QUANDO O DIREITO DE SER MÃE É NEGADO PELO ESTADO
Justiça envia para abrigos bebês de mulheres em situação de rua ou dependentes químicas, sob o argumento de que elas não são capazes de criá-los. Especialistas veem violação ao ECA e apontam soluções integradas

Aos 44 anos, Ana Maria Cristina Soares de Oliveira tem uma história digna de filme. Começou a cheirar cola com 10 anos e aos 15 se tornou dependente de crack. Como grande parte das mulheres que já viveram nas ruas, passou fome, foi estuprada, apanhou de companheiros e do próprio poder público. Mas conta que, entre todas as violências que sofreu na vida, a maior foi ter o direito à maternidade negado pelo Estado, que retirou oito de seus 11 filhos e os colocou em abrigos para adoção.
“Ouvi que não valia nada e que “nóia” que engravida no meio da rua não tem o direito de ser mãe”, relatou ela, que hoje vive com três de seus filhos em Praia Grande, cidade do litoral sul de São Paulo.
A história de Ana se repete pelo país. Mulheres em situação de extrema vulnerabilidade social frequentemente têm o direito à maternidade negado pela Justiça sob o pretexto de não serem capazes de criar os próprios filhos. São, em sua maioria, mulheres pobres, negras, em situação de rua ou que fazem uso de drogas.
O processo de destruição muitas vezes ocorre sem o conhecimento das mães, que são surpreendidas com a notícia do acolhimento do bebê em outra família, relata Kátia Giraldi, defensora pública de São Paulo. Segundo ela, existe uma cultura de separação já pré-estabelecida, que tem como problema central o julgamento sobre a condição dessas mulheres exercerem a maternagem, substantivo que descreve a relação afetiva entre uma criança e a mãe ou quem a substitua.
“Esquecem de conversar com elas e entender qual é o seu desejo. Essas mulheres precisam de apoio, não de julgamento. A história de vida delas é terrível, marcada por inúmeras violências, seja física, sexual, emocional. E retirar um filho de sua mãe é mais uma violência”, diz a defensora.
SEPARAÇÃO APÓS O PARTO
Ana tinha a mãe eo irmão para ajudar a cuidar de seus bebês. Mesmo assim, as crianças foram tiradas de dentro da casa da avô e deixadas em abrigos onde nunca mais tiveram contato com a família biológica. Em alguns casos, conta Ana, a separação ocorreu de forma ainda mais traumática, na maternidade, enquanto se recuperava do parto.
“Peguei no colo, registrei, mas não me deixaram levar para casa. Ninguém me perguntava se eu precisava de ajuda, se queria tratamento para ficar com a criança. Me tiravam o bebê e me mandavam sangrando para a rua”, contou.
Laura Salatino, pesquisadora do tema e coordenadora da Clínica Luiz Gama, ligada à Faculdade de Direito da USP, diz que a destituição deve ser a última alternativa para esses casos, depois de esgotar outras possibilidades. “É preciso antes de tudo acionar a rede de apoio, que inclui defensoria, assistência social e saúde, para estudar a melhor medida.
“Uma saída possível é oferecer o acolhimento conjunto para a família, incluindo mãe, bebê, outros filhos e o companheiro, se for o caso. Outra possibilidade é acionar a família extensa. Uma avó, tia ou irmão que possa cuidar da criança ou acolher a família. A rede institucional de apoio também é fundamental para construir uma saída que permita a permanência do vínculo”, afirmou.
A história de Ana só mudou na gestação do caçula Pablo, hoje com 7 anos, quando ela pode ser atendida pelo Consultório na Rua, uma equipe volante do Sistema Único de Saúde (SUS) que conta com médico, técnico de enfermagem, enfermeiro, assistente social e terapeuta ocupacional. Foi só aí que ela foi questionada pela primeira vez sobre o desejo de ser mãe.
Foi com essa equipe que Ana fez seu primeiro pré-natal, que até então nem sabia existir e fui encaminhada ainda grávida para uma comunidade terapêutica, onde ficou por quase um ano e conseguiu se curar da dependência.
Longe do crack desde o nascimento do último filho, a vida se ajeitou: Ana conseguiu um emprego e hoje também ajuda outras mulheres por meio do Grupo de Pesquisa e Extensão Diverso, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mas o luto de ser uma mãe órfã é para sempre.
“Às vezes eu ando pela rua e sinto que estou próxima deles. Vejo um rosto parecido e acho que pode ser um de meus filhos. Só queria dizer a cada um que eu jamais os abandonei. Não foi uma escolha minha”, relembra Ana.
Egídia Maria de Almeida Alexe, integrante da Coletiva de Apoio às Mães Órfãs e pesquisadora extencionista do Programa Polos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que essas violências contra mães têm ”cor, gênero e classe social” e estão relacionadas com as iniquidades étnico-raciais e com a violência e racismo estruturais.
“Observamos que apenas mães pobres sofrem todas essas violências como se tivessem que comprovar que são capazes de ser mães e como se não houvesse mães de classe média e alta que usassem drogas, tivessem problema mental ou eventualmente cometessem negligências e violências contra seus filhos”, diz Egídia, que participa do Fórum Nacional de População em Situação de Rua.
VIOLAÇÃO AO ECA
Segundo ela, essas mulheres são culpabilizadas e punidas por não estarem em condições ideais para ter e cuidar de seus filhos, o que configura violação ao artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual, na falta de recursos materiais, a família deve ser encaminhada a serviços e programas oficiais de proteção e apoio.
A especialista ainda aponta que a identificação em consultas médicas, de eventos ou condutas prejudiciais – como a falta em consultas de pré-natal, sintomas de adoecimento mental ou uso de substâncias psicoativas, mesmo que tenham ocorrido no passado – é usada de forma superficial ou preconceituosas para justificar a retirada do bebê.
Foi o que ocorreu com Maria (nome fictício), um dos casos acompanhados pela Coletiva. Aos 22 anos, a jovem já tinha comprado todo o enxoval com a ajuda da família e esperava ansiosa pelo nascimento de seu primeiro filho, mas nunca conseguiu trazê-lo para casa.
Na maternidade, se despediu sem nem saber. A Justiça entendeu que ela, por ser ex -usuária de drogas, fato relatado em consulta médica, não teria condições de criar o filho. Maria estava limpa, fez tratamento para a dependência na gestação e sequer usou substâncias ilícitas enquanto grávida.
“Mesmo tendo condições de amamentar, fui impedida. Me deram remédio para meu leite secar. Junto com meu peito, meu coração chorava de dor”, disse.
Até hoje, Maria luta para reaver o filho, adotado por outra família e atualmente com 10 anos. Apesar de saber onde ele mora, não pode tentar qualquer contato, já que a Justiça entende a sua aproximação como uma ameaça à criança, batizada com outro nome pelos novos pais. Assim como outras mães órfãs, a maior dor de Maria é que o filho cresça com o estigma do abandono, sem saber que a mãe lutou pela sua guarda até as últimas instâncias. Outras mulheres sequer têm conhecimento sobre o paradeiro do filho e precisam conviver com a incerteza sobreo estado de saúde e segurança da criança.
SOLUÇÃO EM REDE
Asalternativas apontadas por especialistas convergem para uma atuação em rede dos serviços de atenção e cuidado. Hoje, no entanto, muitos desses equipamentos, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Funcionam de maneira fragmentada nos municípios, o que dificulta a criação de uma estratégia para acompanhar cada família.
Em São Paulo, um grupo que começou na Santa Casa de Misericórdia e é composto por profissionais dos serviços de saúde e da própria Defensoria Pública consegue evitar o encaminhamento para a adoção em quase todos os casos acompanhados. Em 2020, por exemplo, o grupo trabalhou ao lado de 68 grávidas em situação de rua, das quais 12 precisaram enfrentar processo judicial e apenas duas terminaram com encaminhamento para adoção.
Outra solução apontada para evitar a destituição é o aporte de renda às famílias, diz Luciana Surjus, docente e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo ela, um benefício básico como o Bolsa Família custa R$ 89 ao mês, podendo chegar até R$ 205 – caso haja, por exemplo, gestantes nutrizes (mães que amamentam) e crianças e adolescentes de zero a 15 anos. Já o acolhimento institucional de bebês e crianças, varia entre RS1,8 mil a RS 2,5 mil mensais no município onde ela atua, em Santos (SP).
“Existe uma escolha pela institucionalização dos bebês, e não pela garantia dos direitos sociais para que as famílias possam se manter dignamente”, disse Luciana, doutora em Saúde Coletiva.
Em Belo Horizonte, foi criado no ano passado o programa Família Extensa Guardiã. Nele, crianças e adolescentes que precisaram ser afastadas provisoriamente do convívio de sua família nuclear (pai e mãe), ficam sob o cuidado de sua família extensa (avós, tios ou irmãos adultos), uma alternativa ao acolhimento em abrigos institucionais.
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