MINHAS EXPERIÊNCIAS COM A VERDADE
Em um mundo onde a palavra parece perder a importância, o exercício da autenticidade pode ser uma vantagem competitiva
Toda pessoa que escreve (e sobretudo lê) certamente já passou pela experiência de se deparar com um texto, às vezes apenas uma única frase, e lamentar-se de não ter sido sua autora. Isso aconteceu comigo inúmeras vezes, mas desta vez foi um título que me arrebatou: Minhas Experiências com a Verdade. Nada mais nada menos que a biografia de Gandhi. Pudesse eu escrever uma autobiografia, não haveria título melhor. De fato, “Minhas experiências com a verdade” poderia ser o título da autobiografia de qualquer pessoa que possui a autenticidade como uma de suas forças pessoais.
Considerada na Antiguidade grega como uma característica sagrada, autenticidade era o principal critério a ser levado em conta na formação de homem-excelência e, durante certo período, também foi condição essencial na outorga do título de cidadão na sociedade helênica. Nessa época, todo jovem que passasse pelo sistema educacional arcaico da Paideia deveria fazer o solene juramento a Eros: “Nada dirás ou farás que não seja em nome de Eros”. Mas qual seria a relação de tal juramento com a autenticidade? Para respondermos a essa pergunta precisamos lembrar que para o grego antigo qualquer coisa seria considerada sagrada do ponto de vista de Eros (ou seja, do ponto de vista erótico) se revelasse a verdade do ser. Vale dizer também que, nesse sentido, o conceito arcaico de prostituição em muito se diferia do seu significado atual, na medida em que correspondia ao ato de se fazer qualquer coisa que não revelasse a verdade do ser, ou seja, em termos mais heidegerianos, qualquer coisa que ocultasse ou impedisse a manifestação da exata correspondência entre essência e aparência. Sim, porque nessa época (quem diria?) a autenticidade era erótica.
Quando Atenas passou a oferecer o título de cidadão a qualquer sujeito que lutasse em seu nome e voltasse vivo, deu-se o início do fim de toda uma cultura que primava pela excelência do caráter.
Mas ainda assim a deterioração da autenticidade na cultura ocidental se deu lentamente. Ainda no século XIX, propriedades eram negociadas no que se costumava chamar de “fio do bigode”, ou seja, na simples palavra dos envolvidos.
Concordo com o sociólogo Zygmunt Bauman, que afirma vivermos hoje os “tempos líquidos”, ou seja, uma sociedade do descartável na qual nada é feito para durar. Contudo, creio que mais grave do que o tempo líquido de Bauman (ou talvez até mesmo como consequência dele) seja o que chamo de palavras líquidas. Palavras esvaziadas de sentido, esvaziadas de verdade, palavras que mais escondem do que revelam, palavras que o vento leva, como afirma o dito popular.
São as palavras líquidas que tornam imperativo que qualquer contato no escritório seja formalizado por um e-mail. Estamos perdendo a capacidade de confiar nas pessoas, deixando de ouvi-las com atenção porque, afinal de contas, tudo será registrado por escrito para consulta posterior. E porque tudo será registrado, apenas o registrado se torna real. E, assim, a palavra se liquefaz, tornando-se dependente da escrita e dos contratos que jazem num mar de firmas reconhecidas.
É nesse contexto que os autênticos se sobressaem. Adoradores da antiga arte de fazer valer a sua palavra, mostram-se como são, vivenciam seus valores e fazem o que dizem tanto quanto o que assinam. Eis uma excelente vantagem competitiva!
Mas não nos deixemos levar por exageros. Talvez a primeira lição que uma pessoa autêntica deva aprender seja a de diferenciar sinceridade de “sincericídio”. Em minha autobiografia imaginária esse certamente seria um longo capítulo.
LILIAN GRAZIANO – é psicóloga e doutora em Psicologia pela USP, com curso de extensão em Virtudes e Forças Pessoais pelo VIA Institute on Character, EUA. É professora universitária e diretora do Instituto de Psicologia Positiva e Comportamento, onde oferece atendimento clínico, consultoria empresarial e cursos na área.