DESAFIO PARA QUEM FICA
Profissionais que estão trabalhando em empresas que passam por processo de recuperação judicial sofrem com a instabilidade, mas podem desenvolver novas competências

Mesmo com uma participação de 30% na venda de livros no Brasil, a Saraiva não conseguiu frear o aumento de suas dívidas, que chegaram a 675 milhões de reais em 2018. Pressionada por seus credores (principalmente os bancos), fornecedores e editoras de livros, a empresa não viuoutra saída senão entrar em recuperação judicial. Na esteira desse processo, 700 profissionais foram demitidos e nove lojas foram fechadas.
A recuperação judicial é um recurso usado pelas companhias que estão com problemas financeiros. Seu objetivo é evitar a falência e proteger funcionários, fornecedores e clientes. Avianca, Copel, Oi, Livraria Cultura e Odebrecht são outras organizações que, ao lado da Saraiva, engrossam a lista da RJ – sigla usada pelo mercado para se referir à recuperação judicial. Em 2018, 1.408 empresas usaram esse recurso. O recorde foi registrado em 2016, quando 1.863 empresas foram afetadas pelo cenário recessivo que ganhou força em 2014, segundo informa o Indicador Serasa Experian de Falências e Recuperações.
Como os processos desse tipo costumam vir acompanhados de demissões e cortes de recursos, é comum o pânico se instalar entre os funcionários quando a RJ é declarada. Os empregados temem por seu cargo e, pior, pela falência da companhia, que pode fechar as portas sem recursos nem sequer para pagar as rescisões trabalhistas. Mas esse é o pior cenário. Normalmente, as empresas têm chance real de se reerguer, do contrário não teriam o pedido de RJ aprovado pelo juiz.
AS DIFICULDADES
Aqueles que estão próximos da direção tendem a sentir diretamente a pressão dos credores e, principalmente, do administrador judicial – um profissional destacado pelo juiz para acompanhar de perto o cumprimento das obrigações assumidas pela companhia. “Esse administrador não gerencia o negócio, mas acaba interferindo bastante na operação, especialmente, quando avalia que as medidas adotadas afetarão o pagamento das dívidas”, diz Walfrido Jorge Warde Júnior, advogado especializado em litígios empresariais e sócio- fundador do Warde Advogados. Valedizer que, embora seja nomeado pela Justiça, o administrador judicial não é um servidor público. A função é exercida por advogados, economistas, administradores e contabilistas que se cadastraram para exercer o cargo. Os demais funcionários de uma companhia em RJsofrem, em geral, com a deterioração das condições de trabalho. Não é incomum, por exemplo, o parcelamento do salário em três ou até mais vezes. A remuneração pode inclusive ser reduzida mediante negociação. Carlos Roberto Marques, de 37 anos, trabalhou por dois anos na Passaredo Linhas Aéreas. Com sede em Ribeirão Preto(SP), a companhia conseguiu se recuperar depois de passar por um processo que levou cinco anos, de 2012 a 2017, e envolveu uma dívida de 200 milhões de reais. Entre março de 2016 e março de 2018, Carlos trabalhou como executor de escala de tripulantes, cargo que envolvia organizar os turnos de trabalho de pilotos e comissários, mas a experiência foi complicada. “Nunca houve reunião, comunicados. Também nunca se importaram em nos motivar. Eu ficava pelo amor à aviação e pela falta de oportunidades no mercado. Em Ribeirão Preto, não há outra companhia aérea”, diz o profissional, demitido junto com outros 160 colegas, e teve a rescisão paga em 12 parcelas.
Eduardo Busch, diretor executivo da Passaredo Linhas Aéreas, recomenda que muitos empregados precisaram fazer “sacrifícios pessoais” e suportar “grandes pressões externas” para a companhia se reerguer.
“O processo de recuperação judicial da Passaredo não foi uma opção foi uma necessidade para que a empresa pudesse continuar operando. Não foi um processo fácil, mas hoje vemos que foi essencial para que pudéssemos seguir em frente”, afirma.
BALANÇO PESSOAL
A decisão de suportar os desafios de uma RJ é uma questão-chave nessa discussão. “É preciso avaliar tanto a disposição para lidar com os problemas naturais do processo como também a possibilidade de crescer profissionalmente com os desafios”, diz Maria Eduarda Silveira, gerente de recrutamento da Consultoria Robert Half. Como a folha de pagamento é uma das primeiras a passar pela tesoura, as equipes tendem a ficar mais enxutas. “Muitas vezes, isso é sinônimo de mais trabalho, mas pode ser uma oportunidade para ser mais produtivo”, diz Maria Eduarda.
Na opinião de Marcos Theisen, de 33 anos, trabalhar como analista financeiro da Teka, fabricante de roupas de cama mesa e banho, que está em RJ desde 2012, é uma baita oportunidade. Formado em gestão financeira e contratado pela empresa há quatro anos. Marcos tem a oportunidade de lidar com processos mais complexos do que se a companhia estivesse num período normal – como títulos e empréstimos de curto prazo que necessitam de negociações especificas. “Para mim, esse é um motivo a mais para ficar.” Enredada em um processo que se arrasta há sete anos, a companhia sediada em Blumenau (SC) está pagando o salário em três parcelas e ainda parou de recolher o FGTS. Por essas questões, o analista não teme a demissão. “Contratar alguém ficou muito mais difícil, e isso deve desmotivar a empresa a levar adiante qualquer plano de substituir um profissional por outro”, diz. Procurada, a gestora judicial da Teka, Fabiane Esvicero, preferiu não comentar as declarações do funcionário e a situação da empresa. Ela foi nomeada para o cargo depois que a Justiça determinou o afastamento do diretor Frederico Kuehnrich Neto por supostas irregularidades na gestão.
TRANSPARÊNCIA
A comunicação é uma das questões mais importantes em uma situação de recuperação judicial. Quando ela é falha ou inexiste, o clima de insatisfação tende a crescer e a boataria corre solta, o que prejudica a produtividade. Portanto, se por um lado os profissionais devem evitar se contaminar pelas conversas de corredor, por outro as companhias precisam comunicar bem as equipes.
Na Saraiva, por exemplo, foi criado um plano de comunicação para o público interno. “O intuito é trazer o máximo de transparência à condução do atual momento da empresa”, diz Henrique Cugnasca, diretor financeiro e de RH da Saraiva. Dentro desse pacote, a livraria produziu uma cartilha para explicar o beabá da recuperação judicial e esclareceu, por meio de diversos materiais, como esse processo afetaria a rotina. “No dia em que a empresa protocolou o pedido de RJ, os colaboradores foram os primeiros a ser informados”, diz Henrique. A Saraiva também ampliou o programa Café com o Presidente, que consiste em um bate-papo do executivo com os empregados das lojas; do escritório e do centro de distribuição. Os encontros passaram a acontecer mensalmente, e não mais a cada dois meses. Em paralelo, foram criados um cronograma de newsletters mensais específicas sobre o tema e um endereço de e-mail para as pessoas mandarem perguntas. Esse canal vem sendo usado pelos interessados em saber em que situação se encontra o processo da Saraiva, que atualmente emprega 2.400 pessoas. O primeiro plano foi apresentado aos credores em fevereiro de 2018, porém, apenas no final de agosto o pedido foi aprovado. Em paralelo, um novo conselho foi anunciado após o afastamento do presidente da empresa, Jorge Saraiva Neto, a pedido dos credores.
EM BUSCA DE INFORMAÇÕES
Quando a empresa não adota uma postura transparente com seus profissionais, eles podem solicitar informações diretamente com o administrador judicial, segundo Odair de Moraes Jr., fundador do escritório Moraes Jr. Advogados. Ao longo dos últimos 20 anos, ele e sua equipe atenderam mais de 1.000 empresas em processo de reestruturação
Desde que haja abertura, os especialistas sugerem aos funcionários que tentem obter informações sobre a possibilidade de seus cargos serem extintos. Ainda que a maior parte das demissões ocorra no início da RJ ou até mesmo antes de ela ser formalizada (muitas empresas fazem isso para postergar o pagamento das rescisões), novas demissões costumam ocorrer com frequência. Sentindo a instabilidade da empresa em que trabalhava, Mayra Reis , de 35 anos, conseguiu a resposta que queria. Seu chefe na fabricante Alpex Alumínio, com sede em São Paulo, não só confirmou que a companhia entraria em RJ, o que aconteceu em 2014, como também adiantou que ela seria demitida assim que o processo fosse formalizado. A então gerente de comunicação e marketing suspendeu o plano de comprar a casa própria e colocou em ação seu plano B. Alguns meses depois da demissão, ela fundou a própria agência, a Alma Gestão de Comunicação e Marketing, para atender empresas de pequeno porte. Curiosamente, muitos de seus clientes também estão em RJ. “Essa vivência, que tinha tudo para ser negativa, trouxe resultados positivos para mim pois eu consegui enxergar a importância da área de comunicação para as empresas nesse momento”, diz Mayra. “Também tive ganhos pessoais. Como empreendedora, fiquei mais atenta aos custos, ao gerenciamento de fornecedores e aos contratos com funcionários e com terceiros. A experiência na Alpex me deixou alerta.”

QUESTÃO DE PERFIL
Trabalhar em uma empresa em recuperação judicial pode ser estressante, especialmente se os problemas financeiros forem graves. Mas é possível aprender a conviver com as turbulências e até crescer com os desafios. Maria Eduarda Silveira, gerente de recrutamento dá consultoria Robert Half, Lista cinco competências comportamentais essenciais para quem está passando pela experiência.
COMPROMETIMENTO
Identifique e supere obstáculos de forma proativa, cumpra os prazos, vá além do seu trabalho e saia da zona de conforto.
MATURJDADE
Mantenha o equilíbrio diante de situações complexas. Tenha foco no trabalho e não se deixe abalar por possíveis fofocas no ambiente corporativo.
APRENDIZADO
Esteja aberto a ouvir e aprender, adquirindo, assim, experiência e conhecimento.
RESILIÊNCJA
Lide com situações de crise e de oposição sem desanimar nem deixar abalar seu rendimento.
PRODUTIVIDADE
Esse é um momento importante para a empresa e a alta produtividade é fundamental. Ponha a mão na massa e participe da execução dos trabalhos a fim de potencializar as entregas da área.
COMO FUNCIONA A RJ
Quando uma empresa perde a capacidade de pagar suas dívidas e de manter suas operações, ela pode solicitar a recuperação judicial. Companhias de diferentes portes e setores têm direito ao recurso, porém, é preciso demonstrar que o problema financeiro é temporário, portanto, passível de recuperação. É disso que vai depender a aprovação do pedido de RJ pelo juiz. Após o sinal verde da Justiça, as empresas têm as seguintes etapas a cumprir:

PLANOB
Em 60 dias, é preciso apresentar um plano aos credores com a descrição de ações para sanar problemas financeiros. Em geral, as medidas envolvem corte de custos, o que pode incluir demissões. As companhias também informam o prazo em que farão as ações e quais os resultados esperados. A apresentação desse plano e a realização de assembleia com os credores são considerados dois avanços da lei de recuperação de empresas e falências, de 2005, pois isso deu às empresas flexibilidade para negociar seus débitos. Antes dela, quando estava em vigência a lei das concordatas, as pendências financeiras eram parcelas em condições fiscais preestabelecidas.

CONVENCIMENTO DOS CREDORES
Após a apresentação do plano de recuperação, os credores têm 180 dias para aprova-lo. Para isso, a empresa deve realizar assembleias para reunir todos os envolvidos no processo, ou seja, todas as pessoas (físicas e jurídicas) para as quais ela deve dinheiro. Em geral, os credores buscam renegociar as condições de pagamento apresentadas pelas empresas. Por causa disso, é natural que sejam feitos ajustes no plano e, consequentemente, novas assembleias. Também é comum que o prazo de 180 dias se alongue. Quanto mais complexa a operação, quanto maior o número de envolvidos, maior é o risco de essa etapa se estender.

MÃO NA MASSA E COBRANÇA
Com a aprovação do plano, começa o período de fiscalização. O juiz determina um administrador judicial (aj) para supervisionar o cumprimento do plano e, eventualmente, denunciar irregularidades. Em geral, esse período leva dois anos, o que não quer dizer que toda a dívida será paga nesse intervalo – quando o montante é alto, a empresa consegue um prazo de 15 a 20 anos para se acertar com os credores.

RECUPERAÇÃO OU FALENCIA
O período de fiscalização, que são os dois primeiros anos, é fundamental para o juiz avaliar o andamento do processo. Caso a empresa não consiga colocar o plano em prática e pagar as dívidas no prazo estipulado, o juiz pode decretar sua falência. nasituação oposta, ele pode decretar o fim da rj considerando o cumprimento dos dois primeiros anos do plano. Ou seja, ainda que a empresa tenha outras dívidas para saldar (em prazos que chegam a 20 anos), o processo de RJ pode se encerrar com base numa avaliação parcial.
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