A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL JÁ É CAPAZ DE ESCOLHER O NOVO ‘CAMISA 10’ DO SEU TIME
Ganha força o uso de algoritmos para a contratação de jogadores, com aplicações que avançam ao ponto de indicar chances de sucesso de uma promessa em uma liga específica de futebol; no entanto, o momento de aposentar os antigos ‘olheiros’ ainda não chegou

Por muito tempo, contratações de jogadores de futebol passam pelo aval de “olheiros”, gente com conhecimento suficiente para separar os craques dos pernas de pau. Agora, o próximo ídolo do seu time já pode ser escolhido por robôs.
Na última década, a produção de dados sobre uma partida de futebol explodiu: empresas privadas, ligas, associações e os próprios clubes passaram a gerar um volume gigante de informações. Atualmente, times, federações e empresários tentam encontrar sentido nos dados por meio de inteligência artificial (IA) – uma das aplicações mais procuradas é a de contratação de novos atletas.
Não é para menos: com os custos cada vez mais elevados em transferências, a chegada de um novo atleta ganha importância não apenas esportiva, mas também econômica. Ela precisa ser certeira. “Temos uma plataforma que é uma espécie de Google para contratações”, diz Salvador Carmona, fundador da consultoria espanhola Driblab.
O executivo desenvolveu uma ferramenta que recebe dados de partidas e jogadores e faz sugestões de contratações baseadas naquilo que os clubes procuram – a interface é tão simples que lembra a de um vídeo game. Os jogadores podem ser sugeridos com base na performance em determinados atributos ou na possível adaptação a certos esquemas táticos. A IA também pode sugerir atletas por seu potencial econômico. “Em 2017, o Watford (clube da primeira divisão inglesa)nos procurou querendo um jovem atacante que também tivesse potencial econômico. O algoritmo fez algumas sugestões. O primeiro nome da lista era um atacante belga, e o negócio não andou. O segundo era o de Richarlison”, conta Carmona. Então no Fluminense o, centroavante brasileiro foi contratado por 12,4 milhões de Euros. Na temporada seguinte, o Watford vendeu Richarlison por 40 milhões de Euros ao Everton.
Para quem acompanha de fora, a trajetória do atacante brasileiro pode ter sido apenas um golaço acidental da ciência de dados. Porém, predizer o sucesso de novos craques por meio de IA vem se tornando fundamental para muitos clubes. O Liverpool, por exemplo, está colaborando com a Deep Mind, empresa ”irmã” do Google, para o desenvolvimento de algoritmos sofisticados que aumentem o grau de previsibilidade.
BICHO DIFÍCIL
“Contratação é o bicho mais difícil do mundo. Você pode contratar o “Kaká” para o seu time, mas ele pode não se adaptar. E daí danem-se as valências”, afirma Daniel de Paula Pessoa, ex-diretor de futebol do Fortaleza.
Na temporada de 2020, Pessoa trouxe a Driblab para ajudar o departamento de análise de dados do clube. Após alguns meses de experiência, considera-se que a IA pode ser uma ferramenta importante, mas está longe de superar o olho humano.

QUÍMICA
Mesmo com jeito de craque promissor, a IA ainda navega por funções bem menos empolgantes dentro do futebol, como automação das tarefas. “Estima-se que um analista humano gaste até oito horas para gerar informações sobre uma única partida. Os algoritmos tentam reduzir esse tempo para até duas horas”, diz Floris Goes, cientista de dados da firma SciSports, consultoria holandesa que tem entre os clientes a liga do país.
“Estamos trabalhando para que nosso algoritmo possa predizer o nível de sucesso de um jogador que sai de um campeonato para jogar em outro. Por exemplo, qual será a performance de um jogador que vai bem no Brasileirão ao se transferir para a Inglaterra? Isso ainda não foi feito”, afirma Goes.
Essa não é a única tentativa da SciSports de ampliar o estudo de sua IA. A empresa já apresentou estudo no qual tentava montar um modelo matemático capaz de prever a “química” entre atletas. Ou seja, a IA seria capaz de detectar o Bebeto de cada Romário. Dessa maneira, os clubes poderiam contratar nomes com características complementares independentemente da fama. A pesquisa não foi incorporada à plataforma da empresa, mas indica possibilidades.
“Algoritmos para a combinação de jogadores é um desafio, pois depende de estilos de jogo e preferências do técnico”, diz Rodrigo Picchioni, gerente de análise do Atlético Mineiro. “É muito difícil, por exemplo, criar um modelo matemático que consiga identificar boas ações defensivas. Muitas vezes, um zagueiro não precisa pegar na bola para ser um bom jogador.”
CAPITÃO
Com o avanço do IA, clubes de futebol em todo o mundo começam a atrair um perfil de profissionais pouco comum ao mundo da bola: matemáticos, engenheiros de dados e programadores.
Ian Graham, nome mais famoso na fronteira entre a bola e a IA, é um físico da Universidade de Cambridge. Ele é o chefe do departamento de dados do Liverpool e fica com parte dos créditos pelo projeto que levou o clube a títulos como a Liga dos Campeões e a liga inglesa.
“Os grandes clubes terão departamentos de dados e IA. Aqueles que não puderem estruturar equipes terão os serviços de consultoria” , prevê Carmona. Porém, todos ainda acreditam no papel do observador humano. O futebol, afinal, tem muitos detalhes que passam despercebidos pela máquina. E como todo torcedor sabe: bola na trave não altera o placar.

ALGORITMOS TAMBÉM PODEM SER ÚTEIS EM TRANSMISSÕES
Tecnologia pode ser usada para levar partidas de futebol para TV e internet; dinamismo do jogo é desafio
Nãoé só na prevenção de lesões e nas contratações que a inteligência artificial (IA) pode marcar gols no futebol. Dentro do campo, um segmento que ganha atenção da tecnologia é o da transmissão de partidas, que busca por métodos de automação levar para as telas eventos que emissoras não podem estar “in loco” para produzir.
A Pixellot, empresa israelense de IA, é uma das grandes apostas do mercado para levar um sistema automatizado para estádios e quadras, com transmissão feita por câmeras que atuam sem a operação humana. A partir de algoritmos, o sistema é capaz de identificar a bola, os jogadores e a área do campo em que o lance acontece. Assim, ela produz cortes, zooms e acompanha o movimento do jogo sem a necessidade de um cinegrafista, por exemplo.
Segundo Márcia Cintra, diretora da Pixellot no Brasil, o recurso já esteve em teste com a TV Globo em 2019. A tecnologia foi usada no Maracanã. As negociações foram paralisadas, porém, por causa da pandemia – as câmeras seriam utilizadas em jogos de futsal já em 2020. Em contato com a reportagem, a emissora confirmou o teste com o equipamento,
“Não pretendemos substituir a produção de um clássico ou de um jogo de seleção brasileira, substituir pessoas. Porém, outros jogos – uma série C, por exemplo – , onde não há a estrutura de transmissão, interessam”, informa a Globo.
Com o aumento dos serviços de streaming que oferecem transmissões de partidas de futebol, cresce também o interesse em ter um equipamento guiado por IA, principalmente em campeonatos menores.
Além disso, a implementação dá tecnologia pode ocorrer pelos próprios clubes de futebol. Segundo Márcia, o interesse na comercialização do sinal, e na própria análise da comissão técnica, é uma justificativa plausível para adotar o sistema.
“Com essa tecnologia, o técnico não precisa nem sair de casa. Ele assiste ao jogo e faz a análise de performance dos garotos pela transmissão. O Barcelona, por exemplo, tem academias espalhadas pelo mundo, todas elas com tecnologia de IA. Todo mundo consegue assistir ao que se passa nessas quadras, desde treino até campeonatos oficiais”, diz Márcia, “Mas no Brasil tudo ainda está muito embrionário.”
Na opinião de Paulo Sérgio Silva Rodrigues, professor de Ciência da Computação do Centro Universitário FEI, ainda há barreiras a ser dribladas para que a IA se torne uma titular no futebol. Isso porque a tecnologia ainda não está totalmente adaptada à dinâmica do jogo. Na Escócia, uma transmissão foi prejudicada depois de uma câmera detectar um bandeirinha – ou melhor, a sua calvície – e confundir a imagem com a bola do jogo. Resultado: os telespectadores acompanharam a movimentação do auxiliar, e não dos jogadores.
“Sabemos que essa tecnologia é limitada ainda, sobretudo em cenas muito dinâmicas e com muitos detalhes. Assim, é fácil esses algoritmos errarem. Mas eles estão evoluindo rapidamente. Quanto mais a tecnologia avança, mais detalhes específicos dos objetos da cena (jogadores, bola, até – a plateia em geral) são analisados e informações mais precisas e completas serão geradas”, afirma.
Ainda assim, Rodrigues acredita que o futuro reserva boas cotas para a presença da IA nas transmissões de futebol. “Acredito que será bem rápida a chegada desse tipo de tecnologia para o público em geral. Essas ideias e soluções estão disponíveis para qualquer um. Então, muitas startups podem competir entre si e até mesmo com as grandes empresas, o que pode fazer o preço cair”, diz.

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