GÊNERO PRÓPRIO
Pessoas intersexo defendem direito de escolha sobre cirurgia genital

Quando Rosa (nome fictício) foi procurar documentos pessoais para o mestrado, aos 33 anos, não imaginava que encontraria um relatório, destinado à sua mãe, que mudaria tudo o que ela conhecia sobre si. O texto, de 1996, dizia que ela era portadora de uma condição genética conhecida como “insensibilidade aos andrógenos, e que, aos sete meses, foi submetida a uma cirurgia de reconstrução genital para o feminino.
“Durante 33 anos, eu vivi uma farsa. Eu sempre desconfiei de que havia uma história que não era contada sobre mim. Quando achei o relatório, comecei a investigar e, junto a uma amiga, chegamos à palavra ‘intersexualidade’”, relembra.
Segundo a Anistia Internacional, “intersexo” é o termo usado para descrever pessoas cujos órgãos genitais, características cromossômicas ou hormonais não correspondem ao padrão para categorias masculinas ou femininas de anatomia sexual ou reprodutiva.
O prontuário médico de Rosa indicava que, na verdade, ela era portadora de cromossomo XY e que, ao nascer, tinha testículos palpáveis, saco escrotal e todo o aparelho sexual masculino. São nada menos que 130 milhões de pessoas nessa condição no mundo.
“Eu tinha um pênis que, até os sete meses, media 1 cm. Aquele prontuário contou que fui operado para o feminino. A descoberta, para mim, foi como se fosse um quebra-cabeças que, agora, estava montado”.
GUINADA DE VIDA
A descoberta da intersexualidade foi um marco para a transição de Rosa, que, em 2016, passou a se identificar como uma pessoa transmasculina: Amiel Modesto Vieira. O sociólogo, hoje com 39 anos, diz que, junto do nome, nasceu também o compromisso de falar sobre o assunto. Um dos fundadores da Associação Brasileira de Pessoas Intersexo (ABRAI), ele dedicou os últimos anos a pesquisas e debates sobre o tema.
“Quando descobri a intersexualidade, acabei saindo da igreja e dei vazão a algo que estava reprimido em mim. Na época, me entendia como uma pessoa lésbica. Conversei sobre isso com meus pais e eles disseram que era uma situação complicada, porque não estava de acordo com a Bíblia”, conta. Segundo Amiel, antes do seu nascimento, sua família esperava por um menino. E, quando veio ao mundo, o registro dele foi feito: Luiz Henrique Modesto Vieira. Os médicos, porém, de acordo com seu relato, foram contra. Então, seus pais fizeram um novo documento. Aos sete meses, renascia como menina – a certidão possui, inclusive, a data da cirurgia: 14 de março de 1983.
“O que [meus pais] sabiam é que deveriam criar uma menina, e tiveram que mudar de bairro, construir uma nova vida para mim, no sentido de que aquela menina acabara de nascer. Tudo era forçado para criar um ambiente onde o feminino que foi criado na operação fosse uma realidade. Só que o problema é que eu nunca me adaptei a esse feminino. Hoje, Amiel se posiciona de forma contrária às cirurgias feitas em bebês intersexuais. Para ele, o procedimento deve ser adiado para quando o próprio individuo tiver autonomia para decidir. A visão é a mesma da ONU, que critica a intervenção médica na primeira infância. Irreversível, a cirurgia pode ocasionar dores crônicas, infertilidade, incontinência urinária, perda da sensibilidade sexual e sofrimento mental.
Em abril, uma publicação do sociólogo sobre o assunto viralizou no Twitter. Meu dia acabou depois de ler um relato intersexo para a tese: médicos diziam que o bebê precisava de uma cirurgia no tímpano e os pais autorizaram. Na realidade, a pessoa nasceu com um clitóris grande, os médicos operaram e nunca contaram”, escreveu. “Só depois a pessoa descobriu que a cicatriz no clitóris era uma cirurgia para encaixar a pessoa na norma.”
A abordagem médica em pessoas intersexo ainda é um tema que divide especialistas. Segundo o endocrinologista Magnus Regios, a intersexualidade é compreendida como a condição de um indivíduo que nasceu com uma genitália atípica. Para ele, há uma corrente “antiga” da medicina que recomenda a cirurgia na primeira infância, e outra abordagem mais contemporânea, com foco na autonomia do sujeito.
“É necessária uma conduta focada na pessoa intersexo, e não em uma normativa que ‘corrige’ os corpos como masculino e feminino compulsoriamente”, diz o endocrinologista, que é professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo.
“Do contrário, nunca vamos reconhecer essa pessoa como um indivíduo.”
EM SOFRIMENTO
Para quem defende a atuação cirúrgica em crianças, o argumento é o de que a medida contribui para que as pessoas intersexo se sintam pertencentes à sociedade. É a opinião da professora Berenice Bilharinho, diretora da unidade de endocrinologia do desenvolvimento do Hospital das Clínicas de São Paulo. De acordo com ela, a vida com uma genitália atípica traz “sofrimento aos pacientes”.
“A recomendação e a correção da genital na primeira infância para adequá-las ao sexo social da criança. Consideramos a plástica dos genitais da mesma forma que corrigimos as diferenças do desenvolvimento da face, por exemplo, como o lábio leporino. Todos os especialistas que tratam esses pacientes têm a mesma opinião” sustenta. No Brasil, as intervenções são respaldadas pelo Conselho Federal de Medicina, que, em uma resolução de 2003, afirma que os médicos devem chegar a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil. Como parte de uma “decisão racional”, o entendimento é o de que profissionais devem definir o gênero da criança, e agir rapidamente.
Para Regios, a intervenção só deve ser feita na primeira infância, em condições em que a variação imponha risco de saúde ou morte do indivíduo. Ele explica, porém, que esses casos são raros e, em geral, não há necessidade de cirurgia precoce, já que “o aparelho reprodutor no macho e na fêmea, não têm função de estreia na infância”.
Segundo ele, o termo “hermafrodita” tem sido ressignificado nos últimos anos. Antes entendido como depreciativo e carregado de estigma, o conceito passou a ser usado por ativistas na Argentina e em países da Europa como um retorno à tradição grega, onde corpos assim eram reconhecidos como divindades. Na mitologia, hermafrodito seria filho dos deuses Hermes eAfrodite.
Para Amiel, a indignação que percebeu depois de seu viral na internet não deve ficar restrita às redes.
“Daqui uns dias, as pessoas vão esquecer e não vão mais falar da intersexualidade. Meu sonho é que, um dia, gritem o meu grito de seis anos, pelas vidas de bebês intersexo que, como eu, todos os dias passam por mutilações genitais.”
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