O INIMIGO OCULTO
Ainda pouco debatida no brasil, a remoção de camisinha sem o consentimento de uma das partes é crime e pode levar à prisão

Medo, angústia, nojo. As palavras usadas por uma estudante de 22 anos ao descrever o que sentiu quando um parceiro tirou a camisinha sem o consentimento dela durante o sexo, revelam as marcas que a violação lhe deixou.
“Só percebi quando ele se levantou para urinar e a camisinha não estava mais lá. No início, fiquei em dúvidas e eu não tinha reparado que ele havia tirado após o ato. Depois, entrei em completo choque, principalmente, sabendo que havia gozado dentro de mim”, recorda-se.
A jovem, que prefere não ter o nome identificado, assim como os demais entrevistados desta reportagem, foi vítima de um crime que só agora começa a ganhar espaço no debate nacional, impulsionado pelas redes sociais e por programas de TV. Além disso, a prática, que em países de língua inglesa é nomeada stealthing (ocultação, dissimulação), já foi tipificada como crime em alguns locais, como aconteceu recentemente na Califórnia, nos Estados Unidos, evidenciando ainda mais a sua gravidade.
Apesar de não ter tradução para o português, esse tipo de violação não passa incólume pela nossa legislação. Segundo a advogada Thais Pinhatá, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo, a prática é contemplada pelo artigo 215 do Código Penal, que estabelece como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. Quando isso acontece, ela lembra, a pena prevista é de dois a seis anos de prisão.
Thais reconhece que ainda são poucos os casos levados à Justiça e, quando isso acontece, correm em segredo. Mesmo assim, ela observa que a chamada persecução penal já é uma realidade. “A polícia recebe a denúncia e encaminha para o Judiciário, que tem se posicionado contra essa atitude.”
Outro ponto salientado pela advogada é como o SUS demonstra eficiência em acolher as vítimas. O sistema oferece atendimento psicológico, além de medidas preventivas de saúde, como a disponibilização de medicamentos voltados a doenças sexualmente transmissíveis e da pílula do dia seguinte. O quadro muda, porém, quanto ao direito ao aborto legal, já que alguns hospitais se recusam a compreender a prática como violência sexual.
Isso aconteceu com uma enfermeira, de 31 anos, que, além do anonimato, pediu que o estado onde vive não fosse revelado. “Tive um relacionamento de cinco meses com um homem que demonstrava querer estabelecer um vínculo emocional mais forte comigo. Ele falava em termos um filho, e sempre deixei claro que não queria”, conta. “Na última vez em que fizemos sexo, notei que fez um movimento com a mão, e perguntei se havia tirado a camisinha. Ele me respondeu que saiu ‘sem querer’, mas que gozou dentro do preservativo. Quando fui ao banheiro, vi que não era verdade.”
A enfermeira chegou a tomar a pílula do dia seguinte, mas o medicamento não funcionou, e ela se viu grávida poucas semanas depois.
Buscou ajuda de um hospital, onde recebeu atendimento psicológico, mas, ao reivindicar o direito ao aborto, teve o pedido enviado para análise pelo setor jurídico. “Eu sabia que tinha sofrido um crime sexual, mas eles não”, lamenta. “Só conseguem entender isso em casos de estupro como aqueles em que o criminoso agarra a mulher e a violenta. Foi constrangedor passar por isso.”
O tempo corria, e a enfermeira decidiu encontrar soluções alternativas, com medo de que ficasse tarde demais para que pudesse interromper a gravidez em segurança. Foi quando chegou até o grupo Milhas Pela Vida da Mulheres, por meio do qual recebeu orientação sobre o caso e apoio financeiro para buscar atendimento num estado vizinho. “O que mais me indigna nessa história é a falta de respeito pela minha palavra. Eu dizia a ele que não queria um filho, mas era como se o que eu falasse não tivesse peso algum”, desabafa.
Idealizadora da campanha que auxiliou a jovem, a diretora e roteirista Juliana Reis afirma que, pelo fato de a violência contra a mulher ser tão naturalizada, muitas vítimas ainda têm dificuldade de compreender a gravidade de uma violação como essa. “Ainda chegam até nós dizendo que estão grávidas porque ‘vacilaram’. Mas, quando a conversa avança, entendemos que tem um boa noite Cinderela por trás, por exemplo”, diz. “O que fazemos no Milhas é mostrar a lei para que as próprias mulheres entendam pelo o que passaram.”
Embora a comprovação de crimes sexuais envolva certa complexidade, a advogada Thais Pinhatá afirma que, nos últimos anos, os depoimentos das vítimas ganharam mais peso nos processos. Ainda assim, ela salienta a importância de se cercar de provas nessas situações. ”O ideal é buscar imediatamente a delegacia e o Instituto Médico Legal para a coleta de material biológico”, aconselha.
Thais lembra também que não são apenas as mulheres que estão suscetíveis a esse tipo de violação. Afinal, menciona, além das relações heterossexuais, o preservativo também é usado no sexo entre homens, por exemplo.
Foi através da série ”I may destroy you”, lançada no ano passado pela HBO, em que a protagonista é vítima de stealthing, que um estudante de administração, de 28 anos, entendeu a gravidade do que viveu três anos antes. Fiz sexo com um parceiro e, cinco meses depois, ele me telefonou bêbado, dizendo que havia tirado a camisinha”, conta. “Na época, ainda não era um tema debatido, e fiquei sem reação. Quando vi a série, a ficha caiu sobre como a atitude dele poderia ter me causado um mal muito maior.”
O rapaz descobriu, posteriormente, não ter contraído nenhuma DST, o que lhe trouxe alívio.
Mas o impacto psicológico já havia sido causado. “Nunca mais consegui me deixar penetrar, porque tenho medo de que voltem a fazer isso comigo”, afirma.
Desconforto semelhante é relatado pela estudante de 22 anos citada no início da reportagem. Ela conta ter levado um bom tempo até conseguir se relacionar sexualmente com outra pessoa. Ainda assim, quando acontece, sente dificuldade. “Desde então, fico de olho durante todo o ato para ver se a camisinha ainda está ali, o que atrapalha meu prazer.”
Segundo Paula Rita Bacellar Gonzaga, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, muitas vítimas sofrem com consequências como essa justamente por ser uma violência relativizada e tratada com descaso pelo poder público. “Isso dificulta que o sujeito possa se sentir seguro novamente”, afirma. Exatamente por isso, o debate se faz tão urgente. “Não há nada que a vítima poderia ter feito para evitar a violência sexual, mas podemos, enquanto sociedade, mudar as lentes pelas quais lemos e analisamos essas histórias.”
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