A BATALHA DA TORÁ
Feministas religiosas exigem igualdade de direitos para rezar no Muro das Lamentações

Todo mês, quando o sol de Jerusalém começa a se levantar no horizonte atrás do Monte das Oliveiras, um grupo de mulheres se reúne na entrada do Muro das Lamentações com um objetivo: contrabandear um livro religioso para dentro de um lugares mais sagrados do judaísmo. O livro é o Rolo da Torá, também chamado de Sefer Torá. Em algumas vertentes do judaísmo ortodoxo, o acesso das mulheres ao objeto é restrito: elas não podem recitá-lo, apenas escutar sua leitura pelos homens.
Não é no que acreditam as Mulheres do Muro. Desde 1988, as ativistas feministas fazem questão não só de ler os rolos, mas também de adotar hábitos tradicionalmente masculinos na religião, como usar kipá na cabeça e, nos ombros, o talit, o xale para cerimônias religiosas.
PRESA CINCO VEZES
Na luta por direito iguais, as ativistas já compraram briga com judeus ultra ortodoxos, a Suprema Corte, o Parlamento e o governo de Israel. Por causa delas, ir ao muro com uma Sefer Torá privada foi proibido. Como o lugar é separado entre mulheres e homens e só no lado masculino há rolos públicos, a proibição garante que só eles possam rezar.
“Já fui presa cinco vezes, quatro por usar o talit e uma por tentar entrar com o rolo da Torá”, conta Lesley Sachs, que pega a estrada de Tel Aviv todo mês para se juntar à reza.
A Sefer Torá não é um livro comum. Há uma versão da Torá impressa, à qual mulheres têm acesso. Já os rolos são produzidos por um escriba com pena e tinta preta num pergaminho de pele de animal costurado à mão. Podem demorar um ano para ficarem prontos.
Asmulheres não são proibidas de rezar no muro ( ou KoteI, seu nome em hebraico). Têm, inclusive, uma área reservada. O que incomoda alguns ramos ortodoxos é a adoção de papéis que consideram masculinos. É também objeto de revolta que a reza igualitária “obrigue” os homens a ouvirem vozes femininas.
“Homens ultra ortodoxos não querem ouvir a voz das mulheres. É considerado obsceno”, diz Lesley.
Em resposta ao grupo, o governo passou uma lei dizendo que a reza teria de respeitar os costumes do muro. Domingo passado, a confusão começou cedo. Jovens ortodoxos reclamavam das ativistas que usavam o raio-X masculino.
“A placa separa a entrada de homens da de mulheres, mas eu acho que tanto faz entro por onde achar melhor”, diz a diretora-executiva Yochi Rappeport.
No dia da reza feminista, a revista é mais intensa do que o normal. Os guardas sabem que elas tentarão entrar com uma Sefer Torá e são orientados a revistar fundos de mochilas e bolsas. Não é toda a sociedade Israelense que se opõe às feministas. Em abril, o rabino reformista Gilad Kariv, recém-eleito para o Parlamento, fez um gesto de solidariedade usando sua imunidade para levar uma Sefer Torá ao muro.
Kariv prometeu repetir a visita em novembro, mas suspendeu os planos depois que o presidente Isaac Herzog se comprometeu a mediar o diálogo para “baixar a temperatura”.
Um juiz também reconheceu os direitos das mulheres de rezarem como os homens, abrindo precedente para a discussão sobre a construção de um espaço igualitário para a reza. Apesar de ter se comprometido com isso no “Acordo do Kotel” de 2016, a pressão dos ultra ortodoxos fez o então premier Benjamin Netanyahu voltar atrás. Hoje, o espaço existe, mas está degradado.
“Não há pressão contra da sociedade, é só um grupo que está contra nós. É o grupo da ortodoxia, que não quer compartilhar a religião judaica com outros grupos. A maioria da população israelense está conosco”, diz a rabina Sandra Kochmann.
A última eleição mudou as perspectivas. Saiu do comando Netanyahu e, junto com ele, foram alijados do poder os partidos ultra ortodoxos. Em campanha para voltar à liderança, o ex-premier aproveita agora para capitalizar no anti feminismo e agradar à base ultra ortodoxa. Quando um parlamentar tuitou chamando contra a cerimônia. Netanyahu endossou retuitando o conteúdo que pedia a fiéis que rezassem no local para impedir que o “Kotel fosse profanado”
As ativistas entendem não haver proibição explícita na Torá impedindo mulheres de rezá-la. Esse seria o entendimento dos ortodoxos baseado em interpretações. Eles alegam que o costume é parte da tradição de séculos, uma visão do mundo que não seria discriminatória contra mulheres.
“Na visão judaica ortodoxa, não é que a mulher é tida como um ser inferior ou que a função dela é servir o marido. Ela tem sua função designada e o homem também”, diz o rabino ortodoxo Efraim Schechter. “Elas fazerem isso no Kotel fica uma coisa meio provocativa, já que a maioria dos frequentadores ali é ortodoxa.
‘VÃO ARRUMAR UM MARIDO’
A estrutura para receber as feministas parece mais logística bélica do que religiosa. Cercas de metal separam o caminho do raio-X na entrada até o muro para evitar as cusparadas e os empurrões comuns em cerimônias passadas. As barreiras impedem cenas explícitas de violência, mas não bloqueiam os berros de jovens meninas ortodoxas que se debruçam sobre as grades tentando atrapalhar a cerimônia.
“Elas querem tomar o Kotel para elas. Por que aqui? Elas só vêm aqui para brigar”, diz Ronit Steren, enquanto discute com as ativistas.
O auge da cerimônia acontece quando o mistério é finalmente revelado: sim, as feministas conseguiram entrar com a Sefer Torá. Quando os rolos são levantados no ar, o ambiente fica mais emotivo. Adolescentes americanas que participavam da cerimônia enchem os olhos de lágrimas.
O fim da cerimônia é outra etapa dramática. Dezenas de policiais e soldados do Exército guardam um corredor de isolamento separando as mulheres de manifestantes que as xingam e acusam de profanar o muro. Além de serem acusadas de profanação, há um elemento nacional na disputa. Parte da força do grupo vem da presença de mulheres da diáspora judia, sobretudo dos EUA. Vistas como estrangeiras anglófonas que só buscam o caos. A concessão que Netanyahu fez quando primeiro concordou em construir uma praça igualitária foi em resposta à pressão de grupos americanos.
“Voltem para a Améríca!” – grita um manifestante. “Vão arrumar um marido!”
No último domingo, ao caos da saída sob protestos de centenas de homens, adolescentes e jovens, que gritavam do outro lado do corredor de isolamento, somou-se a presença do parlamentar da extrema direita Itamar Ben-Gvir.
“Vocês estão profanando a Kotel”, gritava, dedo em riste, usando a imunidade para seguir o caminho de retirada das mulheres por dentro do corredor de isolamento, enquanto apoiadores de fora entoavam “Itamar!”, Itamar!” .
Apesar da oposição barulhenta e da dificuldade de implementar as conquistas na era Natanyahu, há expectativa de mudança e comemoração de vitórias, como o próprio Acordo de Kotel. Um ministro já disse que vai pô-lo em discussão de novo.
“Nossa maior vitória foi o governo ter passado o acordo. Não teria acontecido sem as Mulheres do Muro. Nós mudamos Israel”, diz Lesley Sachs. “Penso nas nossas mães, irmãs, nas sufragistas. Sinto que estamos nos apoiando sobre os ombros delas.
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