medidas do busto e do quadril são parecidas e a cintura não é bem marcada, no segundo, as laterais são mais arredondadas e o quadril é maior que o tórax. “Ainda é uma coisa muito recente, essa norma tem menos de um ano e está sendo discutida. Quem ajudou a fazer o escaneamento dos corpos e medidas foi uma grande varejista, então, acredito que fatalmente outras redes devem ir na onda, senão, vão ficar para trás. O público pede essa inclusão”, diz a ativista e empresária paulista Flávia Durante.
Para ela, mais do que ilusão ou apenas uma tática das lojas para alimentar o consumo, a prática escancara a gordofobia e o fato de que a moda, apesar das recentes tentativas de inclusão com corpos diversos nas passarelas e campanhas, sempre prezou pelo biotipo magro. “Começaram a diminuir os tamanhos das roupas para que as pessoas, principalmente mulheres, se sentissem melhor, como se vestir um tamanho maior fosse algo desabonador ou ruim”, diz ela, que é criadora da Pop Plus, maior feira de moda plus size da América Latina. Flávia também critica o resgate da moda Y2K, que tem como um dos seus maiores símbolos a calça de cintura baixa. “Tem se falado muito sobre essa volta da magreza dos anos 2000, só que na verdade ela nunca deixou de ser valorizada. A gente, que é da militância gorda, sempre sofreu com a gordofobia, essa pressão estética nunca deixou de existir”. As mulheres ditas mid size, que usam entre 42 e 46, também não são contempladas pelas marcas tradicionais. “Elas não aumentam suas grades, e são as roupas plus size que estão diminuindo seus tamanhos para incluir essas mulheres. Está tudo errado. O ideal seria que todas as marcas fossem all sizes”, lamenta ela.
Filha da atriz Flávia Alessandra, a também atriz Giulia Costa, de 22 anos, fez um desabafo recente em suas redes sociais sobre o assunto. No período pós-pandemia seu corpo mudou, e Giulia começou a se sentir desconfortável ao entrar em lojas e experimentar roupas. “Percebi que o que eu vestia antes não estava mais cabendo em mim. Então, passei a comprar algumas calças tamanho 42 e 44. Não que isso seja um problema, mas se eu, que sou considerada uma menina magra e até dentro de um certo padrão, estou vestindo esse manequim, quem já vestia antes esses tamanhos, está usando o quê? Quem se encaixa nos tamanhos que temos hoje? Uma minoria”, questiona.
Ao jogar luz sobre a questão dos tamanhos das roupas, Giulia percebeu que não estava sozinha e recebeu muito apoio. “Entendi que, antes, eu não percebia que existia essa pressão (pelo corpo ideal) ou achava que era algo natural. Tenho uma mãe que é supervaidosa, e não falo isso de forma negativa, mas as pessoas lidam com o corpo e a comida de forma diferente. Dos 15 aos 18 anos, não tinha noção de que havia outra opção, que eu poderia ser de outra forma”, explica. “A gente sempre vai se achar fora do padrão, porque esse padrão, no fundo, não existe. A beleza é idealizada, inalcançável”, completa.
Construindo uma relação de paz com seu corpo, o que nem sempre foi uma tarefa fácil, a atriz Luana Xavier, de 35 anos, explica que antigamente justificava o seu não interesse pela moda por não ter suas necessidades atendidas. Porém, hoje, faz questão de usar marcas que produzem um vestuário mais inclusivo. “Fui pesquisar um pouco mais sobrea questão das modelagens e entendi que o padrão quer fingir que os corpos gordos não existem. Antigamente, eu vestia um tamanho 48, mas hoje parece que esse 48 virou 42 e ele segue sendo 48”, lamenta. Luana ressalta também que a situação piora quando há o recorte de classe. “Quando falamos de mulheres com menos grana, isso se complica. Porque elas não têm o direito nem de sonhar em usar uma roupa bacana”, completa.
Há mais de 30 anos fazendo uma moda praia chique e democrática, que contempla do PP ao GG, a estilista Lenny Niemeyer conta que o tamanho de suas peças sempre foi o mesmo. E que o vanity sizing é, sem dúvida, uma estratégia preconceituosa e sem espaço em sua grife. “Acho que as pessoas, na verdade, nunca gostam de achar que são G ou GG, mas isso vem mudando com a aceitação maior dos corpos. Eu nunca troquei o tamanho das minhas etiquetas. Quem usa meu M, vai usar sempre o M. Simular que a pessoa está mais magra é uma enganação”, explica. O que Lenny fez ao longo do tempo foi apenas descasar a venda de sutiãs e calcinhas de biquíni, para contemplar mulheres que podem ter, por exemplo, peito ou quadril maiores. “O corpo da brasileira é muito variado. Quando a gente cria a peça, temos modelos de prova, que no meu caso, são pessoas que trabalham comigo. Às vezes a mulher é magra embaixo ou tem um peito maior, então, existe essa facilidade”.
Ainda que por alguns minutos, aqueles do momento da compra, possa ser incrível levar para casa uma peça de tamanho menor, os efeitos para a autoestima não vão se manter a longo prazo. Presidente da Associação Brasil Plus Size, criada há seis anos para reunir dados e gerar inteligência de mercado, Marcela Liz acredita, assim como Lenny, que as mulheres foram condicionadas a não querer usar números maiores. E a solução para fazer as pazes com o armário e o próprio corpo vem do autoconhecimento.
“A indústria se apropria do desejo feminino de usar número menores. É preciso se olhar com consciência do seu tamanho, sem se envergonhar disso”, finaliza.
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