CORPO MANIFESTO
Em um país onde 85% das pessoas gordas afirmam sofrer preconceito, assumir as curvas é um ato político. Convidamos a maior ativista brasileira na luta contra a gordofobia a escrever sobre o tema neste domingo de eleição

Após uma eleição que vai mudar o rumo do país, falar sobre o corpo gordo parece fora da realidade. Digo isso porque a nossa sociedade não tem referências desses corpos coabitando um espaço de enaltecimento, de poder, salvo os homens gordos da política e os grandes CEOs. Afinal, quando tivemos uma mulher na presidência foi a única vez na nossa História em que a líder máxima do poder Executivo foi questionada sobre o tamanho da cintura, a dieta que fazia e o por quê do cabelo curto.
Qual imagem vem à sua mente quando se pensa em uma mulher gorda? Será que ainda é a do estereótipo carregado de termos pejorativos como “desleixada”, “fracassada”, “coitada”, “incapaz”, “preguiçosa”, “indigna”, “inferior”…?
Uma pesquisa recente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica, intitulada Obesidade e Gordofobia – Percepções 2022, mostra que 85,3% das pessoas gordas afirmam sofrer gordofobia no Brasil, o segundo país que mais faz cirurgias plásticas e procedimentos estéticos no mundo, de acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética.
O mesmo país que entrou no mapa da fome e tem 33,1 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar, é o país mais ansioso do mundo, segundo a OMS. Um Brasil com mulheres morrendo por conta de chá emagrecedor, lipo de alta definição e “modificações no rosto” consideradas simples. Uma nação que tem até vídeo ensinando a fazer rinoplastia em casa, e um rapaz que sofreu sérias consequências por isso.
Nada é simples. Nada é por acaso. E foi naturalizado. Uma sociedade com esses dados é a mesma que enaltece a cultura da magreza. Uma egrégora em torno do assunto “corpo”, onde o tamanho da roupa que se usa diz mais sobre você do que sua personalidade, seu caráter, suas capacidades.
É mais importante caber na calça 36 do que conquistar um diploma de faculdade. É mais urgente emagrecer para o verão do que curtir a estação mais quente do ano. A cultura da magreza faz com que você odeie sua imagem desde pequena e permaneça insatisfeita com ela durante toda a vida. Nunca foi e nunca será sobre emagrecimento saudável, uma relação intuitiva e consciente com a alimentação ou apologia à saúde mental. Tudo isso acontece porque fomos ensinadas desde pequenas que o corpo magro é o corpo certo.
Com 9 anos de idade, fui ao endocrinologista e ele me deu a seguinte “opinião” não solicitada: “Emagreça, ninguém vai te querer porque você é gorda”. Se já é cruel ouvir isso para uma adulta, pense em como foi para uma criança.
E o médico estava “certo”. Nos anos 1990, qual referência eu tinha? Olhei ao meu redor, nos desenhos, nas capas das revistas, e nunca me enxerguei. Alguém como eu não era merecedora de uma vida de grandes conquistas. Daí o meu maior objetivo: ser magra. Aí sim minha vida iria começar, e eu poderia me dar ao luxo de viver. De aproveitar.
Mas isso nunca aconteceu. A cultura da magreza enaltece dietas superrestritivas, exercícios extenuantes… E adivinha o que acontece? Estudos científicos comprovam que a restrição leva à compulsão, como li numa edição da Revista de Nutrição, publicada em 2005: “As restrições e autoimposições das pessoas que fazem dieta parecem ter um efeito rebote, resultando em compulsão alimentar, a qual pode associar-se a consequências psicológicas, como a perda da autoestima, mudanças de humor e distração”.
Você nunca sai desse ciclo de insatisfações, a dieta nunca acaba, precisa manter esse estilo de vida para sempre. Esse estilo de vida que a aprisiona, a torna fraca, literalmente sem energia para viver.
Uma criança de 11 anos do Reino Unido tinha anorexia nervosa, lidava com transtornos e, em tratamento, acabou com a própria vida, escrevendo nas paredes “meninas bonitas não comem”. A máxima dos distúrbios alimentares. É isso que queremos para as nossas crianças? Essa mentalidade de “você não é perfeita, dê um jeito e mude”. Acabar com a vida é a solução? Para mim pareceu durante um tempo, até que finalmente fiz uma lipo, coloquei silicone, vivi o “sonho do corpo perfeito” e, três meses depois, tentei suicídio. Como explicar chegar ao corpo dos sonhos e ainda assim estar triste, infeliz e desejando morrer? O nome do meu primeiro livro não é “Pare de se odiar” à toa.
A cultura da magreza nunca foi sobre saúde, mas sobre criar em todas as mulheres a sensação de não ser boa o suficiente. Em nada. Permanecer nessa busca incessante é bom para quem? Quem se beneficia disso? Será que é a indústria do emagrecimento que lucra bilhões ao ano? E se isso tudo acontece inclusive com pessoas magras e próximas ao padrão de beleza, imagine com quem está à margem… Se até a Jennifer Lopez faz modificação digital nas fotos do seu corpo, que já é tido como “perfeito”, como deve ser para a mulher gorda?
Não é lembrada pelas marcas de roupas, não é considerada em campanhas publicitárias, não é atendida com gentileza pelos médicos, não é enaltecida no entretenimento, não é tratada com afeto, não passa na catraca, não cabe nos espaços, não tem representatividade. É estar sempre marginalizada e patologizada como um corpo que precisa diminuir. Imagina se a mulher gorda for preta ou LGBTQIAP+, de baixa renda, uma pessoa com deficiência… Só piora a marginalização.
A gordofobia é o preconceito contra o corpo gordo apenas por ele existir. É a cantora Lizzo recebendo ódio de um dos maiores rappers do mundo por apenas ser gorda e livre. É ser “zombada” publicamente por um “humorista” depois de sair na capa de uma matéria importante para um veículo internacional. Gordofobia não é piada.
É a mulher ser julgada até pela forma como respira, senta, anda, se veste, se movimenta. Uma mulher gorda viver e existir na sociedade é um ato político. Apenas isso.
A mulher gorda nunca foi incentivada a viver. A sair dessa solidão que a aprisiona e entender que existe um mundo alternativo que pensa esse corpo, a diversidade desses corpos, nomenclaturas para gordas menores (com mais acesso) e as maiores (com menos acesso). É um mundo possível.
O que as fotos deste editorial dizem para você? O que elas representam? O que esta capa representa? E eu, ao escrever este texto? São muitas perguntas, mas vou responder: significa muito. É o maior veículo do país dizendo neste dia superimportante que devemos olhar para esses corpos com amor, gentileza, afeto. É começar a ver a revolução na sua amiga gorda que é livre com o corpo dela. Entender que o simples fato de ela estar ali já é resistência diante de uma sociedade inteira que a trata como errada.
Se isso lhe causa algum sentimento ruim, reflita, leia o texto de novo, siga os perfis do Movimento Corpo Livre nas redes. Um espaço seguro sobretudo no Instagram, considerado o mais nocivo à saúde mental dentre essas plataformas. Um lugar que vai inspirá-la a mudar seu olhar sobre tudo isso e finalmente pensar em saúde de verdade. Garanto que a liberdade vai lhe conquistar. Saia da prisão que lhe colocaram.
E hoje quem está enaltecida nesta capa é você, mulher gorda. Não estamos acostumadas com isso, mas aos poucos as coisas estão mudando. Eu mesma fui capa da ELA no ano passado e saí na capa da Vogue esta semana, quem diria? A menina de 9 anos nunca acreditaria nisso. Porque precisamos ser ensinadas a lidar com o poder das coisas. Você pode. Mesmo que queira emagrecer, mesmo que queira mudar seu corpo, mesmo que o preconceito continue tentando lhe derrubar. Você pode até cair, mas a liberdade vai lhe ensinar a se levantar e entender que o seu corpo pode ser livre. E político.
ALEXANGRA GURGEL – É carioca, jornalista, escritora e ativista. Em 2020, fundou o movimento #CorpoLivre para ajudar a mudar a percepção das pessoas sobre diferentes corpos, principalmente o gordo. Tem mais de 1 milhão de seguidores no seu perfil no Instagram, @alexandrismos.
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