ATAQUE À POBREZA MENSTRUAL
Discussão sobre questão cresce e leva governos nacionais e locais em vários países a agirem

Em novembro de 2020, a Escócia tornou-se o primeiro país a aprovar uma lei tornando obrigatória a distribuição gratuita de absorventes femininos e outros produtos de higiene menstrual em instalações públicas, incluindo escolas e universidades. Segundo instituições internacionais e ONGs que se dedicam à questão, ao menos 500 milhões de mulheres e meninas em todo o mundo não têm acesso a itens de higiene adequados para usarem durante a menstruação, a maior parte delas em países de baixa e média renda. Mas a pobreza menstrual – que engloba ainda a falta de conhecimento sobre a própria menstruação – não atinge apenas as nações mais pobres. Em resposta a uma crescente conscientização sobre esse problema global, governos nacionais e locais vêm aos poucos adotando medidas para enfrentá-lo.
Os estigmas e tabus sobre a menstruação, a crise agravada pela pandemia, além do crescimento da desigualdade em países ricos, tornaram o problema multo mais comum do que se pensa: nos EUA uma pesquisa de 2020 estimou que 16,9 milhões de mulheres viveram os efeitos da pobreza menstrual na pandemia; no Reino Unido, 30% britânicas com idade entre 14 e 21 anos tiveram dificuldade para comprar produtos de higiene menstrual no ano passado.
A discussão, que nos últimos anos vem crescendo em todo o mundo, só aportou no Brasil de maneira mais ampla na semana passada, quando o presidente Jair Bolsonaro vetou um projeto de lei para distribuição gratuita de absorventes a estudantes de baixa renda de escolas públicas, presidiárias e mulheres em situação de rua ou de vulnerabilidade extrema. Para analistas, porém, o foco está muito no controle da menstruação e menos em combater estigmas e tabus.
EXEMPLO SE ESPALHA
Até hoje, apenas dois países aprovaram leis nacionais que tornam obrigatória a distribuição gratuita de absorventes: a Escócia, de maneira ampla, e o Quênia, que em 2017 determinou que todas as meninas recebessem produtos higiênicos gratuitamente enquanto estivessem matriculadas em uma escola.
No país, um dos mais afetados no mundo pela pobreza menstrual, aproximadamente 50% das meninas e jovens em idade escolar não tinham, até então, acesso a produtos menstruais. Mas os avanços já começam a render frutos. Um relatório deste ano do Fundo de População da ONU mostrou que o governo queniano conseguiu resultados positivos em maior escala do que muitas ONGs. Além disso, políticas semelhantes já foram implantadas em diversos países em nível local, seguindo o exemplo queniano.
Na Escócia, 11 meses após a aprovação da nova lei, ainda não se sabe muito sobre seu impacto, explica Camilla Mork Rostvik, que faz parte da Rede de Pesquisa de Menstruação do Reino Unido, da Universidade de Saint Andrews.
“Não sabemos o que mudou. A Covid-19 alterou tanto a vida das pessoas na Escócia que isso terá que ser corrigido nos dados também”, explica Rostvik. “Mas, desde então, cidades e condados em outros países, como Índia, Canadá, Estados Unidos, Escandinávia e Nova Zelândia já adotaram ou consideram adotar uma lei semelhante. A mudança será lenta, mas essas iniciativas respondem a parte do estigma menstrual em todo o mundo, embora outras questões como dor, tabus contra vazamento nas roupas e o próprio silenciamento das mulheres ainda não estejam muito sobre a mesa”.
TAXAÇÃO DE ABSORVENTES
Mesmo que o combate à pobreza menstrual ainda não seja lei na maioria dos países, nos últimos anos, várias nações eliminaram impostos sobre absorventes – Austrália, Índia, Canadá, Quênia e Reino Unido, que implantou a medida no início do ano, estão no grupo. Nos EUA, 23 estados já não taxam tais produtos.
“Na verdade, os países do Sul global adotaram políticas relacionadas à higiene e à saúde menstrual muito antes: Quênia, África do Sul, Índia, Nepal, Senegal, para citar apenas alguns. Nesses países, muitas das políticas têm como alvo meninas nas escolas, com fornecimento de produtos de higiene e educação sobre higiene menstrual”, explica Inga Winkler, criadora e codiretora do Grupo de Trabalho sobre Saúde Menstrual e Justiça de Gênero da Universidade Columbia, em Nova York.
Para Winkler, no entanto, o foco está muito no controle da menstruação.
“A mensagem geral que recebemos é para manter nosso corpo bagunçado sob controle, para mantê-lo limpo, higiênico, evitar quaisquer sinais visíveis de menstruação. E é por isso que o estigma persiste: está coberto por finas camadas de celulose. Isso não mudará enquanto a menstruação for apresentada como um problema a ser consertado, administrado e escondido”, diz ela. “E isso acontece na maior parte do mundo, senão em todo”.
Em muitos países, além do estigma em torno da menstruação, a falta de acesso a produtos de higiene tem impacto também na baixa escolaridade. Na África, talvez o continente mais afetado, uma em cada 10 meninas falta às aulas por não ter acesso a produtos adequados, porque não há banheiros seguros ou por tabu.
No Brasil, de acordo com um relatório da Unicef deste ano, que traçou um panorama da realidade menstrual no país, faltam a mais de quatro milhões de meninas itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas.
COMBATER O ESTIGMA
Para Vinkler, que também é professora de Legislação Internacional de Direitos Humanos na Universidade da Europa Central de Viena, na Áustria, é preciso reconhecer o poder do estigma menstrual e seus impactos em todas as esferas da vida, incluindo saúde, educação, trabalho e participação na vida pública.
“Combater o estigma menstrual significa criar condições nas quais seja impensável que alguém seja demitido porque seu sangue ‘sujou’ o carpete, como aconteceu com uma operadora de call center nos EUA. Onde os carcereiros não escondam produtos menstruais para humilhar e degradar mulheres presas. Onde o som de um absorvente em um banheiro público não cause ansiedade para uma pessoa trans. Onde as ideias de ninguém sejam descartadas porque são “TPM”. Espero que possamos usar o momento atual em torno da menstruação para transformá-la em um movimento duradouro de mudança .
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