A PELE QUE HABITO
Tatuagem redesenha vida de mulheres marcadas pela dor

Os traumas do abuso psicológico e da violência doméstica do antigo casamento deixaram cicatrizes no corpo e na alma da copeira Liliana, de 50 anos. Após levar três facadas e se automutilar na tentativa de fugir das agressões, o simples ato de se olhar no espelho passou a ser uma volta dolorosa ao passado. Em busca de ressignificar suas dores, em fevereiro deste ano, ela tatuou um leão no braço e encobriu uma das cicatrizes. A técnica artística usada para dar novo significado a corpos mutilados pela dor ou pelas cicatrizes, que começou a se popularizar no Brasil nos últimos quatro anos, tem redesenhado histórias de vida de mulheres como Liliana.
A recuperação do amor próprio através do traço de artistas também tem sido cada vez mais por vítimas de acidentes, doenças ou até mesmo de cirurgias mal feitas. Liliana optou pelo simbolismo da força do leão para amenizar marcas de automutilação no braço direito. Com uma borboleta amarela na cabeça, o animal virou uma espécie de alter ego dela.
“Escolhi fazer o leão pois além de achar um animal lindo, representa força e respeito. Depois de 26 anos de um casamento sufocado por humilhações, ele era o que precisava para me sentir forte e respeitada”, relata a copeira, que preferiu não divulgar o sobrenome, e atualmente vive sob medida protetiva após ter sido vítima de tentativa de feminicídio, em 2019, quando só não foi morta porque o filho a salvou do ex-marido que, revoltado, ateou fogo no prédio em que ela morava destruindo seis apartamentos.

CICATRIZ DESDE OS 8 ANOS
Liliana é uma das mulheres atendidas pelo projeto social We Are Diamonds, que já fez mais de 180 tatuagens gratuitas. Criada pela tatuadora Karlla Mendes, a iniciativa surgiu em 2017, após ela receber a proposta de produzir uma arte em cima de uma marca cirúrgica. Karlla estudou por conta própria e, atualmente, tem a ajuda de um cirurgião plástico e de uma dermatologista para avaliar cada tipo de pele dos clientes, que são na maioria mulheres. Ela estará na próxima Tatoo Week, a maior convenção de tatuagem do mundo, que acontece no Rio de Janeiro, para ensinar sobre o procedimento.
“Como muitas cicatrizes têm relevos ou buracos, é preciso analisar o tipo de desenho que se encaixa melhor, aproveitando a estética aprofundada para fazer tons sombreados, e direcionar a luz para outras partes. É realmente uma arte que dá vida para nós que fazemos e para quem é tatuado”, diz a tatuadora.
Também beneficiada pelo projeto, a bibliotecária Valéria Festa, de 52 anos, foi atropelada por um carro em alta velocidade aos 8 anos. O forte impacto quebrou sua perna esquerda em dois lugares (joelho e fémur), e gerou uma fratura exposta. Após oito cirurgias e um ano internada, devido às complicações de uma infecção. Valéria ganhou no Dia Internacional da Mulher deste ano uma tatuagem de flores sobre as cicatrizes que têm desde o Dia das Crianças de 1978. O desconforto que sentia ao olhar o resultado do acidente agora não existe mais.
“Me perguntaram se doeu. De verdade? Não! As dores, eu senti lá no passado. Agora, são transformação e ressignificação. Me perguntaram também se quis me livrar das cicatrizes por causa dos olhares das outras pessoas, mas fiz por mim”, afirma.
Os primeiros registros da tatuagem no Brasil datam da chegada dos portugueses ao país, quando o escrivão Pero Vaz de Caminha observou a pintura corporal presente na cultura indígena.
Por séculos e séculos, o preconceito contra os povos originários fez com que a tinta sobre a pele fosse sinônimo de imoralidade, especialmente entre as mulheres, de acordo com a professora e mestre em sociologia Luana Thaísa Pedrosa.
“A mulher tatuada sempre foi associada à promiscuidade, a partir da ideia de que no século XVI as indígenas que se pintavam ficavam nuas. A nudez na cultura ocidental e católica que colonizou o Brasil sempre foi vista como falta de pudor. Tanto que associaram a prática ao pecado. No homem, essa cultura sempre foi mais normalizada”, pontua a socióloga, acrescentando que a tatuagem só começou a ser culturalmente aceita nos últimos 20 anos, com o fortalecimento do movimento feminista. “A tatuagem cria novos padrões de beleza por ter diferentes estilos. A mulher que sofre violência doméstica não é dona do próprio corpo, os maridos as proíbem de sair, de usar determinadas roupas. Quando ela coloca uma tatuagem por cima da cicatriz, passa a decidir o que vai fazer com o seu corpo, além de cobrir um sofrimento que viveu. É uma carta de alforria.
HOMEM TRANS É ADEPTO
Também especialista em tatuar cicatrizes, Flávia Carvalho explica que o tempo médio de espera para fazer a tatuagem é de cerca de um ano e meio após o acidente, até que o ferimento esteja completamente cicatrizado. Idealizadora do projeto social “A Pele da Flor”, criado em 2015, a profissional, que é autodidata e atua em Curitiba (PR), já atendeu 290 mulheres vítimas de violência doméstica – ela mesma foi vítima -, mastectomia e automutilação:
“Decidi doar o meu trabalho. Já carregamos peso psicológico além do possível. Até o momento, Flávia só atendeu dois homens trans que passaram pela mastectomia masculinizadora.
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