A VIOLÊNCIA SILENCIOSA
Apesar de mais denúncias de agressões a crianças, abrigos se esvaziam na pandemia

A adolescente Maria* perdeu o pai quando tinha 3 anos e a mãe aos 9. A família decidiu que a menina passaria a viver com um casal de tios e o filho deles em Campo Largo (PR). Passados mais quatro anos, Maria relatou a outra tia ter sido abusada sexualmente pelo tio. Os abusos, segundo ela, ocorreram ao longo do último ano, sempre quando a tia e o primo saíam.
“Fui ao conselho tutelar, que me orientou a fazer um boletim de ocorrência. A família toda me julgou, não acreditou (na denúncia). Minha sobrinha está morando com a gente eaté agora não conseguiu atendimento psicológico”, diz a tia, uma professora de 29 anos que pediu anonimato.
No último ano, o número de crianças e adolescentes acolhidos em abrigos teve uma redução de 15%, segundo a Secretaria Nacional de Assistência Social. Passou de 29.998 acolhimentos, em 2019, para 25.534 em 2020. Em tempos normais, a “queda” seria uma ótima notícia, sinal de que há menos violações de direitos e de que a rede de proteção está funcionando. Mas não é nisso que acreditam especialistas.
Integrantes do Judiciário e da rede pública de proteção a menores de idade avaliam que não foi a redução da violência que esvaziou os abrigos, mas sim o abafamento dos casos. Presas em casa com seus agressores e longe da escola, principal canal de identificação de violações, crianças e adolescentes como Maria sofrem em silêncio. O funcionamento parcial de equipamentos da assistência social e de saúde durante a pandemia, com regimes de plantão ou trabalho remoto, foi outro agravante.
A promotora de Justiça Renata Rivitti, assessora do Centro de Apoio Operacional da Infância do Ministério Público de São Paulo, explica que num primeiro momento da pandemia houve um empenho maior da Justiça para encaminhar crianças e adolescentes acolhidos em abrigos. Em abril do ano passado, na tentativa de protegê-los do coronavírus, o Conselho Nacional de Justiça aprovou um documento com recomendações para agilizar processos de adoção ou até mesmo a reintegração às famílias de origem.
“Conforme a situação mais alarmante foi passando, surgiu uma nova situação: escolas fechadas e equipamentos de assistência social trabalhando em horários alternativos. Reduziram-se as formas de a notícia da violência chegar”, diz Renata.
PEDIDOS ANÔNIMOS
Se os abrigos ficaram mais vazios, os pedidos de socorro não pararam de chegar. Em 2020, as denúncias por telefone de violações contra crianças e adolescentes no Brasil cresceram quase 10%, de acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Caíram os registros policiais – estupro de vulneráveis, por exemplo, teve queda de 11%, segundo o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Mas de acordo com especialistas, em muitos casos, responsáveis pelas vítimas, além de terem medo, não conseguem se desvencilhar dos agressores para ir à delegacia.
No fim de agosto, estivemos em dois abrigos no estado de São Paulo. Segundo funcionários, as unidades não conseguiram preencher nem mesmo metade das 30 vagas oferecidas nos últimos meses. Em um dos abrigos, apesar da estrutura com quatro dormitórios, brinquedoteca, balanço e espaço para pintar e desenhar, havia apenas três crianças. Uma delas era a recém-nascida Vitória*, abandonada pela mãe, usuária de drogas, ainda no hospital.
Integrante do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel Castro diz que é urgente a retomada dos serviços presenciais nas varas de Infância e Juventude, conselhos tutelares e serviços de assistência.
“Fazer atendimento de crianças em situação de risco e de violência não funciona por videochamada. O agressor está ao lado da vítima, que se sente constrangida de falar”, diz o advogado.
O Serviço de Acolhimento Aldeia São José, em Campo Largo (PR), tem capacidade para abrigar 20 crianças e adolescentes. Na série histórica, registrou média de atendimento de 15 a 18 abrigados. Segundo a coordenadora do serviço, a socióloga Maria Cristina Pieruccini, o espaço está hoje com seis abrigados:
“Isso significa que há uma importante redução na violação de direitos de crianças e adolescentes? Infelizmente, não. Com a recente retomada das aulas presenciais, já recebemos uma criança, cuja violação de direito foi percebida pela professora”, conta.
ATENÇÃO AOS SINAIS
Em março, depois de quase um ano sem frequentar aulas presenciais, Vera*, de 12 anos e também do Paraná, foi chamada pela escola para um teste de aprendizagem. Quando a pedagoga perguntou como tinham sido os meses de pandemia em casa, a menina desandou a chorar. A profissional estranhou e a encaminhou para uma unidade de saúde. Lá, descobriram que ela estava sendo assediada, manipulada e abusada sexualmente por um homem de 52 anos
Para conquistar seus pais e ficar próximo da menina, ele dava presentes à família. O caso está sendo investigado pelo Ministério Público. Se ficar comprovado que o acusado enganava a família, ela permanecerá em sua casa. Caso contrário, poderá ser mandada a um abrigo.
A promotora Renata Rivitti reforça que a escola precisa estar ainda atenta para identificar as comunicações não verbais das crianças, porque nem sempre elasse expressam dentro da lógica dos adultos, como Vera.
“As crianças não necessariamente falam, mas demonstram, seja por comportamento agressivo, disperso, depressivo. O que precisamos nos preocupar é: estamos preparados para ouvir a criança, dar credibilidade para o que ela fala e dar atendimento?”, indaga a promotora.

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