PASSADO NO PRESENTE
Tapa e trabalho ainda são aceitos como forma de educar, diz pesquisa

Uma pesquisa de opiniões e percepções dos brasileiros sobre a criação dos filhos revelou avanços na educação em relação à igualdade de gêneros e o repúdio aos maus-tratos, mas também mostrou que alguns valores não ficaram no passado. Apesar de a maioria dos entrevistados – 71,8% – acreditar que a educação infantil deva ser feita a partir do diálogo, eles também mostraram aceitação do uso da violência em algumas situações, como para o jovem “não virar bandido” (62%). Além disso, 46% concordaram com o trabalho infantil, principalmente como forma de ”ocupar o tempo ocioso”.
A pesquisa foi realizada pelo Instituto lpsos em 134 municípios em novembro, por iniciativa da Fundação Jose Luiz Egydio Setúbal e do Instituto Galo da Manhã, que atuam em iniciativas sociais voltadas à infância e populações vulneráveis. O trabalho mostrou maior aceitação da igualdade de gênero na criação das crianças: 72,9 % responderam que meninos e meninas devem ser criados da mesma forma, porcentagem próxima dos que concordam a criação pelo diálogo (71.8%).
No entanto, 81,6% dos entrevistados afirmaram que a criança deve sempre obedecer aos mais velhos sem questionamentos e 62,5% concordaram com a frase “émelhor bater hoje do que o filho virar um bandido”.
“Há um sentimento dúbio: a população reconhece a importância do diálogo, mas também a violência”, afirma Marcos Paulo de Lucca-Silveira, professor de economia da FGV-SP e pesquisador da fundação.
EDUCAÇÃO REPRODUZIDA
Silveira afirma que os fatores socioeconômicos de maior influência foram o nível de educação e a reprodução da educação recebida na sua própria infância. Assim, pessoas com ensino superior e que responderam terem recebido educação baseada no diálogo foram as dos nichos que mais repudiaram o uso da violência.
“As pessoas reproduzem a educação que receberam. Pode ser que a longo prazo, tenhamos redução do reconhecimento de violência”, diz Silveira.
A cuidadora de idosos Renata Francisca Teles, de 37 anos, segue o exemplo que recebeu dos pais e está entre os que acreditam que a palmada surte efeito no processo de educação e serve como correção para que o filho não se desvirtue na idade adulta. A cuidadora diz que tem o diálogo como passo inicial para resolução de conflitos com os filhos de 15 e 3 anos, mas, caso não obedeçam, não vê problema em “dar um tapinha na bunda”.
“Se damos um tapinha hoje, somos reféns da Justiça, mas se nossos filhos crescem com má índole, somosculpados por não saber educar. Eu vim de uma família que o olhar bastava para que eu obedecesse e aqui em casa tento ser assim. Mas meu filho mais novo, por exemplo, só obedece se eu disser “para, senão vou te bater”, afirma Renata.
Assim como Renata, a confeiteira Elis Silva, de 43 anos e mãe de dois, diz ter tido uma infância rígida, em que apanhou algumas vezes. Mas ao contrário da cuidadora, não usou a forma como foi educada como exemplo. Elis é contra a violência física e diz prezar pela conversa, mesmo em momentos de muito estresse. A confeiteira acredita que o tapa pode estimular crianças a se revoltarem e terem medo dos próprios pais:
“Os meninos já falam “Já vem o sermão”, quando chamo para conversar. Se você bate, a criança não obedece, ela sente medo. Em alguns casos, ela já sabe que vai apanhar, mas continua bagunçando porque não tem mais respeito pelos pais. Mas é complicado julgar. Tem pessoas que dão muito amor e carinho aos filhos e eles viram bandidos. Tem pais desleixados que os filhos crescem corretos”.
TEORIA E PRÁTICA
Para os pesquisadores, a aceitação de maus-tratos em alguns contextos traz uma segunda contradição: quem aceita que o tapa seja dado não necessariamente reconhece que o usa. “As respostas sugerem que a população reconhece que práticas de maus-tratos e violências (psicológicas e físicas) estão presentes nas formas de educar da sociedade brasileira contemporânea. Mas quando as pessoas são interrogadas sobre a aceitação de tais práticas e, especialmente, se as realizam, os números caem significativamente”, diz a análise da pesquisa. Essas variações entre percepção de ocorrência, concordância e prática têm semelhanças com as encontradas em pesquisas de opinião famosas sobre racismo no Brasil: a maior parte dos brasileiros reconhecia a existência de racismo no país, mas não se considerava racista”.
“As pessoas que dizem que apanharam e hoje são dobem talvez nem saibam, mas podem manifestar essa violência sofrida em outras áreas da vida dela”, avisa o professor André Grimião, que usa o mesmo diálogo com que foi educado com o filho Antônio, de 7 anos.
O estudo mostrou um grande apoio (46%) no trabalho infantil para impedir que a criança fique ociosa. A justificativa superou até mesmo o argumento do trabalho como ajuda financeira aos pais (26%).
“ A justificativa mais aceita não era óbvia. Basicamente, a ideia do ócio se associa a ficar na rua. Isso é muito próprio da realidade brasileira, um posicionamento muito claro antiócio, antirrua porque vivemos numa sociedade que tem graus de violência e desigualdade. Isso se expressa no medo de virar bandido”, considera Silveira.
A pesquisa também mostrou que só 33% tomariam alguma ação se vissem crianças sofrendo maus-tratos na rua, chamando o conselho tutelar ou abordando os responsáveis. A maioria (45%) respondeu que não agiria por desconhecer a situação ou não sentir necessidade de intervenção, e 17% disseram que ficariam com medo de intervir.

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