PRONTOS PARA GUERREAR?
A necessidade de viver em sociedade modula a agressividade humana; já o confronto rompe barreiras psicológicas, o que nos faz desqualificar o adversário e trata-lo como presa a ser caçada; ainda assim pesquisas apontam para uma conclusão surpreendente: empreender grandes batalhas não é o destino de nossa espécie
A agressividade contribui para determinar identidade social, limites simbólicos e fronteiras territoriais. Embora não seja programado geneticamente, esse aspecto importante da evolução se manifesta de diferentes formas na interação de indivíduos semelhantes ou de espécies distintas, por exemplo, por meio da luta, da competição, da fuga, da hostilidade e da submissão. Os correspondentes emocionais desses comportamentos são reações de medo, raiva, ataque e ameaça – que ativam uma ampla série de respostas físicas e variações de humor coordenadas pelo sistema nervoso simpático e parassimpático.
Essas respostas podem ser mais facilmente interpretadas nos mamíferos como gatos e cachorros, e em primatas não humanos. Isso foi evidenciado por Charles Darwin, em sua famosa obra A expressão das emoções no homem e nos animais (lançada pela Companhia das Letras no Brasil). O naturalista inglês comparou as diversas expressões faciais dos animais – particularmente os movimentos dos músculos e a postura da cabeça – com as dos homens para esclarecer a natureza das respostas e dos efeitos emocionais e somáticos como raiva e medo.
Entretanto, observar comportamentos num ambiente natural é muito diferente de acompanhá-los no laboratório. Se na presença de sinais ambientais conhecidos ou de comportamento combativo com indivíduos da mesma espécie o animal pode evitar a agressividade, optando pela fuga, no laboratório, em geral, escolhe o enfrentamento, o que torna a situação um tanto artificial. Em outros termos, as condições anormais que induzem agressividade no laboratório (isolamento compulsório, administração de choques elétricos etc.) alteram os dados experimentais, tornando-os pouco confiáveis.
Todavia, não há uma definição suficientemente clara, capaz de abarcar a vasta gama de comportamentos agressivos no animal e no homem. Se para o mundo animal podemos definir como agressivo qualquer comportamento que vise prejudicar ou ofender outros membros da mesma espécie, para o humano é bastante difícil especificar que comportamentos poderiam ser definidos como agressivos, violentos e, sobretudo, em que situações um comportamento poderia ser interpretado como uma forma de oposição, de defesa ou de protesto. Além disso, os comportamentos agressivos humanos frequentemente assumem características simbólicas extremamente sofisticadas, expressões permeadas por elementos da cultura ou explicitamente violentas no plano psíquico.
No âmbito neurobiológico, a violência e a agressividade estão associadas à ativação de estruturas subcorticais e do sistema nervoso autônomo que controla os demais órgãos internos do organismo (visceral autônomo), ao passo que a violência “culturalizada” (não menos destrutiva) se baseia predominantemente em estruturas corticais. Na realidade, os fatores que determinam violência e agressividade não são apenas neurobiológicos e individuais, mas também coletivos e socioculturais. Em geral, o reconhecimento e a elaboração das mensagens de alarme que anunciam atos violentos são efetuados por estruturas complexas como o córtex pré-frontal, a amígdala, o hipocampo, o córtex cingulado anterior e outras áreas cerebrais específicas. Parece, no entanto, que os correlatos neurobiológicos da agressividade se encontram no sistema límbico e no tronco encefálico. Por exemplo, diversos estudos demonstraram que estimulações elétricas leves no sistema límbico de ratos os levam a atacar animais próximos. Além disso, investigações sobre a influência do sistema neuroendócrino identificaram a testosterona (hormônio sexual masculino) como um importante modulador de comportamentos agressivos, o que também explicaria, segundo alguns pesquisadores, a maior agressividade do homem em relação à mulher. Além disso, altas taxas de testosterona foram encontradas em mulheres particularmente violentas.
Embora a relação causal entre hormônio e agressividade não esteja clara, pois não se sabe se ela poderia induzir altos níveis do hormônio ou vice-versa, pesquisas recentes apontam para a possível influência, mesmo que indireta, de fatores genéticos sobre a agressividade e sua relação com problemas no desenvolvimento cognitivo – por exemplo, déficit de atenção – que podem resultar em condutas anti-sociais como demonstrou o neurologista Antônio Damásio, da Universidade do Sul da Califórnia. Em 1939, num estudo histórico, Heinrich Kluver e Paul Bucy, da Universidade de Chicago, descobriram que a retirada cirúrgica da amigdala reduzia a agressividade a hostilidade em animais e nos pacientes psiquiátricos violentos.
Esses resultados indicam existência de centros que exercem efeito inibidor e excitante da agressividade localizados no hipotálamo, no núcleo caudado, no septo e na amigdala, tanto no animal quanto no homem. E, um experimento famoso, em 1965, José Delgado, da Universidade Yale, demonstrou que a estimulação elétrica a distância dos centros inibidores cerebrais é eficaz a ponto de parar abruptamente o ataque de um touro. Por outro lado, alterações do sistema límbico (estrutura cerebral arcaica que recebe impulsos inibidores das regiões neocorticais) podem estar na base do comportamento fortemente violento de alguns indivíduos.
Essa sintomatologia configuraria a síndrome do descontrole, cuja origem seria uma patologia cerebral não especificada. Apesar destas evidências, estudos atuais indicam relações mais complexas entre a agressividade e o funcionamento cerebral. A antiga concepção que atribuía a regulação de funções a áreas específicas do cérebro, ou a um grupo isolado de neurônios, é claramente insuficiente à luz das mais recentes pesquisas neurofisiológicas. Parece muito mais plausível supor a existência de circuitos funcionais, constituídos por vias e áreas nervosas diferentes, que contribuem para a regulação de funções específicas. Todavia, embora a realidade seja mais intrincada do que julgavam os estudiosos que empreenderam as primeiras pesquisas nessa área, questionar a existência de centros da agressividade não implica necessariamente excluir a ação de circuitos neurais. Pesquisadores que usam ressonância magnética nuclear funcional (fMNR), tomografia computadorizada por emissão de fóton único (Spect) e tomografia por emissão de pósitrons (PET) orientam as pesquisas para a identificação de circuitos cerebrais responsáveis por comportamentos impulsivos e violentos.
Se a agressividade é um fenômeno biológico, individual e interno ao grupo, a guerra é, antes, um resultado da evolução cultural que ultrapassa determinantes biológicas, fazendo predominar condicionamentos culturais que levam o homem a matar. Diferentemente do confronto bélico, a agressividade é indispensável à sobrevivência, à evolução, às funções adaptativas e ao crescimento psicológico da criança – que tem de explorar o ambiente, avaliar a si mesma, descobrir o que lhe é permitido. Para o etólogo austríaco Eibl-Eibesfeld, a natureza da guerra é cultural, ao passo que a agressividade é um impulso inato, que podemos orientar em direção à evolução ou à autodestrutividade. O que impele o homem a guerrear são questões críticas como crescimento demográfico, devastação do ambiente, destruição da biodiversidade, competição violenta, ameaça de destruição em massa, recusa violenta da tradição, doutrinamento exasperado.
No curso da evolução, os grandes predadores desenvolveram forte inibição do uso das próprias armas naturais contra os membros da mesma espécie, sob pena de extinção. Essa inibição é praticamente ausente no homem, desprovido, como é, de armas naturais que lhe permitam matar rapidamente uma grande presa. Em outras palavras, na história humana faltou uma pressão seletiva que impulsionasse o desenvolvimento de mecanismos inibidores da matança de indivíduos da mesma espécie. Somente a invenção de armas que atingem de longe e de maneira anônima conseguiu inverter esse equilíbrio entre a capacidade de matar e as inibições sociais.
Proliferou ao longo da história, valores éticos como tolerância e solidariedade não foram suficientes para mitigar a destrutividade humana desencadeada por instintos arcaicos como a defesa de si, de seus pares e territórios. Quando, por mutação cultural, os mecanismos inibidores enfraquecem, o conflito transforma-se em guerra. Assim, se de um lado a agressividade individual entre os membros de um grupo é modulada por adaptações filogenéticas para evitar a intensificação destruidora, de outro a agressividade entre os grupos se expressa por meio do ferimento ou da matança dos inimigos com o uso de armas.
A guerra moderna, porém, não se realiza apenas com equipamentos que matam à distância. Também recorre uma doutrina voltada a menosprezar o inimigo. Isso demonstra como a agressividade entre os grupos se transformou num produto da evolução cultural, embora mobilize tendências inatas. O fenômeno contemporâneo baseia-se inteiramente na organização e na disciplina: o uso de armas que matam rapidamente permite eliminar o inimigo antes que ele envie sinais ou apelos capazes de inibir a violência. Para prevenir isso o inimigo é visto pelos combatentes como uma presa, uma caça ou um ser inferior. A finalidade é eludir os sistemas de inibição de agressividade, culturalmente mediados, que poderiam neutralizar o desdobramento do impulso para a guerra.
Nos conflitos que implicavam ataques a distâncias curtas, os combatentes poderiam perceber sinais de submissão e identificar-se com o adversário, o que poderia induzir sentimentos de compaixão capazes de frear comportamentos hostis. Freud formulou a hipótese de que os mecanismos de inibição da agressividade para com os semelhantes têm um fundamento psicobiológico. Com base em uma comparação etnográfica, ele notou que em diferentes populações primitivas os guerreiros que matavam seus semelhantes eram considerados imediatamente impuros e tinham de cumprir ritos de purificação para ser reinseridos em sua comunidade. “De todas essas proibições nos damos conta de que no comportamento para com os adversários também se exprimem outros impulsos além dos exclusivamente hostis. Vislumbramos expressões de arrependimento, de estima para com o inimigo, de remorso por ter lhe tirado a vida. Diria até que nesses selvagens esteja vivo o mandamento não matarás, como escreve Freud.”
Em tribos nilóticas da Etiópia, os sentimentos que animam um guerreiro vencedor são representados, como noutras culturas, por uma mistura de culpa e de orgulho pela ação realizada.
De um lado, pela admiração por parte do grupo a que pertence, de outro, pelo medo dos espíritos dos mortos e da vingança de seu grupo. O guerreiro que matou é obrigado a isolar-se numa choupana, enquanto as mulheres dançam à sua volta para propiciar o seu renascimento numa vida social normal. Em certos casos, o vencedor chega a assumir o nome do vencido, que, deste modo, se faz reviver simbolicamente. Em Etologia da guerra, Eibl-Eibsfeld relatou um notável volume de exemplos que indicam que a inibição para matar é inata. Além disso, ele mostrou que a ela se sobrepõem impulsos para matar inimigos fortemente culturalizados, mas incapazes de anular “o filtro das normas biológicas”. Nos conflitos tradicionais, nos quais prevalece o contato direto, um soldado não pode ignorar a natureza humana do adversário. Não raro, isso provoca um conflito interior, uma espécie de remorso. Por esse motivo, no início de um conflito, quando a inibição à matança ainda está muito presente, adotam-se para superá-la por meio da psicologização do conflito estratégias voltadas a desumanizar o inimigo e a impedir qualquer contato interpessoal. A proibição de falar com pessoas da tribo inimiga, que vigora em diversas populações primitivas, ou as mais sofisticadas estratégias atuais dos governos, para separar as operações de guerra do controle da consciência, como normas que visam a “não-fraternização”, com uso de armas a distância, proibição de ouvir a rádio inimiga e assim por diante, ilustram a estratégia de distanciamento.
CAMINHO DA PAZ
Durante a Primeira Guerra Mundial registraram-se inúmeros episódios de confraternização entre soldados de exércitos inimigos, os quais podiam pôr em risco os objetivos da guerra caso o ódio organizado viesse a faltar. Isso diz muito sobre a ambiguidade do comportamento humano: por um lado, os soldados arremessam-se uns contra os outros, pondo em campo todas as pulsões destrutivas da luta, quer inatas, quer suscitadas pela doutrinação; por outro, entram em conflito consigo mesmos quando, num confronto corpo a corpo, levam a cabo, pessoalmente, o homicídio.
A guerra como conflito armado entre grupos é tão antiga quanto o homem. Entretanto, em tempos pré-históricos os homens enfrentavam-se com utensílios rudimentares para conquistar territórios de caça e colheita, limitando-se a incursões repentinas que visavam surpreender pela tática da caça. Atualmente, os exércitos enfrentam-se numa espécie de “guerra total”. Como instrumento de política internacional, a guerra tem a finalidade de subjugar o inimigo. Alguns estudiosos chegaram até a defini-la como uma criação da civilização, na esteira da notória “continuação da política com outros meios”. Diferentemente dos embates tradicionais, a guerra deflagrada por conflitos entre Estados conferiu uma enorme importância a aspectos ideológicos e psicológicos. O recrutamento militar, por exemplo, só é eficaz se precedido por uma guerra psicológica preventiva.
A guerra fria – que só permaneceu fria por causa do risco de holocausto nuclear – foi um longo conflito. Mais do que qualquer outro, privilegiou batalhas psicológicas e ideológicas com o objetivo de enfraquecer a oposição adversária, reduzir a disposição de compreender a ideologia do inimigo e, ao mesmo tempo, repudiar seu sistema de valores. Por isso, antes de qualquer outra coisa, as tradições que conferem identidade à sociedade inimiga são repudiadas. Além disso, explora-se a eterna tensão entre a aspiração à liberdade do indivíduo e o poder do Estado, conflito que tem raízes na aspiração à autonomia e na rebelião contra o domínio ligado a essa aspiração.
Por outro lado, é possível incentivar as pessoas à desobediência simplesmente lhes oferecendo outra autoridade como alternativa mais segura. Até os profetas da antiautoridade erguem num pedestal modelos a ser honrados. Uma guerra desse gênero, não cruenta, pode ser vencida pelo grupo dominante quando este incute o seu próprio modo de pensar, seus próprios códigos, sua ideologia na mente dos adversários. Os slogans são as armas típicas dos conflitos ideológicos, precisamente como diz o termo alemão Schlagwort (de schlaghen = bater e wort= palavra). Esses conflitos podem ser incubadores de uma guerra quente, mas com maior frequência são apenas a forma humana do conflito como tal, pois proporcionam uma rejeição ao “inimigo” e podem levar à cisão da comunidade, destruição dos espaços de pluralidade e até mesmo a mudanças culturais.
Para os grupos dominantes, a guerra não é uma patologia, mas uma função: superá-la significa, em primeiro lugar, compreendê-la. Não basta mostrar aos homens a crueldade da guerra para que desistam dela. São ilusórias tanto as ideias de “pacifismo choroso”, de Aldous Huxley, quanto as ideias do “bom selvagem” e de sociedades animais idílicas. Uma cultura da paz tem de se livrar de qualquer preconceito antropocêntrico e reconhecer a realidade instintiva que condiciona nossos comportamentos. Antes de qualquer outro, o caminho da resolução não violenta dos conflitos provém, justamente, do mundo animal: as lutas pela posição e pelo território entre os vertebrados raramente levam à matança de um indivíduo da mesma espécie porque o conflito assume formas ritualizadas. Da destrutividade originária resta apenas um rastro e o caminho da pacificação permanece aberto.
UM INSTINTO COMO OUTRO QUALQUER?
Avaliar a importância relativa dos fatores inatos, por um lado, e dos fatores motivacionais e ambientais, por outro, tem sido decisivo na análise da agressividade humana. É necessário perguntar, com efeito, se a agressividade deve ser considerada um instinto que é parte da natureza animal ou um comportamento dependente de outros fatores, como a motivação, a frustração, a imitação e a aprendizagem. Com base nas teorias instintuais, entre elas a psicanálise, o comportamento agressivo vive de dinâmicas espontâneas, ou seja, elas se acumulam lentamente no organismo até alcançar níveis-limite que permitem uma descarga por meio de uma ação agressiva.
Para Konrad Lorenz, considerado o criador da etologia, a agressividade pode ser comparada a qualquer outro instinto, uma vez que é desencadeada por estímulos específicos e entra em ação por meio de comportamentos estereotipados, motivada por um impulso interno. Ora, o que ocorre se a tensão interna aumenta sem que um impulso alimentar, sexual ou agressivo seja satisfeito por falta de um estímulo desencadeador ou porque ele encontra obstáculo? É provável que o impulso aumente a um nível tal que qualquer estímulo não específico provoque descarga ou que, na falta de estímulos ambientais, aquele impulso se manifeste sob formas e expressões agressivas não reativas. Qual é, então, o significado da agressividade intra-específica? Em termos evolutivos, ela poderia significar vantagens relativas a posse de território, seleção sexual, autodefesa, cuidado com a prole e assim por diante. Para os etólogos, a agressividade estaria submetida ao controle de mecanismos inibidores, de modo a não se tornar disfuncional ou perigosa para a espécie. Após examinar uma ampla variedade de casos de aversão e frustração, em 1941, o pesquisador John Dollarde destacou a importância das situações reativas para os comportamentos agressivos do ser humano. Todavia, é preciso perguntar se reagimos desse modo em decorrência de frustrações ou as frustrações têm dinâmicas motivacionais autônomas. Parece mais plausível aceitar a segunda hipótese.
A emotividade – função adaptativa determinada pelas estruturas sociais – é o terreno necessário para a passagem da frustração à agressividade. Além dos aspectos naturais, foram investigadas também as determinantes culturais da violência. Mas nesse ponto as coisas não parecem fáceis. Diversas pesquisas realizadas com gêmeos e crianças, adotadas, com o objetivo de avaliar a predominância da conduta agressiva, não produziram resultados coerentes. A investigação do ambiente social evidenciou como a pobreza, a superlotação das periferias metropolitanas, a ausência de espaços para qualquer forma de atividade recreativa e a carência de higiene causam uma sensação de abandono e desespero que pode provocar comportamentos agressivos e desejo de desforra social. Um papel semelhante é desempenhado por crises econômicas, guerras, fome, doenças, que podem estar relacionadas a fenômenos ainda mais evidentes de criminalidade.
O ALTO PREÇO DOS CONFLITOS
Vítimas de traumas neurológicos sofrem declínio cognitivo mais rapidamente que a população em geral. Um estudo recente realizado nos Estados Unido com veteranos da guerra do Vietnã em processo de envelhecimento, com traumas causados por balas ou estilhaços alojados no cérebro, oferece um quadro sombrio do futuro de seus colegas que retornam do Iraque com ferimentos semelhantes, segundo o neurocientista Jordan Grafman, do Instituto Nacional de Transtornos Neurológicos e Trauma, que conduziu pesquisa equipe de Grafman descobriu que as funções cognitivas desse pacientes decaem quase duas vezes mais rapidamente que a de seus colega que não se feriram dessa forma. Porém, aqueles que tinham um alto grau de inteligência antes do trauma parecem ter ficado mais “protegidos” contra essa decadência. A educação tem também efeito protetor. “Quanto mais elevado o nível cultural da pessoa, mais apta se mostra para se recuperar” salienta o neurocientista. Os pesquisadores identificaram variáveis genéticas que podem ajudar a prever a deterioração pronunciada. As conclusões provavelmente se aplicam a combatentes do Iraque com o mesmo tipo de ferimento. “Sabemos que, em algum grau, essas pessoas sofrerão declínio cognitivo mais acelerado. Resta-nos oferecer-lhes acompanhamento neurológico adequado”, diz Grafman. Segundo os pesquisadores, dois terços dos soldados americanos atendidos no Walter Reed Medical Center ao retornar do Iraque já sofrem as consequências dos traumas neurológicos.
ENTRE PULSÕES DE VIDA E DE MORTE
Sigmund Freud, que num primeiro momento considerou as condutas agressivas como reação à busca frustrada do prazer, formulou a teoria das pulsões – sendo a de morte representada por Thanatos, antagonista do instinto de vida, Eros. Neste esquema, a primeira aproxima o indivíduo do estado inorgânico, opõe-se ao impulso vital, Eros. Segundo o modelo, o comportamento agressivo teria, por um lado, o objetivo de dirigir essa força para fora do organismo e, por outro, o de reduzir o estado de tensão. Na perspectiva freudiana, a guerra revela o homem primitivo que vive em nós, aquele que transforma o estrangeiro em inimigo a ser eliminado e banaliza a morte. Essa alteração na percepção da realidade de modo que as perdas pareçam estranhas ou irreais contrasta com a elaboração saudável do luto. Em dezembro de 1914, no início da Primeira Guerra Mundial, em carta ao amigo psiquiatra holandês Frederik van Eeden, publicada em 17 de janeiro de 1915, na revista The Amsterdammer, Freud escreveu: “Prezado colega, sob a influência desta guerra permito-me recordar-lhe duas assertivas que a psicanálise introduziu e que decerto contribuíram para tomá-la impopular com o público”. Do estudo dos sonhos e dos atos talhos das pessoas sadias, e também dos sintomas neuróticos, a psicanálise tirou a conclusão que os impulsos primitivos, selvagens e maus da humanidade não desapareceram de maneira alguma, mas continuam vivendo, ainda que recalcados, no inconsciente de cada pessoa·, esperando a oportunidade de reativar-se. A psicanálise, além disso, ensinou-nos que nosso intelecto é algo frágil e dependente, bibelô (futilidade, passatempo) e instrumento de nossas pulsões e de nossos afetos, e que somos obrigados a agir ora com inteligência ora com estupidez, conforme o querer de nossas atitudes íntimas e de nossas resistências. Pois bem, veja o que está acontecendo nesta guerra, veja as crueldades e as injustiças das quais se tomam responsáveis as nações mais civilizadas, a má-fé com que se comportam diante de suas próprias mentiras e iniquidades; e observe enfim como todos perderam a capacidade de julgar com retidão: é forçoso admitir que ambas as assertivas da psicanálise eram exatas”. Freud vislumbra no homem impulsos destrutivos primários prontos a reaflorar quando falham as ligações afetivas da comunidade.
A propensão gregária da maioria das pessoas supera a improvável submissão de suas pulsões à razão. Para Freud a salvação reside no (frágil) processo de civilização. Claro, as pulsões de morte não são neutralizadas pelas de vida. Aliás, uma interiorização excessiva, em outras palavras, uma intensa incorporação inconsciente das pulsões destrutivas não é desejável. Não obstante, para o criador da psicanálise, uma civilização deve ter em máxima consideração a potencialização do intelecto e a interiorização da agressividade, com todas as vantagens e os perigos que daí derivam. A guerra se contrapõe a todas as conquistas psicológicas alcançadas por meio da civilização. E é por isso que tudo o que favorece o ato de civilizar age também contra a guerra
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