LUXO DO LUXO
Porta-nozes, jukebox, casa de papagaio. Até onde vão os desejos mais excêntricos dos superricos? A Hermès guarda algumas respostas

Quando se trata de entender o universo do luxo, é comum ouvir a expressão “o céu é o limite” para a gama de auto indulgências que o dinheiro pode comprar. Mas, até onde vai o alcance desse céu materializado em objetos e acessórios de moda?
Para alguns, pode ser marcar um horário no número 31 da Rua Cambon, em Paris, e levar um vestido de alta-costura da Chanel, estimado em R$ 300 mil, que planeja para 2023 a abertura de lojas apenas para seus clientes VIPs. Para outros, pode ser reservar uma das 30 peças do relógio Masse Mystérieuse, lançado em abril pela Cartier, em Genebra (Suíça), e cujo preço sem taxas é de R$ 1,5 milhão.
Embora todos esses “mimos” reflitam como o mercado de luxo está se movimentando para seduzir as carteiras das 56,1 milhões de pessoas no mundo com conta bancária superior a US$ 1 milhão, segundo último levantamento do banco Credit Suisse, há ainda o luxo do luxo, onde esse céu nunca está nublado e os sonhos mais extravagantes podem virar realidade.
Das cinco marcas mais valiosas do mundo, é possível que seja a Hermès a que detém as chaves dos desejos mais íntimos dessa fatia ínfima de consumidores. Afinal, a customização é uma das várias almas do negócio. E não estamos falando das bolsas Birkine Kelly, símbolos do poder da maison nos guarda-roupas femininos, mas sim de uma divisão silenciosa de design mantida por ela, um ateliê sobreo qual pouco se fala, mas que cresce em ritmo acelerado.
Ele fica na zona industrial de Pantin, nos arredores de Paris. Dentro das paredes do prédio discreto Horizons, cadeiras de avião forradas com couro de bezerro são os objetos mais comuns dispostos pelos dois galpões imensos, onde trabalham 40 pessoas, entre designers, engenheiros e a turma que liga para a agenda de telefones mais secreta do globo. Como o número de um cliente japonês que coleciona nozes — sim, isso mesmo, nozes —e queria uma caixa para guardá-las. Não uma qualquer, é claro, mas um set de gavetas com costura feita à mão alinhavada por um dos artesãos da marca. Quem explica é Viridiana Delcour, suíça que faz parte do time do ateliê e que acompanhou a reportagem de ELA na viagem pelos gostos surreais.
E são muitos, aliás. Três meses atrás, cerca de 400 pedidos estavam em desenvolvimento, e outros 800 aguardavam o sinal verde da Hermès. É que, embora haja disposição da marca em ouvir sonhos, alguns simplesmente não se encaixam na proposta, como, por exemplo, o de uma cliente que queria uma bolsa para carregar seu cachorro. A marca já tem linha própria para pets.
Já uma casa para um papagaio, por que não? Inspirada num prédio histórico de Paris, o objeto será despachado em novembro para a cliente de Taiwan, que vive em ponte aérea e não queria ficar longe do animal. O amor, ao que parece, pode mesmo mover montanhas. E até ondas.
Por algo próximo de R$ 108 mil é possível comprar uma prancha de surfe feita por um “shaper” francês em parceria com a Hermès. Forrada de couro laranja, cor que identifica a grife, ela foi impermeabilizada e as costuras reforçadas para suportar o peso do corpo. O acabamento recebeu madeira e ainda um material antiderrapante que dispensa a parafina. O destino da prancha é uma loja em algum lugar ermo na costa do Atlântico. O mistério faz parte do ateliê, que além de não divulgar os nomes dos compradores e os preços exatos das peças, não permite que porta-vozes deem declarações sobre o processo de confecção.
Uma das raríssimas vezes em que a marca abriu os segredos que a posicionam no terceiro lugar das mais valiosas do luxo, com receita de US$ 21,6 bilhões em 2021, foi a aula privada dada em São Paulo no mês de maio para revelar os segredos da bolsa Kelly, cuja confecção é a mais difícil. Artesã moçambicana radicada em Paris, Adélia Moio mostrou a um grupo restrito de compradores como em até 18 horas ela monta a peça cuja lista de espera nas lojas brasileiras não inclui data de entrega ao lado do nome. Sabe-se que os 4.300 artesãos de couro da Hermès não estão dando conta da demanda. Segundo a marca, outros dois complexos de produção devem ser inaugurados para receber as turmas que estão sendo formadas agora. A complexidade do trabalho demanda tempo de estudo, pois cada bolsa é feita por um único artesão, que deixa uma marca secreta na peça como uma digital de seu ofício.
Cada costura feita com pinça gigante, cada metal aplicado, cada montagem de fecho e o acabamento milimétrico das alças formam o item de luxo cujo valor de entrada está na casa de R$ 60 mil – se for feita de couro de crocodilo ou cravejada de diamantes, mais uma vez, os preços tocam o céu. “Modelos como a Kelly são símbolos sobre como o luxo opera. É um mercado de escassez, e o sucesso está no equilíbrio entre essa escassez e o posicionamento. Na Hermès, a customização está em sua origem, desde quando ela fazia apenas selaria”, explica o diretor da consultoria de varejo BTR-Varese, Alberto Serrentino. O executivo afirma que a expansão do design sob medida, o “bespoke” no jargão fashionista, acompanha o aumento na quantidade de superricos, que fazem “as grifes testarem os limites de quem não tem restrições orçamentárias”. Serrentino compara o exemplo da marca francesa ao modelo da montadora italiana Ferrari, que lança edições limitadas de carros cujo acesso é restrito apenas aos clientes conhecidos “para evitar especulação por meio de revenda das peças”.
Esse tipo de restrição e a discrição provavelmente pesaram na escolha do ex-presidente francês François Hollande, que buscou o ateliê do Horizons, em 2014, para criar um presente para a rainha Elizabeth II.
Para dar um empurrãozinho na imaginação, nem tudo criado no ateliê tem destino certo. Alguns objetos são concebidos para um ponto de venda, um lugar que dialogue com aquela criação e estimule os desejos de quem pode pagar por ela. Como a prancha de surfe que sai do forno agora, ou a Jukebox lançada em 2019, feita em madeira e cristais de Murano. O tocador de discos foi inspirado nas linhas geométricas e nas cores da Bauhaus, embalado com uma pegada vintage dos anos 1950. O tamanho de 1,5 metro do chão ao teto é proporcional ao valor de R$ 1,3 milhão cobrado.
Não há exatamente uma tendência vigente em torno da megalomania, mas é possível dizer que tudo o que se move desperta interesse da clientela, de aviões (um jato Bombardier customizado havia acabado de ser entregue) a carros (um McLaren em processo de customização lá reluzia).
Talvez, devido ao desejo de escape provocado pela pandemia, o mundo náutico tem se beneficiado da euforia. Só no Brasil, segundo dados da Associação Brasileira dos Construtores de Barcos e seus Implementos, o setor faturou R$ 2 bilhões no ano passado. Não é surpresa, portanto, que a personalização de iates seja uma das novas facetas do Horizons. O primeiro irá para a Suíça e está sendo projetado junto a um estaleiro. O pedido, Delcour afirma, é de um jovem que irá se casar e decidiu passar um tempo à deriva com a noiva. Como quase tudo que diz respeito a esse tipo de sonho, o valor parece ser o de menos quando o céu já não é o limite.
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