O SONO É BOM REMÉDIO
A Associação Americana do Coração acaba de incluir o descanso noturno de qualidade na lista dos itens essenciais para a saúde. É a prova de quanto o repouso prolonga a vida

“Tanto o sono quanto a insônia, quando imoderados, são ruins”, ensina um dos aforismos hipocráticos apresentados no Corpus Hipocraticum, o fabuloso compêndio de tratados sobre a saúde cuja autoria foi atribuída a Hipócrates, o estudioso grego que, cerca de 400 anos antes de Cristo, criou as bases da medicina ocidental. A coleção foi a cartilha das faculdades médicas até o fim do século XVIII, quando informações obtidas por meio dos métodos científicos que começavam a surgir deram início à substituição de ensinamentos baseados somente em evidências empíricas. Contudo, muito do conhecimento registrado na obra resistiu ao escrutínio, permanecendo entre os pilares do que se sabe atualmente a res- peito do corpo humano. A importância do sono é um deles – e a ciência nossas sabe cada vez mais a respeito dessa relevância.
No entanto, até agora a recomendação de dormir bem não integrava a lista oficial de hábitos a serem adotados para uma vida saudável, juntando-se à boa alimentação e à prática de exercícios físicos. Embora tenha se tornado mais conhecida, a orientação figurava entre os itens complementares, não essenciais. Isso mudou completamente na semana passada, quando a Associação Americana do Coração divulgou a atualização das sete métricas que determinam os parâmetros para preservar ou melhorar a saúde do coração e do cérebro, o Life’s Essential 7. Pela primeira vez, a principal entidade do mundo da cardiologia incluiu o sono nessa lista. Ter um descanso noturno de qualidade ganhou a mesma importância que a alimentação saudável, a realização de exercícios físicos e do controle do peso, da pressão arterial, da concentração de gorduras e açúcar no sangue e de manter-se longe do cigarro. E o Life’s Essential 7 virou Life’s Essential 8. O sono de boa qualidade, definiu a entidade, deve ocorrer sem interrupções e durar, em média, de sete a nove horas por noite. “A inclusão do sono reflete os achados das pesquisas mais recentes, que confirmam seu impacto para a saúde em geral”, diz Donald M. Lloyd-Jones, presidente da associação.
Dormir é um processo fisiológico essencial para a sobrevivência porque está envolvido nas funções biológicas vitais. A título de exemplo: déficits de sono perturbam terrivelmente delicados mecanismos que permitem o funcionamento correto do metabolismo, processo pelo qual são atendidas todas as necessidades energéticas e estruturais de um ser vivo. Por isso, o impacto negativo no desempenho de funções como o uso e armazenamento de gordura e a concentração de açúcar e colesterol no sangue é brutal. Além disso, o sono contribui para preservar a integridade cerebral, mantendo seguras a capacidade de aprendizado, de memória, de cognição, de regulação emocional e a habilidade de o cérebro se adaptar a circunstâncias diferentes. Daí sua importância no tratamento de sequelas deixadas por acidente vascular cerebral ou lesões de outra origem e na prevenção da doença de Alzheimer. Uma das características da enfermidade é o depósito de uma pro- teína sobre os neurônios, levando-os à morte. Quando o repouso é de qualidade, esse risco diminui porque o cérebro passa por uma limpeza. “Mas, se dormimos pouco, esse sistema não funciona”, explica a neurologista Márcia Assis, vice-presidente da Associação Brasileira do Sono.
Talvez por um capricho de Hipnos, o deus do sono na mitologia grega, todo esse espetacular avanço no entendimento do papel do descanso na saúde acontece no momento em que a humanidade nunca esteve tão insone. Insônia não é um problema novo, claro, mas a eclosão da Covid-19 agravou de- mais a situação. No Brasil, uma pesquisa feita pela Associação Brasileira do Sono entre novembro de 2020 e abril de 2021 apontou que nada menos do que 70% dos entrevistados relataram sintomas do problema.
Na verdade, o que se viu nos últimos dois anos foi uma combinação de elementos associada à perda do sono. Estres- se, ansiedade e depressão, em primeiro lugar, uniram-se ao que a ciência batizou de procrastinação por vingança na hora de dormir. Pessoas que se viam sobrecarregadas pelas tarefas, sem momentos de lazer e isoladas socialmente, começaram a adiar o momento de ir para a cama, tentando achar um tempo de lazer. Assim, noites e madrugadas foram ocupadas na frente da televisão, em jogos de videogame e redes sociais. As poucas pesquisas disponíveis apontam o perfil dos que mais usam a estratégia: estudantes, mulheres e os que têm o hábito de adiar tudo, segundo a entidade americana Sleep Foundation.
Fazer frente a esse roubo do sono pela vida moderna é desafiador. Há métodos consagrados, como a terapia cognitivo- comportamental, cujo objetivo é ajudar o indivíduo a detectar o que está errado no seu entendimento e treiná-lo para mudar o comportamento derivado do equívoco. Um exemplo simples é corrigir o pensamento de que a cama pode ser também um lugar para trabalhar, associando-a ao ato de dormir.
Contudo, é preciso abrir novos caminhos. Um deles está surgindo da adequação da dieta à noite, evitando o que sabidamente faz mal, como o consumo de alimentos industrializados, e buscando opções que fazem bem. Nesse quesito, a ciência vem garimpando ótimos achados, como a constatação dos benefícios do kiwi e do arroz. Investe-se, ainda, na investigação do potencial dos aplicativos que prometem noites tranquilas. Eles ainda não contam com a chancela científica, mas análises iniciais indicam conclusões promissoras. Uma delas, feita na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, testou a eficácia do Insomnia Coach, mostrando que 28% dos participantes dormiram melhor em seis semanas de uso. No grupo de controle, o índice foi de 4%.
A saída pela tecnologia é uma avenida a ser pavimentada. O Instituto Federal de Tecnologia de Zurique explora o recurso com competência. Recentemente, a instituição apresentou um dispositivo capaz de prolongar, por meio de estimulação sonora, a etapa do sono profundo, a mais restauradora. O Sleep Loop, uma espécie de capacete que a pessoa usa para dormir, mostrou-se eficaz em testes. Aos poucos, o conhecimento impulsiona invenções dessa ordem, talhadas para promover o reencontro do ser humano com o sono de Hipnos. Hipócrates dormiria tranquilo.

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