SINAIS DE UM OUTRO MUNDO
Como Henrique Dubugras e seu sócio, Pedro Franceschi, os mais jovens fundadores de um unicórnio no mundo, construíram um estilo de vida em que o tempo de trabalhar, se divertir e aprender se misturam – e as conquistas parecem chegar numa velocidade quântica

Toda a trajetória do paulista Henrique Dubugras, de 26 anos, e do carioca Pedro Franceschi, de 25, é uma completa subversão do tempo de carreira tradicional, mesmo para os padrões mais velozes do Vale do Silício. Há quatro anos os dois criaram a fintech Brex, em São Francisco, nos Estados Unidos. A empresa se tornou unicórnio com apenas um ano de existência. O negócio começou com a oferta de crédito para startups, nicho desprezado por grandes bancos, sem clareza sobre o histórico e, portanto, sobre o risco de crédito desses empreendedores. Hoje já vale US$ 12,3 bilhões, após uma rodada de investimentos liderada pela gestora Greenoaks, no dia 22 de outubro.
A foto que ilustra esta reportagem foi realizada poucas horas após o fechamento do aporte, de USS 300 milhões, que elevou o patamar da startup a de cacórnio – nome reservado aos unicórnios cujo valor ultrapassa USS10 bilhões. Os dois, que moram e trabalham em Beverly Hills, na região da cidade de Los Angeles, desde que decidiram abraçar o modelo remote-first há pouco mais de um ano, compartilharam naquele dia uma agenda particularmente agitada. Entre uma reunião e outra, abriram uma brecha de 15 minutos para a foto, adiada por duas vezes no mesmo dia. A entrevista exclusiva, felizmente, fora realizada antes disso, após uma negociação que levou mais de um mês.
A dupla divide o comando no papel de co-CEOs. Em linhas gerais, Dubugras é a cara da empresa da porta para fora. Franceschi exerce o papel de gestor da porta para dentro. Ambos começaram cedo. Aos 12 anos, Dubugras recriou o jogo pago Ragnarok, que seus pais não queriam comprar – o que lhe rendeu uma notificação judicial da dona da versão original. Franceschi conseguiu hackear um iPhone aos 14 anos. A dupla se aproximou em discussões sobre plataformas de programação na internet, e decidiram criar juntos a empresa Pagar.me, vendida três anos depois, em 2016, para a fintech brasileira Stone. No ano seguinte, os dois foram para a Universidade Stanford – de onde saíram, após oito meses, para montar uma empresa.
Inicialmente, o plano era criar uma startup no r:uno da realidade virtual. Mas a ideia se provava mais difícil que o esperado, na prática – e, ao mesmo tempo, surgia uma oportunidade, na forma de um problema sentido na própria pele: a dificuldade de obter crédito. Apenas um mês depois, eles haviam convencido investidores a colocar dinheiro no novo projeto, que deslanchou rapidamente num oceano azul, antes que uma enxurrada de concorrentes pudesse aparecer e alcançá-los.
Para eles, a pandemia criou uma chance de testar um novo modelo de trabalho. Na Brex, ninguém mais precisa ir à sede, que permanecerá aberta em São Francisco, para os cerca de 10% de funcionários que preferem conservar o trabalho híbrido. As pessoas vão manter encontros de, em média, três dias de duração, a cada três meses. Para isso, podem escolher uma das opções disponíveis numa espécie de cardápio de pacotes predefinidos pela área de gestão de pessoas. A ideia é reduzir horas e horas de encontros via Zoom, segundo eles uma maneira de tentar clonar o escritório no ambiente virtual.
Numa época em que se fala sobre mudanças velozes, aprendizado contínuo, adaptabilidade e mentalidade de crescimento, a dupla parece ser uma espécie de síntese em escala quântica de todos esses fatores. A ambição dos dois é grande. Dubugras já chegou a afirmar, num evento, que sua empresa poderia atingir o patamar de USS 100 bilhões. Quando? “Desencanei de pensar em valores e prazos. A gente vai chegar lá algum dia – e vai passar disso”, disse por videoconferência. A seguir os principais trechos da entrevista de Dubugras e Franceschi.
VOCÊS COMEÇARAM MUITO JOVENS, POR DIVERSÃO, E JUNTOS DECIDIRAM MONTAR DOIS NEGÓCIOS DO ZERO, SENDO QUE UM DELES – A BREX – VIROU UM DECACÓMIO COM MENOS DE CINCO ANOS DE VIDA. COMO DESENVOLVERAM ESSA NOÇÃO TÃO PRECOCEMENTE?
HENRIQUE DUBUGRAS:
Descobri que tenho TDAH. É um déficit de atenção superforte, não conseguia prestar atenção na aula. Qualquer coisa para mim parecia mais divertida do que ficar na escola.
Aprender sozinho era a única opção que eu tinha. É uma habilidade que desenvolvi quando criança e apliquei na minha vida. Algumas pessoas que conheço eram boas em sala de aula, queriam fazer cursos, faculdade, e precisavam dessa estrutura para aprender. Para mim isso nunca funcionou. Programar era meu escape. Criar os jogos e trabalhar se tornaram atividades superdivertidas e superimportantes para mim. Na internet, tive acesso a casos de pessoas que conseguiam programar, empreender, casos de sucesso. Ali você pode se conectar com as pessoas, ler a respeito e estar perto de gente que conseguiu fazer alguma coisa. Tudo isso me ajudou muito.
PEDRO FRANCESCHI
Nasci numa família de classe média. Minha mãe, psicóloga. Meu pai, fotógrafo, adorava mexer em equipamentos, inclusive computadores. Ele morreu quando eu tinha 8 anos e logo depois, talvez para lidar com o trauma, encontrei na internet um refúgio onde as variáveis eram controláveis. Tinha curiosidade e desejo de aprender. Quando conheci o Henrique, ele me convenceu a deixar meu emprego e fundar a Pagar.me com ele. Começamos programando. Logo assumimos papéis administrativos. Nessas experiências, passei a encarar os tropeços de outra forma. Em vez de pensar “eu falhei”, passei a encarar essas situações apenas como “isso é só alguma coisa que não aprendi ainda”.
TRABALHO, DIVERSÃO E APRENDIZADO SEMPRE ESTIVERAM MUITO CONECTADOS À TRAJETÓRIA DE VOCÊS. A PANDEMIA MUDOU OU REFORÇOU ESSA DINÂMICA?
HENRIQUE DUBUGRAS
Antes da covid saía para almoçar todo dia, o que não é muito comum nos Estados Unidos. Agora faço reunião no Zoom comendo com bastante frequência. Dei uma americanizada. Por outro lado, mudei de cidade, de São Francisco para Los Angeles. O clima é muito melhor. Decidi morar – e trabalhar – numa casa. Não penso em voltara frequentar o escritório todos os dias. Tenho uma academia na minha garagem. Desço, faço academia por meia hora e subo. Anteriormente, com os deslocamentos, gastava duas horas para isso. Faço muita reunião andando em volta de casa. Antes ficava sentado durante 10 ou 12 horas por dia.
PEDRO FRANCESCHI
A mudança para Los Angeles foi ótima. Passei a viajar mais pelos Estados Unidos também depois que as restrições cessaram. Costumo trabalhar ainda das 9 da manhã às 7 da noite, durante os dias de semana. Mas exceções acontecem. Gosto de brincar com meu cachorro, Git, preparar jantar com amigos e praticar esportes aquáticos.
COMO A MAIOR PARTE DOS FUNCIONÁRIOS REAGIU?
HENRIQUE DUBUGRAS
A gente tomou a decisão de fazer isso em agosto de 2020. Já faz mais de um ano. Na primeira pesquisa que fizemos, 60 % dos funcionários disseram que gostariam de trabalhar de casa. Até que a empresa tome efetivamente a decisão de qual será o esquema de trabalho, as pessoas não investem num home office bom, ninguém muda de cidade. Depois do anúncio de que era uma decisão final, mais de 90% dos funcionários disseram achar melhor ficar em casa. Isso porque, aqui, a maioria já adaptou a vida para trabalhar de qualquer lugar. A pior situação é o limbo. E a gente está cada dia melhor no trabalho remoto. Antes, não conseguia imaginar fazer o planejamento da empresa remotamente. Agora não consigo imaginar como voltaria a fazer pessoalmente de novo. A gente não sabia como ia ser. Mas a equipe criou um modelo que funciona melhor do que era anteriormente.
Estamos ainda na pior época para o trabalho remoto, nessa situação atípica e ainda em processo de adaptação. Imagina, daqui a dez anos, como estarão as pessoas, os processos, as ferramentas.
TEM ALGO QUE FIQUE MELHOR PESSOALMENTE?
HENRIQUE DUBUGRAS
É superimportante encontrar as pessoas. Todo mundo tem de estar com o próprio time a cada três meses. Durante o ano, as equipes podem fazer até oito viagens para se encontrar. Numa viagem divertida, a experiência é muito mais intensa do que falar por dez minutos todo dia no corredor, na empresa. Cada equipe decide. No RH, já temos vários programas, e as pessoas escolhem. Tem um deles em Napa Valley, por exemplo, já com roteiro para visita a vinícola e o hotel indicado.
PEDRO FRANCESCHI
Não se pode dizer que toda interação pessoal pode ser substituída pela internet, mas interações incríveis pela internet vão assumir diferentes formas no futuro. Não se trata de adaptar o escritório à função online, mas, em vez disso, usar uma maneira de a internet funcionar para moldar o jeito como trabalhamos. Nós deveríamos nos aproximar das possibilidades de interação que o trabalho remoto permite mais da maneira como os youtubers pensam em produzir conteúdo para uma audiência. Ou então como os gamers pensam nas experiências sociais online com outros jogadores. Ou como desenvolvedores open-source consideram um alto nível de autonomia não um bug, mas em vez disso um pré-requisito para produzir softwares complexos de alta qualidade. Encontros no Zoom são menos eficientes, mas como representam a única maneira de interagir face a face, é simples abusar desse recurso para tentar clonar o escritório. Na internet, a maneira mais eficiente de se comunicar é escrevendo. E isso combina com o estilo de decisão que já vínhamos adotando, mesmo antes da pandemia. Há alguns anos, criamos um processo em que as decisões são tomadas por escrito. Nesse modelo, em reuniões semanais, qualquer funcionário pode trazer decisões para a pauta. Mas antes de falar sobre qualquer questão, as equipes detalham o problema, analisam os prós e contras de cada solução, e elaboram algo por escrito no formato de recomendações. Os participantes leem esses memos antes das reuniões e escrevem seus comentários a respeito. Se há uma discordância, a gente vai para o Zoom, mas com algo saboroso para debater.
E COMO FICAM AS INTERAÇÕES ESPONTÂNEAS?
PEDRO FRANCHESCHI
Ao tirar as coisas chatas do caminho, e ao fazê-las de maneira assíncrona, podemos focar nossos encontros um a um para construir conexão. Não importa o quanto as pessoas tentem se conectar pela internet, seres sociais precisam se encontrar pessoalmente de tempos em tempos.
HENRIQUE, VOCÊ DIZ QUE APRENDE MUITO CONVERSANDO COM AS PESSOAS. COMO FICOU ISSO NA PANDEMIA?
HENRIQUE DUBUGRAS
Acho mais fácil ainda. Antes, se eu queria aprender alguma coisa, tinha de voar para Nova York, pro Canadá, pra Europa, pro Brasil. Agora as pessoas estão mais confortáveis com as conversas virtuais, e esses encontros ficaram até mais fáceis. A gente tem a sorte de ter uma rede de mentores muito forte. Antes, tinha de marcar uma viagem. Agora, marco um Zoom.
QUAIS SÃO ALGUNS DOS PRINCIPAIS DELES?
HENRIQUE DUBUGRAS
O Jorge Paulo Lemann. Nosso empreendedor e mentor Victor Lazarte, da Wildlife. O Pedro passou a falar com Jeff Weiner, presidente do conselho do LinkedIn.
E QUE POSSIBILIDADES O TRABALHO REMOTO TRAZ PARA A EMPRESA?
HENRIQUE DUBUGRAS
O trabalho remoto, para a empresa, abre a oportunidade de tornar a contratação global. A gente contratou um monte de engenheiros brasileiros agora, por exemplo.
ANTES DE MONTAR A BREX, VOCÊS DESISTIRAM DE CRIAR UMA EMPRESA DE REALIDADE VIRTUAL. POR QUÊ?
HENRIQUE DUBUGRAS
No Brasil ainda tem menos empreendedores do que oportunidades. Nos Estados Unidos, é bem diferente. Em geral há duas razões para uma ideia não ter sido executada lá ainda: ou é muito difícil ou alguma coisa ainda precisa mudar no mundo para ela se tornar viável. Chegamos à conclusão de que a gente não tinha conhecimento para criar algo numa área que a gente não dominava, apesar de parecer o futuro da tecnologia de ponta. A pessoa que vai resolver isso é alguém que tem esse tema como o negócio da vida dele. O nosso negócio era fintech. A gente tinha muito mais chance de criar uma startup numa área que já conhecia.
COM QUE VELOCIDADE A BREX DEIXOU DE SER UM INSIGHT PARA SE TORNAR UMA STARTUP?
HENRIQUE DUBUGRAS
Deve ter levado um mês. Nos Estados Unidos tem muito dinheiro, bem mais fácil do que no Brasil. Se tiver uma ideia decente e um bom histórico, é possível levantar investimento rapidamente. A gente percebeu uma demanda não atendida e decidiu aproveitá-la.
PEDRO FRANCESCHI
Uma boa ideia vira um bom negócio quando é construído a partir do consumidor e, começando dele todo o caminho reverso é feito pra a se pensar nos outros passos.
E ENTRE A ABERTURA DA EMPRESA E O LANÇAMENTO DO PRODUTO?
HENRIQUE DUBUGRAS
Passamos muito tempo criando uma infraestrutura bem-feita, um ano. Quando a gente vai construir um prédio, a estrutura tem de ser muito sólida.
PEDRO FRANCESCHI
Outra lição que tiramos da criação da Brex é que não se deve deixar a urgência se sobrepor à necessidade de recrutar pessoas qualificadas e construir o time certo.
QUAL É O SIGNIFICADO DE BREX?
PEDRO FRANCESCHI
Foi o primeiro nome com quatro letras que conseguimos pensar e ainda estava com um domínio livre na internet. E era pronunciável em inglês.
COMO VOCÊS MANTÊM A HARMONIA DIVIDINDO O COMANDO DA EMPRESA?
HENRIQUE DUBUGRAS
Esse é um negócio super inspirado pelo Jorge Paulo, a crença de que a gente vai fazer muito mais junto do que separado. Se eu fosse criar uma empresa sozinho, não daria tão certo. Se o Pedro fizesse isso, provavelmente a empresa dele seria mais bem-sucedida do que a minha (risos).Não existe outra pessoa no mundo que tenha vivido os últimos dez anos comigo tão intensamente. É muito raro achar uma pessoa que te entenda tanto. A gente tem uma amizade muito profunda. A gente mora junto – eu, minha namorada e ele.
HENRIQUE, VOCÊ JÁ DISSE QUE A BREX PODERIA CHEGAR A UM VALOR DE MERCADO DE US$ 100 BILHÕES. QUANDO?
HENRIQUE DUBUGRAS
Desencanei de pensar em valores e prazos. A gente vai chegar lá algum dia – e vai passar disso. Se vai ser em cinco anos ou 50 anos, importa menos. Se você está crescendo 20% ao ano – e a gente segue acima desse patamar – durante 30 anos, uma hora chega lá.
PEDRO FRANCESCHI
Já temos clientes como Airbnb, [e os unicórnios] Carta e Flexport.
HENRIQUE, VOCÊ ASSUMIU RECENTEMENTE UM ASSENTO NO CONSELHO DO MERCADO LIVRE. PENSA EM ABRIR SUA AGENDA PARA SE DEDICAR A OUTRAS ATIVIDADES?
HENRIQUE DUBUGRAS
Não, esta é a minha empresa. Vão ter outras coisas das quais vou participar, como conselheiro, posso ser investidor. Outras oportunidades podem surgir, mas dedicação intensiva só aqui mesmo.
DEPOIS DE CHEGAR AO ESTÁGIO DE UNICÓRNIO TÃO CEDO E IR ALÉM, QUAL É A MOTIVAÇÃO QUE MANTÉM VOCÊS CONECTADOS COM A EMPRESA?
HENRIQUE DUBUGRAS
A gente sempre quis criar um negócio de sucesso. Não perder, não dar errado. No começo, um pouco da gasolina é isso. Depois que o negócio vai ficando grande, a chance de ir para zero e morrer diminui. Você começa a ter tudo aquilo com que sempre sonhou. E a realidade é que, depois, a meta passa a ser mudar a indústria para melhor. É ajudar as empresas que a gente serve a ir muito mais longe, muito mais rápido. A gente passou a se conectar com essa missão de um jeito muito profundo. Não importa quanto dinheiro eu tenho, importa que estou mudando a indústria. Isso é o que dá satisfação depois.
PEDRO FRANCESCHI
Trabalhar ainda é a coisa mais divertida que faço na minha vida. É um lugar em que posso atingir resultados com pessoas que são melhores do que eu.
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