ANTES TARDE DO QUE NUNCA
Com a terceira idade muito mais prolongada e o mundo em volta bem mais tolerante, grisalhos saem do armário e assumem namoros e casamentos com parceiros do mesmo sexo

Ainda alvo de preconceito e discriminação, a comunidade LGBT escancarou as portas do armário nos últimos anos, exigindo direitos, denunciando abusos e exibindo sem disfarces, com as mãos dadas e beijos em público, a naturalidade das relações entre pessoas do mesmo sexo. Embora não existam dados abrangentes sobre a população gay do Brasil, é evidente que os jovens vêm sendo o motor dessa reviravolta, tirando vantagem dos traços de individualismo, indiferença às regras estabelecidas e maior tolerância presentes nas novas gerações. Não é só a garotada, porém, que anda assumindo sua homossexualidade – cada vez mais, senhores e senhoras de idade avançada, muitas vezes com casamento convencional e filhos no currículo, tomam coragem e apresentam parceiros de gênero inesperado.
Consultamos dez especialistas em envelhecimento na comunidade gay – sexólogos, antropólogos, sociólogos, psiquiatras e geriatras – e eles foram unânimes em confirmar a saída mais frequente do closet entre a turma que já passou dos 50. “O tabu da sexualidade na terceira idade diminuiu e isso estimulou as pessoas dessa faixa etária a se assumir, o que era muito mais difícil há dez anos”, diz Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Faculdade de Medicina da USP. Um empurrão definitivo partiu, como sempre, do mundo das celebridades, onde parcerias homossexuais consolidadas por trás de um muro de silêncio agora vêm a público – sendo, em geral, assimiladas sem grandes traumas.
A revelação mais recente partiu do galã Carmo Dalla Vecchia, 50 anos, durante uma apresentação do Super Dança dos Famosos, do extinto Domingão. Em rede nacional, o ator falou sobre sua relação de dezesseis anos com o autor de novelas João Emanuel Carneiro, com quem tem o filho Pedro, de 2 anos. “Nunca escondi o fato de ser gay para as pessoas próximas. Agora me dei conta de que tinha a chance de tocar o coração de mais gente e que isso era uma responsabilidade. Também quero ser um exemplo de coragem para meu filho”, disse. Antes dele, o ator Marco Nanini, 73 anos, contou ser casado há mais de trinta anos com o produtor Fernando Libonati, com quem formalizou a união estável há dois anos. O cantor Lulu Santos, 68 anos, após um casamento de décadas com a jornalista Scarlet Moon, apresentou o baiano Clebson Teixeira como seu namorado em 2018 e os dois se casaram no ano seguinte. Outro ator, o humorista Luiz Fernando Guimarães, 71 anos, oficializou em 2019 a relação de mais de vinte anos com o empresário Adriano Medeiros, com quem acaba de adotar dois filhos, Dante,10, e Olivia, 9.
O processo de sair do armário nunca é fácil. Ele exige coragem e resiliência, especialmente para aqueles que passaram a vida inteira escondendo seus sentimentos. Mas o assunto hoje está longe ser tabu, sendo retratado em obras e no dia a dia das pessoas. Foi a partir da ficção que a enfermeira aposentada Ângela Fontes, de 69 anos, encontrou incentivo para revelar à família conservadora que era lésbica. Inspirada pelo casal vivido por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg na novela Babilônia – protagonista do primeiro beijo de duas mulheres na TV brasileira – , Ângela deixou de esconder seu relacionamento com Willman Rocha, 74, e as duas enfim se casaram no civil e no religioso no início de outubro. “Assumir foi como tirar uma tonelada das costas”, afirma Ângela. Já o estilista mineiro Ronaldo Fraga, 54 anos, passou toda a vida adulta no meio da moda, repleto de gays, casado com uma mulher – até se apaixonar por um homem. Divorciou-se e contou para os dois filhos. “Esconder não seria justo com eles, comigo e com meu namorado. Me considero bissexual, e decidi viver essa experiência porque entendo que a vida é curta, mas pode ser larga”, diz Fraga, que há três anos namora o apicultor Hoslany Fernandes.
Os mais velhos que agora assumem parceiros gays eram jovens quando o movimento LGBT começou a se organizar, no fim dos anos 1960, após uma violenta batida policial no bar do hotel Stonewall lnn, em Nova York, frequentado pela comunidade. Dos tempos da pancadaria e do preconceito, que ainda acontecem, foi um duro caminho até aqui. “Mais de meio século depois, o patriarcado que colocou a masculinidade em posição de poder é cada vez mais questionado”, diz a psicanalista Regina Navarro Lins. Diversos momentos, porém, foram dificílimos nessa trajetória. Um deles provocado pelos estragos da epidemia de aids, chamada de “peste gay” nos seus primórdios, na década de 80, estigma que levou muita gente a se esconder sexualmente durante boa parte da vida.
Mas importantes vitórias aconteceram. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde removeu homossexualidade da lista de doenças, o que abriu caminho para conquistas como o direito a casamento, adoção e herança. Começava aí a lenta mudança de mentalidade que resultou, primeiro, na maior exposição dos jovens gays e, recentemente, na abertura de portas para quem tem mais idade e percebe, feliz, que ainda pode usufruir muitos anos tirando vantagem de tempos mais liberais. O americano Kenneth Felts, por exemplo, diz que sabia ser homossexual desde os 12 anos, mas só contou à família aos 91, depois de os pais terem morrido, com os filhos adultos e após ter sobrevivido a um câncer. “Sempre é bora de sermos livres”, diz Pelts ao lado do namorado, Johnny Hau. Tem toda a razão.

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