DE FIBROSE A DOR DE CABEÇA: PACIENTES CONVIVEM COM SEQUELAS HÁ UM ANO
Pesquisa da USP identifica problemas em 60% de 750 pacientes do Hospital das Clínicas, especialmente em pessoas com mais tempo de internação. Recuperados relatam perda de sentidos e problemas respiratórios e cardiológicos, além de reflexos emocionais e cognitivos

Mais de um ano após ter covid-19, a baiana Renilda Lima ainda tem 20% do pulmão comprometido, sofre cansaço diariamente, convive com perda de memória e tem baixa imunidade. A doença, contraída em maio de 2020, causou sequelas que persistem até hoje e que Renilda, de 34 anos, não sabe se conseguirá se recuperar. Segundo pesquisa do Hospital das Clínicas da USP, 60% dos pacientes que tiveram covid no ano passado estão em condições de saúde semelhantes, mesmo após um ano da alta hospitalar.
O estudo da USP acompanha 750 pacientes que ficaram internados no primeiro semestre de 2020 no Hospital das Clínicas da instituição. Eles serão analisados durante quatro anos, mas os resultados preliminares indicaram que 30% ainda possuem alterações pulmonares importantes. Além disso, parte também relata sintomas cardiológicos e emocionais ou cognitivos, como perda de memória, insônia, concentração prejudicada, ansiedade e depressão.
Segundo Carlos de Carvalho, professor titular de Pneumologia da USP e diretor da divisão de Pneumologia do Instituto do Coração (InCor), os resultados preliminares mostram que algumas sequelas a longo prazo ainda podem ser revertidas. “Há casos em que os pulmões apresentam inflamações mesmo um ano depois da alta hospitalar. Já vimos que essas inflamações podem virar fibroses (cicatrizes pulmonares), que são permanentes”, declara. No caso de Renilda, as sequelas físicas vieram junto com as emocionais. Além do cansaço – o que a levou a interromper algumas atividades diárias -, ela também passou a ter dificuldades de dormir e medo de ficar novamente em estado grave se contrair doenças respiratórias. “Até hoje meu sono não é regulado. Troco o dia pela noite. Recusei três propostas de emprego com medo de ficar doente”, contou.
Natural de Feira de Santana, a 116 quilômetros de Salvador, a baiana teve covid no primeiro pico da pandemia no Brasil, momento em que os hospitais públicos estaduais da Bahia não tinham leitos vagos. Ela tratou da doença em casa até conseguir um leito de estabilização em Salvador, onde permaneceu por três dias. No retorno para casa, ficou de cama durante dois meses e não conseguiu se recuperar totalmente.
Carvalho explica que as sequelas são piores e mais longas nos casos em que o tratamento das complicações causadas pela Covid é feito tardiamente ou de maneira não adequada. “Percebemos que os pacientes que demoraram mais a serem encaminhados para o hospital das Clínicas chegaram em um estado mais grave, e isso também agrava as sequelas. Quanto maior o tempo de internação e a gravidade das infecções, maior a tendência de haver mais sequelas a longo prazo”.
SENTIDOS
A perda do paladar e do olfato, sintomas comuns no período de infecção, também está entre as sequelas de longa duração. O estudante de Engenharia Ambiental e cozinheiro Emmanuel Ramos, de 20 anos, afirma que os dois sentidos estão “distorcidos” e que os cheiros de alguns temperos foram perdidos. “Tenho enjoos também quando sinto o cheiro de produtos de limpeza e até das queimadas que atingem minha região”, disse Ramos, de Palmas.
Nos dois casos, as sequelas alteraram a rotina anterior à Covid. Em relação a Emmanuel Ramos, o atrapalha na cozinha. Já Renilda parou de fazer faxina em casa, de ir à academia e sente que não pode desempenhar a mesma função de antes no trabalho, em que era gerente de um estacionamento, por também sofrer perda de memória.
Essa última sequela é relatada por 42% dos pacientes durante a pesquisa da USP. De acordo com os relatos ouvidos, a perda de lapsos de memória é frequente na rotina e acontece a qualquer hora. “Às vezes, saio da minha sala de trabalho para beber água no corredor e no caminho esqueço o que fui fazer”, descreve a acreana Sheyenne Queiroz, de 45 anos. Ela contraiu a Covid em novembro e não chegou a ficar no estado grave da doença, mas passou a sofrer com dores de cabeça fortes e esquecimento. “Cheguei a achar que estaria com aneurisma por causa da intensidade das dores de cabeça, mas, ao procurar um neurologista e fazer exames, ele me disse que se tratava de uma sequela da Covid-19″, diz.
A neuropsicóloga do Instituto Alberto Santos Dumont, Joísa de Araújo explica que as queixas mais recorrentes dos pacientes estão concentradas em esquecimento, dores de cabeça, ansiedade, sintomas depressivos e sensação de fadiga, inclusive em pessoas ditas “assintomáticas” durante o período de infecção. “Muitos jovens, que não tinham queixas anteriores, passaram a apresentar dificuldades de recordar questões do dia a dia”, afirma

ASSISTENTE AINDA SOFRE COM FALTA DE AR APÓS QUATRO INTERNAÇÕES
Baiana contraiu covid-19 em junho de 2020 e foi diagnosticada com inflamação no pulmão e Arterite de Takayasu
Natural de Esplanada, Bahia, Eliane Silva, de 32 anos, contraiu Covid-19 no final de junho de 2020 e precisou ser internada quatro vezes por causa do vírus. Foram três vezes por causa das sequelas da doença, além da hospitalização no período em que estava infectada.
A assistente de pessoal passou a sofrer com falta de ar, fadiga e problemas na circulação. Ela foi diagnosticada com vasculite pulmonar (doença autoimune que se caracteriza pela inflamação dos vasos pulmonares) e Arterite de Takayasu, uma doença inflamatória crônica.
Em julho, a baiana foi internada em uma unidade de saúde de Salvador para tratar uma nova crise. “Não tinha problema respiratório e tudo começou depois da Covid. Hoje me sinto muito abalada. Às vezes, digo para o médico que prefiro nem pensar nisso tudo, pois já dá vontade de chorar”, confessa.
Segundo o professor Carlos de Carvalho, casos de doenças autoimunes são possíveis em qualquer infecção ou vírus. Entretanto, ele afirma que os resultados obtidos na pesquisa não indicam que essa é uma característica recorrente, apesar de possível. “É algo que permanecemos atentos para ver se doenças autoimunes irão se manifestar ao longo dos anos, mas, com um ano, não vimos.”
Em julho do ano passado, Eliane ficou internada, mas recebeu alta no mesmo mês. No entanto, passou a sentir dores debaixo do peito esquerdo e entre a costela em novembro e precisou retornar ao hospital. Na maioria das vezes, os médicos afirmavam que as dores eram gases e passavam uma medicação paliativa. Somente em janeiro, cinco meses após as primeiras dores, descobriu o que sofria.
O tratamento inicial durou de quatro a seis meses, com coagulantes e uso de corticoide, remédio com potência anti-inflamatória. Entretanto, ela voltou a sentir dores ao iniciar o desmame dos medicamentos e foi internada no dia 28 de julho. “É muito complicado ter uma internação a cada seis meses. O psicológico fica a mil por horas.”
PERGUNTAS EM ABERTO
A pesquisa do Hospital das Clínicas é realizada com pacientes que estiveram internados entre 30 de março e 30 de agosto de 2020. Segundo Carvalho, isso significa que não se sabe quais sequelas as variantes surgidas a partir deste ano – como a Delta, mais transmissível – podem deixar a longo prazo. “Ainda são perguntas em que não sabemos as respostas porque é preciso fazer novos estudos.”

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