O PROBLEMA DO MARKETING
O Homo sapiens sem uma boa cognição e como um pássaro de asa quebrada

Se uma propaganda vende pra você um carro e faz você sentir que, comprando este carro, pode ir a uma cachoeira de difícil acesso – no caso de um carro ter tração nas quatro rodas – , ela não está mentindo. Mas se um comercial de banking diz que se você abrir uma conta no banco X, você será o tipo de jovem que deixará “sua marca no mundo”, ele está mentindo.
Qual a diferença entre um comercial e outro? Por que um deles mente e o outro não? A diferença está no alcance da promessa. Alcançar cachoeiras difíceis é algo de pequeno impacto na percepção que alguém tem de si mesmo, da sua vida, da sua personalidade, das suas expectativas.
Quando dizemos a um jovem que ele, comprando um produto X, deixará uma marca no mundo, estamos mentindo sobre seu futuro: quase zero por cento da humanidade deixa alguma marca no mundo algumas delas péssimas – , ao passo que embutir essa expectativa como estilo de vida tem um custo altíssimo em termos do cotidiano que alguém vive.
Parte da pré-história e da história da nossa espécie foi gasta num esforço descomunal para fazermos a diferença entre realidade e fantasia, por motivos, principalmente, de sobrevivência. Mas essa questão da sobrevivência nos escapa da consciência hoje.
Por exemplo, nossos ancestrais, idênticos a nós, passaram quase o tempo todo de suas vidas com fome e hoje as maiores frescuras do mundo se relacionam a comida. Só a fartura sustenta a frescura com alimentação.
Quando o mundo faz a guinada que está fazendo, e o marketing assume a liderança das narrativas, assumimos que existem em nós super-heróis, micos, deuses e deusas, demônios e efeitos sobrenaturais, o que, evidentemente, não existe. Brincamos com danos psicológicos e sociais empacotados pra presente. O marketing é um retrocesso cognitivo na evolução da espécie. O Homo sapiens sem uma cognição aguçada é como um pássaro com a asa quebrada.
No momento que o marketing se fez disciplina existencial, passando a vender estilos de vida, identidades sexuais e outros valores morais, projetos políticos – aqui a mentira é facilmente detectada para quem tem olhos pra ver – e significados para a vida, ele passou a se constituir numa percepção de realidade de alto risco, estragando a capacidade de fazermos a diferença entre fato e ficção. É como se o mundo fosse um eterno Carnaval em que a quarta-feira de cinzas nunca chega.
O capitalismo avançado apenas quer vender. Tendo saturado as sociedades ricas de produtos materiais, ele passa a vender produtos imateriais, e, com esse passo, ele opera uma ruptura metafísica, digamos, em que optamos por viver num mundo em que nós mesmos somos mera ficção – a melhor ficção possível, duro, mas nem por isso, menos irreal.
Todas as realidades psíquicas passam pelo crivo da fantasia e saem do outro lado como a “melhor versão de mim mesmo”. Mentira. Posso me reinventar. Mentira. Deixarei minha marca no mundo. Mentira. A prosperidade é uma questão de assertividade. Mentira. A esmagadora maioria foi, é e continuará sendo pobre.
A maior chance é que você envelhecerá só e que terá tido uma vida absolutamente irrelevante, se a sociologia estiver certa. O arquétipo da mentira aqui é que você seja uma pessoa diferente, especial, única. Mentira. Você é apenas banal. Esse arquétipo tem a parceria dos pais, que são os primeiros a comprar o marketing de “deixar uma marca no mundo”.
Muitos profissionais da área não têm a mínima ideia de tudo isso porque a formação é muito fraca. Munidos de teorias psicológicas miseravelmente comportamentais, reforçam apenas os mecanismos fantasiosos na relação com a realidade com nós mesmos. Com a entrada do digital, o processo eleva sua agressividade mitológica ao nível da vida privada como mercadoria e do sujeito como commodity.
Por outro lado, o marketing poderia ser de fato “disruptivo” e elevar o nível da reflexão, como alguns profissionais têm tentado, e parar de mentir. Muitos adultos estão ávidos por pessoas que mintam menos para eles. Estão cansados de serem tratados como retardados mentais.
*** LUÍZ FELIPE PONDÉ
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