CORTE DE SUBSÍDIO PODERIA TURBINAR OS GASTOS COM A ÁREA SOCIAL
Brasil destina 20 vezes o valor do programa Bolsa Família para incentivos e funcionalismo

O baixo crescimento da economia, com aumento da miséria e urgência em reforçar programas sociais focalizados, explicita a necessidade de o Brasil rever o destino de bilhões de reais alocados em incentivos empresariais considerados pouco eficientes e concentradores de renda.
Neste ano, o Brasil deixará de arrecadar quase R$310 bilhões com benefícios tributários concedidos a empresas e setores. Somados a outros equivale a quase dez vezes o Bolsa Família, principal programa com foco na pobreza extrema.
o total também se aproxima ao de todos os salários e encargos com servidores civis ativos e inativos (R$ 335,4 bilhões), segunda maior despesa direta do governo federal – atrás da Previdência (cerca de RS700 bilhões).
Especialistas defendem que parte do dinheiro dos benefícios seja direcionada ao reforço de programas sociais, sobretudo os voltados à primeira infância, para interromper o ciclo de pobreza intergeracional – que leva os filhos de pais pobres a se tornarem, no futuro, pais de crianças pobres.
Também dizem ser imprescindível uma reforma administrativa que diminua o peso do funcionalismo público no gasto federal, abrindo espaço no orçamento para investimentos e programas de renda focalizados.
O próprio orçamento da área social, de 25% do PIB, poderia ser reformado o Bolsa Família, por exemplo, leva apenas 0,05% do PIB.
Os benefícios tributários, financeiros e creditícios a setores e empresas dobraram nos governos Lula e Dilma Rousseff (2003-2016) e hoje chegam a quase4,5% do PIB. Embora o governo Jair Bolsonaro (sem partido) tenha prometido reduzi-los, não houve alteração significativa até agora.
Só em setembro, após quase três anos, Bolsonaro enviou ao Congresso projeto de lei para cortar R$22 bilhões nesses benefícios fiscais.
Análise do Banco Mundial sobre políticas de incentivos em Brasil, Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Holanda e México concluiu que só o caso brasileiro resultou na combinação de aumento dos gastos tributários e queda na arrecadação – sugerindo que não aceleraram o crescimento.
Os benefícios tributários no Brasil representam quase um quarto das receitas administradas pela Receita Federal e, do ponto de vista regional, são fontes de desigualdades.
Estudo do Ministério da Economia mostrou que estados mais pobres como Maranhão, Piauí, Acre, Alagoas e Pará receberam menos de um terço da média nacional dos benefícios per capita em 2018. Já Amazonas (por causa da Zona Franca de Manaus), Santa Catarina e São Paulo se beneficiaram mais de renúncias tributárias do que contribuíram, proporcionalmente, para o crescimento do PIB.
Para Vinícius Botelho, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV) e ex-secretário nacional nos ministérios de Desenvolvimento Social e da Cidadania, há margem para reformulação com o objetivo de ampliar programas sociais.
“Essa é uma discussão básica, de realocação de recursos de áreas que não demonstram bons resultados para outras prioritárias”, afirma.
Segundo relatório do TCU (Tribunal de Contas da União), benefícios fiscais, em geral, representam distorções ao livre mercado e resultam, de forma indireta, em sobrecarga fiscal maior para os setores não beneficiados”.
“Em um contexto de restrição [orçamentária], como o enfrentado pela União, os valores associados a esses benefícios devem ser considerados com maior atenção, em virtude do impacto nas contas públicas”, diz o TCU.
Para o economista Alexandre Manoel, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, embora eventual corte dos benefícios possa resultar em aumento da carga tributária, isso seria positivo, pois deixaria de haver tratamento privilegiado a alguns setores.
Ele suspeita que boa parte da diminuição da capacidade do governo nos últimos anos de produzir superávits primários (economia para reduzir a dívida pública) tenha relação com o aumento dos benefícios tributários , que diminuíram a receita federal.
A queda do superavit a partir do início da década passada, que levou à aceleração da dívida bruta e à forte recessão no biênio 2015-2016 (quando o PIB encolheu 7,2.%), coincidiu justamente com a escalada dos benefícios tributários.
Segundo especialistas, o aumento da dívida bruta (equivalente a 82,7% do PIB e maior entre os grandes emergentes) e a insegurança fiscal atual estão na raiz do crescimento medíocre nos últimos anos.
No passado, tentativas de diminuir os incentivos foram seguidas de forte lobby de seus beneficiários. Mas um corte linear hipotético de apenas 10% para todos os favorecidos quase dobraria o Bolsa Família.
“De um lado, há todo um esforço para encontrar dinheiro e reforçar o Bolsa Família. De outro, uma conta bilionária que favorece a concentração de renda”, afirma Paulo Tafner, diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS).
Para o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, os subsídios tributários e financeiros acabam protegendo empresas e setores ineficientes, que não contribuem para o crescimento da produtividade, da economia e do emprego.
“O fundamental é acelerar a produtividade e inserir os mais pobres numa economia em crescimento. Não é sustentável só redistribuir uma renda que, no geral, não tem aumentado”, diz Mendes.
Especialistas defendem ainda reformar o Estado para aumentar a produtividade e o espaço no Orçamento para reforço de programas sociais. Considerada imprescindível, a reforma administrativa proposta pelo Ministério da Economia sofria até pouco tempo resistência de Bolsonaro.
No fim de setembro, uma comissão especial no Congresso manteve no texto da reforma a estabilidade aos servidores, fato considerado um retrocesso pelos que defendem mudanças mais ambiciosas.
Além de manter a estabilidade, Bolsonaro pretende ampliar em quase 70 mil o total de servidores (um recorde em projeto de Orçamento de 2022.
Como proporção do PTB, o Brasil gasta o equivalente a 13,1% com o funcionalismo federal, estadual e municipal – mais que Chile e México (abaixo de 9%) e acima da média dos países ricos (10,5%), segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
O gasto anual com servidores federais ativos faz com que ganhem 67% mais que seus pares na iniciativa privada, com cargos e nível educacional similares, segundo análise do Banco Mundial em 53 países.
Dados da FGV Social a partir do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) mostram grande concentração de rendimentos nos funcionários públicos federais em relação ao resto da população. Entre as ocupações mais bem pagas no Brasil, 6 estão no setor estatal.
Por causa dos servidores em Brasília, o Distrito Federal tem o maior rendimento médio entre as 17 unidades da Federação (considerando quem declara ou não o IRPF) e entre declarantes apenas. Ante o resto do país, a renda no DF mais que dobra o nacional.
Os dados do FGV Social, a partir do IRPF de 2018, incluem todos os rendimentos declarados, inclusive de aplicações financeiras e dos chamado PJ (pessoa jurídica), muitas vezes indivíduos que operam por meio de empresas individuais e recolhem menos tributos através do Simples.
O Simples lidera os benefícios tributários, com 24,6% do total. Em seguida vem a agricultura e o agroindústria (setor de grande concentração de renda), rendimentos isentos e não tributáveis, entidades sem fins lucrativos e a Zona Franca de Manaus.
Para Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea, os benefícios tributários e a tributação via IRPF demonstram que existe um “conflito distributivo puro” no Brasil.
“De um lado, os ricos e a classe média formam um grupo de interesse que obtém benefícios tributários, são pouco onerados via IR e não pagam imposto sobre dividendos. De outro, os pobres, que não tem canais de pressão e suportam grande carga via impostos sobre o consumo”, diz Souza.
“O resultado é que temos ganhos concentrados para poucos e perdas difusas para muitos”.
Em sua opinião, o país precisaria aumentar a tributação sobre a renda para além dos atuais 15% da população que declaram IR (menos que a média latino-americana e de muitos países do sul da Europa).
Também seria preciso diminuir os impostos indiretos sobre o consumo – o que leva os pobres a pagarem, proporcionalmente, muito mais impostos do que os ricos.

Você precisa fazer login para comentar.