PANDEMIA LEVA CANDOMBLÉ E UMBANDA A ENCRUZILHADA DIGITAL
Religiosos adotam videochamada enquanto debatem limites do axé nas rede

Umbandista desde 2018, o professor de ioga Wagner Lanzelotti Filho, 32, procurava um pai de santo do candomblé a fim de receber orientações pessoais e também uma experiência diferente do jogo de búzios. A busca se resolveu por videochamada, a uma distância de 25 km entre sua casa em Duque de Caxias (Baixada Fluminense) e o bairro carioca da Tijuca, onde estava o sacerdote.
“Não achei tão estranha a ideia, muito embora ache que não teve exatamente toda a energia possível”, diz Lanzelotti. “Não teve a entrada no lugar, o olho no olho, mas para mim foi tranquilo. Virou uma forma de matar uma curiosidade que eu tinha”.
Bem menos visíveis nas mídias, as tradições de matriz africana – que abrangem cerca de 5 milhões de brasileiros, segundo o Datafolha – acabaram por abrir caminhos digitais na pandemia, mesmo que ainda timidamente e longe da unanimidade.
Lives de cerimônias de umbanda já eram cogitadas por pai Denisson d’Angiles, 45, antes mesmo da pandemia. Quando o governo Dória fechou os templos na quarentena, o sacerdote decidiu que era hora de ir à prática no CEU Estrela Guia, que recebia 300 a 400 pessoas na Saúde, zona sul de São Paulo. Hoje, suas giras ao vivo têm média de 15 mil visualizações por transmissão.
“Antes eu tinha certo medo porque, de alguma maneira ia estar expondo mina própria vida familiar”, afirma Denisson, que conduz o terreiro ao lado de sua mulher, Kelly. “Mas em março de 2020 a gente instalou câmeras, reforçamos a rede wi-fi e levamos a ideia à frente, via Facebook. Tudo isso para levar um axé às pessoas, e a repercussão foi ótima”.
Logo na primeira transmissão, porém, o religioso conheceu o lado virtual de um velho problema. Surgiram ofensas de pessoas que denunciavam algo “demoníaco”, enquanto invocavam Jesus eDeus. Ao mesmo tempo, a live caiu por três vezes. O pai de santo se queixou na Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e de Intolerância) e no Facebook, sem sucesso. “Tudo isso que estamos fazendo é muito novo, e esse pioneirismo acaba pagando um alto preço. Hoje melhorou, mas ainda tem (intolerância)”.
De qualquer forma, Denisson criou uma defesa: durante as lives, seus filhos de santo “patrulham” a transmissão, respondendo quem chega causando distúrbio digital. Ainda assim, esse tipo de situação faz muitos terreiros hesitarem na vida digital, ou subirem apenas gravações em seus canais.
“Os cultos de matriz africana viveram duas pandemias nesses dois anos: a da Covid e a da perseguição religiosa”, afirma o babalaô e doutor em história comparada pela UFRJ, Ivanir dos Santos, 67, que afirma não crer que lives de rituais sejam possíveis: Trata-se de uma religião do segredo; não faz sentido expor rituais que têm um fundamento no mistério.”
Ivanir reconhece, porém, que muitos babalorixás e ialorixás passaram a oferecer a leitura de oráculos , como os búzios, de forma não presencial. Para ele, trata-se de rara atividade que o candomblé pôde adaptar. “Abrir o oráculo sem a pessoa presente é algo que pode ser feito tranquilamente com base na relação da pessoa com o orixá. Mas há pessoas mais tradicionais que não abriram essa exceção.”
Líder do terreiro Ilê Asé Oyábécy L’Arô, na zona oeste do Rio, mãe Ana Maria OmilL’Arô, 50, não se considera tradicionalista. “A realidade muda. Antigamente, os candomblés eram liderados por mulheres que não tinham outra ocupação a não ser trabalhar em casa. Hoje uma mulher lidera um culto e depois vai dar expediente no Fórum”, diz, com entusiasmo e sotaque carioca.
Sobre a eficácia da videochamada, Ana usa uma lógica irresistível. “Se uma pessoa não precisa estar presente para que lhe façam um feitiço, para o mal, tampouco precisa estar presente para que Ihe façam o bem e lhe abram caminhos, você concorda?”
No entanto, ela afirma não se sentir “nesse patamar” digital. Diz que oraria por pessoas que já frequentassem sua casa e que estivessem sem condições de ir até o terreiro, por exemplo. “Só não me sinto preparada para jogar os búzios, fazer uma oração e entrar numa egrégora(campo energético) com uma pessoa que não conheço, ao mesmo tempo em que ligo o celular.”
Bem mais à vontade está o pai Rodney William, 47, do terreiro Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá, em Mairiporã, na Grande São Paulo. Para ele, muitas coisas na pandemia vieram para ficar e será normal se os paulistanos que lidam com distâncias, riscos e o preço da gasolina preferirem continuar na videochamada. “Eu vou confessar a você: eu também prefiro”, conta o babalorixá, que é doutor em antropologia pela PUC-SP e diz ter cinco redes wi-fi em seu terreiro. Para Rodney, a pandemia apenas massificou práticas que já tinham algum histórico. Recorda que Pérsio de Xangô – influente líder do candomblé paulista, que morreu em 2010 – se consultava nos búzios com a célebre mãe Menininha do Gantois (1894-1986), que morava em Salvador. Tudo se dava por meio de ligação interurbana: a pessoa levava suas questões, desligava e recebia a resposta depois.
“Era assim porque era caro. Mas hoje a tecnologia superou esses limites”, diz Rodney. “Eu que tenho filhos em outros países e continentes, já utilizava a videochamada para o oráculo. O que acontece é que isso agora explodiu, porque as pessoas tiveram mais preocupações e incertezas. Costumo dizer que ninguém trabalhou mais nesse período que os psicanalistas e os pais e mães de santo.”
Pai Rodney afirma que sofreu críticas de seus pares por começar a jogar búzios e fazer ebós (trabalhos) à distância – recebendo pagamentos e doações por Pix. Dessa forma, Rodney diz ter gerado o sustento para os trabalhadores do terreiro, mas também muito debate com líderes de cultos nos grupos de WhatsApp.
Para preservar o mistério ritual, Rodney opta por mostrar fotos nas transmissões, que explicam o que vai acontecer – faz isso para não dar instrumentos aos inimigos virtuais , que podem, por exemplo, descontextualizar uma cena de sacrifício animal para demonizar a fé. E segue acreditando no trabalho digital, citando a mesma lógica de mãe Ana sobre asa bençãos à distância, enquanto ecoa o sociólogo Reginaldo Prandi sobre a tendência paulistana de trazer vanguarda para a crença.
“Se Ogum é o orixá da tecnologia e Exu, o da comunicação, não vejo limites para esse alcance. A tradição que não se adapta, morre na sua pretensão de que as coisas hoje são exatamente como eram há cem, 200 anos. O candomblé muda porque as circunstâncias mudam.”
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