O LANCHE
As imaginações que assustam. Pensei numa festa – sem bebida, sem comida, festa só de olhar. Até as cadeiras alugadas e trazidas para um terceiro andar vazio da Rua da Alfândega, este seria um bom lugar. Para essa festa eu convidaria todos os amigos e amigas que tive e não tenho mais. Só eles, sem nem sequer os entre amigos mútuos. Pessoas que vivi, pessoas que me viveram. Mas como é que eu subiria sozinha pelas escadas escuras até uma sala alugada? E como é que se volta da Rua da Alfândega ao anoitecer? As calçadas estariam secas e duras, eu sei.
Preferi outra imaginação. Começou misturando carinho, gratidão, raiva; só depois é que se desdobraram duas asas de morcego, como o que vem de longe e vai chegando muito perto; mas também brilhavam as asas. Seria um chá – domingo, Rua do Lavradio – que eu ofereceria a todas as empregadas que já tive na vida. As que esqueci marcariam a ausência com uma cadeira vazia, assim como estão dentro de mim. As outras sentadas, de mãos cruzadas no colo. Mudas – até o momento em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse o que eu me lembro. Quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de criadas.
— Pois te desejo muita felicidade – levanta-se uma – desejo que você obtenha tudo o que ninguém pode te dar.
— Quando peço uma coisa – ergue-se a outra – só sei falar rindo muito e pensam que não estou precisando.
— Gosto de filme de caçada. (E foi tudo o que me ficou de uma pessoa inteira.)
— Trivial, não, senhora. Só sei fazer comida de pobre.
— Quando eu morrer, umas pessoas vão ter saudade de mim. Mas só isso.
— Fico com os olhos cheios de lágrimas quando falo com a senhora, deve ser espiritismo.
— Era um miúdo tão bonito que até me vinha a vontade de fazer-lhe mal.
— Pois hoje de madrugada – me diz a italiana – quando eu vinha para cá, as folhas começaram a cair, e a primeira neve também. Um homem na rua me disse assim: “É a chuva de ouro e de prata.” Fingi que não ouvi porque se não tomo cuidado os homens fazem de mim o que querem.
— Lá vem a lordeza – levanta-se a mais antiga de todas, aquela que só conseguia dar ternura amarga e nos ensinou tão cedo a perdoar crueldade de amor. – A lordeza dormiu bem? A lordeza é de luxo. É cheia de vontades, ela quer isso, ela não quer aquilo. A lordeza é branca.
— Eu queria folga nos três dias de carnaval, madame, porque chega de donzelice.
— Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Lá vem a lordeza: te desejo que obtenhas o que ninguém pode te dar, só isso quando eu morrer. Foi então que o homem disse que a chuva era de ouro, o que ninguém pode te dar. A menos que não tenhas medo de ficar toda de pé no escuro, banhada de ouro, mas só na escuridão. A lordeza é de luxo pobre: folhas ou a primeira neve. Ter o sal do que se come, não fazer mal ao que é bonito, não rir na hora de pedir e nunca fingir que não se ouviu quando alguém disser: esta, mulher, esta é a chuva de ouro e de prata. Sim.
CLARICE LISPECTOR