AUTOCUIDADO NA PANDEMIA
A Covid-19 bagunçou a rotina e mexeu com a forma de se cuidar, se relacionar e consumir. Pesquisa com 1.874 brasileiros mostra como ela reverberou na alimentação, na atividade física e na busca por informações e serviços de saúde

Se tem uma palavra que deve ser cada vez mais incorporada ao nosso dia a dia a partir da pandemia, ela é autocuidado. Falamos de um conjunto de hábitos bem-vindos ao corpo e à mente e que inclusive é tratado como um direito ao cidadão pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O conceito abrange sete pilares: hábitos de higiene, prática de atividade física, alimentação balanceada, busca de informações confiáveis, restrição de comportamentos nocivos (como tabagismo e abuso de bebida alcoólica), conhecimento do próprio corpo e atenção a sinais estranhos e uso responsável de remédios e outros produtos. Todos eles foram afetados ou exercidos de alguma forma no mundo pós-Covid.
É nesse contexto que, com o apoio da Associação Brasileira de Medicamentos Isentos de Prescrição (Abimip), conduzimos a pesquisa ”Autocuidado em Tempos de Pandemia,” que investiga como os brasileiros lidam com cada um dos sete pilares e os efeitos da Covid-19 na percepção e na adoção desses hábitos. O estudo, realizado pela internet em junho de 2020, envolve 1.874 mulheres e homens de todas as regiões do país. Sete em cada dez entrevistados se mostraram dispostos a rever e alterar atitudes pensando em preservar a saúde.
Os efeitos mais positivos, na visão dos participantes, aparecem na procura por informações sobre prevenção e bem-estar e na adesão a medidas de higiene, como lavar as mãos, utilizar álcool em gel e caprichar na limpeza da casa – comportamentos que, de fato, ajudam a minimizar a transmissão do coronavírus. Mas há situações impactadas negativamente pela pandemia. Para quase metade dos entrevistados, o maior desafio está na prática de exercícios, limitada pelo fechamento temporário de parques e academias e pela reabertura gradual e cercada de receios. A alimentação também sentiu o baque em muitos lares, transformados da noite para o dia em um espaço misto de trabalho, lazer e convívio familiar.
Quando questionados sobre os pilares do autocuidado mais difíceis de levar para a rotina, disparam justamente esses dois hábitos tão ligados à prevenção de doenças crônicas: 46% das pessoas apontam para a alimentação saudável e 65% para a atividade física. O mapeamento também capta reflexos significativos da Covid-19 no sono e no estado emocional dos brasileiros. Em live transmitida pelas redes sociais para discutir os achados da pesquisa, o educador físico e expert em qualidade de vida Mareio Atalla resumiu suas orientações para o novo normal em um conselho: precisamos (r)estabelecer uma rotina.

ADOTAR HÁBITOS DE HIGIENE
Vestir a máscara ao sair de casa, lavar as mãos quando retornar e utilizar álcool em gel no meio do caminho são algumas das cenas mais emblemáticas da pandemia de Covid-19. E não é para menos: as medidas de proteção e higiene estão entre as maneiras comprovadamente eficazes de barrar o contágio pelo vírus SarsCoV-2. Na pesquisa “Autocuidado em Tempos de Pandemia”, 93% dos entrevistados afirmaram alterar hábitos de limpeza pessoal. A maioria passou a lavar mais as mãos e adotou o álcool em gel e quase metade se vale de mais produtos para caprichar na faxina da casa. Já está claro que uma das principais formas de transmissão do coronavírus se dá por gotículas de saliva expelidas por alguém infectado ou pelo contato próximo com um portador do patógeno. Desse modo, usar a máscara, manter distanciamento, lavar as mãos com água e sabão (alguns especialistas sugerem por cerca de 20 segundos) e usar o álcool em gel na ausência de uma pia por perto fazem a diferença na prevenção da Covid-19. De bônus, os hábitos de higiene reduzem o risco de pegar ou passar outros vírus e bactérias perigosos. Eis uma das principais lições da pandemia.

PRATICAR EXERCÍCIOS FÍSICOS
Suar a camisa para muita gente nunca foi uma promessa fácil de cumprir. E na pandemia a dificuldade aguçou de vez. Pudera: só agora parques e academias estão sendo reabertos, com todos os cuidados que a situação exige. Quem estava para iniciar alguma atividade desistiu. Muitos até já tinham dado o pontapé inicial no projeto de sair do sedentarismo, mas o hábito ainda não tinha sido bem assimilado quando veio a necessidade de ficar em casa. Com tudo isso, dá para entender por que os exercícios foram considerados o pilar do autocuidado mais difícil de cumprir na rotina. Ocorre que, mesmo antes da Covid-19, mais da metade da população brasileira já era sedentária. Com o coronavírus circulando e a turbulência pelos lares, tudo se complicou. Faltam tempo e motivação para malhar, a despeito de tantas aulas na internet. “Mas é fundamental vencer a inércia, porque os exercícios contribuem diretamente para o bem-estar físico e mental,” ressalta Antônio Lancha Jr., professor da Escola de Educação Física e Esportes da Universidade de São Paulo (USP). Para recomeçar, encontre um espaço na agenda, conte, se possível, com as orientações de um profissional e retome aos poucos, tomando as precauções.

MANTER UMA DIETA EQUILIBRADA
Embora mais da metade dos participantes do estudo acreditem que a pandemia não desgovernou sua alimentação, uma parcela significativa pena para manter o equilíbrio à mesa (e na sala, no quarto ou na varanda). Um terço relata estar consumindo mais doces e percebe descontrole com a comida. “Estamos vivendo um período de imprevisibilidade. Isso gera ansiedade e afeta o comportamento alimentar”, analisa Lancha Jr. “Daí muita gente fica mais permissiva e, ao consumir alimentos com açúcar ou gordura, a sensação de tensão emocional pode até não desaparecer, mas é mitigada”, completa. Experimentos mundo afora indicam que, na presença do estresse, tendemos a preferir itens mais gordurosos ou açucarados, como chocolate e batata frita, a iogurte, fruta ou salada. O professor da USP explica que tudo está ligado à bioquímica cerebral e a missão aqui é quebrar o círculo vicioso que transforma a comida em um antídoto contra a ansiedade. Para quem enfrenta essas angústias no dia a dia, convém estabelecer horários para comer, comprar e priorizar alimentos mais naturais, frescos e saudáveis e, se for ocaso, procurar suporte profissional.

EVITAR ATITUDES NOCIVAS
Algumas pessoas descarregam a tensão na comida, outras o fazem no cigarro ou mesmo no álcool. No levantamento, 11% dos brasileiros relataram ter um impacto negativo em relação a evitar ou controlar comportamentos prejudiciais à saúde, como fumar ou beber além da conta. O abuso de álcool movido pela quarentena foi registrado em vários países e chegou a fazer a OMS pedir que os governos restringissem a venda de cerveja, vodca, gim e companhia. O tabaco também se aproveitou da situação. Um trabalho capitaneado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que ouviu mais de 44 mil brasileiros, indica que 34% dos fumantes passaram a tragar mais cigarros no dia a dia com a pandemia – 22% ampliaram em dez o número de unidades consumidas. Especialistas reforçam que utilizar esses meios para desestressar não só gera mais dependência como expõe corpo e mente a efeitos rebote e desbalanços. Enquanto o excesso de bebida alcoólica pode debilitar a imunidade, o tabagismo desata inflamações e lesões nos pulmões e nos vasos sanguíneos. São cenários nada bem-vindos em tempos normais, que dirá com o coronavírus à solta.

FICAR ATENTO E CONHECER O PRÓPRIO CORPO
Decifrar os sinais que o organismo dá nos ajuda a prevenir problemas hoje e lá na frente. E, na pesquisa, seis em cada dez entrevistados se dizem mais atentos ao próprio corpo. A Covid-19 deixou claro, e à duras penas, que reconhecer os sintomas é o primeiro passo antes de tomar qualquer decisão diante de uma doença – inclusive ir ao hospital. Nesse sentido, o medo de sair de casa e se contaminar reduziu a procura por centros de saúde, algo compensado, em parte, pela adesão das pessoas à telemedicina e à orientação remota. Até porque nem sempre é preciso voar ao pronto-socorro e se expor ou tomar o lugar de alguém que requer realmente atendimento. “Quando seguimos os pilares do autocuidado de forma disciplinada e consistente, diminuímos a necessidade de utilização do sistema de saúde, evitamos consultas desnecessárias e contribuímos com a produtividade geral e a sustentabilidade do setor”, argumenta Cesar Bentim, fundador da startup Artegist Healthcare e consultor do estudo. É evidente que situações como falta de ar e dor no peito merecem uma corrida ao hospital – e não só pela Covid-19. Mas o ponto é que, fora dessas emergências, uma consulta médica à distância pode esclarecer quem, de fato, precisa se deslocar até lá.

USAR REMÉDIOS DE FORMA RESPONSÁVEL
O amadurecimento de uma postura mais ativa e ponderada em relação à saúde parece se refletir no uso de medicamentos isentos de prescrição, os MIPs. “Tomar remédio por conta próprio deve ser uma prática responsável pautado por orientação e educação, o fim de que o indivíduo conheça seu corpo e faça escolhas eficazes e seguras”, diz Marli Sileci, vice-presidente executiva do Abimip. Ela ressalta que esses produtos devem ser usados diante de males menores, já conhecidos ou diagnosticados, e após tirarmos as dúvidas na bula ou com o farmacêutico – se os sintomas persistirem, é hora de procurar o médico. Mas cabe diferenciar automedicação de autoprescrição, confusão detectada na pesquisa. “A automedicação responsável consiste na utilização dos MIPs, fármacos com baixa toxicidade, caso de analgésicos, antitérmicos e antiespasmódicos”, explica o toxicologista Sérgio Graff, diretor da Toxiclin, em São Paulo.
A autoprescrição envolve o uso de remédios que exigem receita e, infelizmente, às vezes são adquiridos mesmo sem o pedido médico (entram aqui anti-inflamatórios, anti-hipertensivos, antibióticos…). “Essa é uma atitude que pode trazer uma série de riscos”, alerta Graff.

INFORMAR-SE E ATUALIZAR-SE SOBRE SAÚDE
A pesquisa “Autocuidado em Tempos de Pandemia” constata: os brasileiros passaram a se preocupar com a fonte da informação e a disseminação das notícias falsas. Quase nove em cada dez afirmam que serão mais criteriosos com os conteúdos de saúde e 75% já se conscientizaram sobre o perigo das fake news. Apesar de a maioria se informar pela TV, são considerados mais confiáveis os sites especializados em saúde e as opiniões dos profissionais da área. “Mas continua sendo problemática a busca por remédios milagrosos ou aqueles indicados por um vizinho ou mencionados na internet”, pondera Graff. “Com a Covid-19, não é raro pessoas sem nenhum sintoma e sem orientação se medicarem baseadas em relatos de redes sociais”, lamenta. Segundo o médico, isso reforça a necessidade de investir em campanhas sem viés ou ideologia que eduquem a população de forma consistente. Embora não existam saídas fáceis para o ecossistema das fake news, os especialistas acreditam que só mobilizando todos os setores da sociedade conseguiremos sobrepujar as pseudonotícias com conteúdos sérios e baseados em ciência. E é através deles que podemos transformar o autocuidado numa nova rotina.



Você precisa fazer login para comentar.