GRAVIDEZ NO CRACK É A FACE MAIS DOLOROSA DO VÍCIO
Médicos da maternidade estadual Leonor Mendes de Barros, em São Paulo, narram as batalhas cotidianas para salvar a vida dos bebês e das mães dependentes, que são consideradas pacientes de alto risco

Quando a filha tinha dois meses, na primeira noite em que estava sozinha cuidando dela, Tatiane tomou uma decisão definitiva: viveria sem o crack. Depois de passar 13 anos nas ruas como dependente química, dos quais cinco na Cracolândia, na capital paulista, foi naquele dia que percebeu “que Deus tinha dado uma nova oportunidade” a ela.
Antes daquele dia, aos cinco meses de gravidez, sem dinheiro para comprar droga, sentia fome, frio, cansaço e, o pior, fissura. No desespero, decidiu buscar um local de acolhimento para dependentes no centro de São Paulo.
“No meu último ano na Cracolândia, engravidei do meu milagre. Ninguém se importava, ninguém olhava, ninguém ajudava. Apareceu uma proposta, mas aborto é uma coisa que, mesmo na loucura, eu nunca tive coragem de fazer. Depois de tanto tempo ali, eu queria morrer, não tinha instinto de mãe, nem nada. Mas naquele dia me bateu um desespero, procurei ajuda e me internaram”, conta.
Tatiane passou o resto da gestação internada no Hospital Psiquiátrico Lacan do estado de São Paulo, sob remédios para combater a abstinência. Na hora do parto, foi levada para a maternidade estadual Leonor Mendes de Barros, onde teve Milena. De lá, o bebê só pôde sair quando a avó veio buscar. Hoje, três anos depois, elas vivem juntas no interior de Minas Gerais. Tatiane trabalha e descobriu que, sim, é possível superar o crack.
SEM PRÉ-NATAL
A gravidez de dependentes é uma das mais dolorosas fases do vício. A maternidade Leonor Mendes de Barros recebe pacientes de alto risco, das quais pelo menos duas ou três por mês são usuárias de drogas.
Essas gestantes chegam ao hospital por dois caminhos. Metade vem de outros serviços de assistência para fazer o pré-natal. A outra metade já vem para o parto.
“As dependentes químicas são um grupo difícil porque têm baixa aderência ao pré-natal e, quando começamos a atendê-las, não sabemos se teremos a chance de reencontrá-las. Assim, quando a paciente chega, a gente procura mostrar interesse, estimulamos para que não use drogas, encaminhamos para a psicologia, acionamos a assistente social”, afirma o ginecologista Tenilson Amaral, responsável por fazer o pré-natal das gestantes no Leonor Mendes. Além da dependência química, há complicações na saúde das gestantes. Asinfecções urinárias são mais comuns, inclusive pelas dificuldades no acesso à higiene. Outro problema que acaba sendo mais frequente são as infecções sexualmente transmissíveis, em especial, a sífilis, que tem transmissão vertical, ou seja, pode passar para o bebê”. Segundo Amaral, cerca de 15% das pacientes usuárias que fazem o pré-natal têm sífilis, contra a média geral de 1%. A doença pode provocar alterações morfológicas no feto.
Quando a mulher chega já em trabalho de parto, é importante entender o contexto e descobrir seu histórico e situação atual com as drogas. A informação serve para definir quando a amamentação está liberada.
No caso do crack, é preciso esperar 24 horas porque, antes disso, a droga pode passar para o recém-nascido, como explica a médica neonatologista Patrícia Maranon Terrível.
“Dependendo da quantidade de drogas que ela usa, a criança pode nascer com abstinência. Nesses casos, dá sinais como irritação, choro constante, febre ou sonolência. Se ela convulsionar, precisa do anticonvulsivante. Por isso é importante observar as primeiras horas. A maioria dessas crianças nasce com baixo peso, há muitos prematuros, mas são poucos os com sequelas”, explica.
A intenção é sempre manter mãe e filho juntos:
“Se o bebê nasceu bem, ela diz que é usuária, mas não usou, tem condições de ficar com o filho, ela fica. A gente não tira a criança da mãe porque ela é usuária”.
Caso a mulher tenha acabado de usar droga ou esteja em surto, o bebê vai para o berçário. A mãe registra a criança se quiser, mas é incentivada a fazê-lo. A assistente social, a psicóloga e a equipe médica dão início, então, a um novo desafio: avaliar, com a Justiça, se a mulher tem condições de ficar com a criança. Começa a busca por uma rede de apoio.
Segundo a médica, muitas dependentes não sabem quem é o pai da criança. Tenilson Amaral não se lembra de, algum dia, ter visto um homem acompanhando essas mulheres. Quando elas têm alguém ao lado, geralmente, são as mães. Mas, infelizmente, muitas famílias já estão quebradas e não há respaldo. Sem apoio, a maioria dos bebês vai para adoção.
DESTINO INCERTO
Se a mãe segue para uma clínica de reabilitação, por exemplo, alguém da família precisa ficar com o bebê. Às vezes a mãe tem alta, e o bebê fica à disposição da Vara da Infância e da Juventude. E o juiz determina se ele vai para a família da mãe ou para um acolhimento institucional.
“Quando a gente fala que vai ser encaminhado para a Vara da Infância, elas ficam nervosas e choram. Achar que uma pessoa que faz uso de crack não está nem aí para os filhos é mentira. Realmente é mais difícil para ela cuidar. Mas a questão é mais ampla do que moralizar”, diz a assistente social Selma Kouri, que trabalha há 17 anos na maternidade.
Antes, as crianças eram encaminhadas para a adoção com mais frequência do que hoje. Kouri explica que há um artigo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que diz que a criança não pode ficar perto de pessoa que faz uso de entorpecente. Agora, o foco está mais na parte que fortalece o direito à convivência comunitária.
Ao longo desses anos, a assistente social já viu mulheres fugirem do hospital após o parto em busca de droga e até um caso em que, após ter alta de outro hospital, uma mulher levou o filho com ela e trocou a criança por crack – a avó conseguiu resgatar o bebê.
Mas há finais felizes, como o de Tatiane, que mobilizam a energia de toda a equipe.
“Quando as coisas caminham bem, recebemos certo alento, porque para a gente também não é fácil. Um caso de sucesso é nosso grande combustível”, afirma Tenilson Amaral, que segue com esperança: “Não tenho dúvida que a gravidez é uma janela de oportunidade para a paciente dependente química para se livrar da droga”.
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