O comprometimento costuma surgir de forma repentina, sem relação com a congestão nasal
A perda de olfato costuma ser um dos primeiros sintomas da Covid-19. No último número da Nature, Michael Marshall faz uma revisão da literatura sobre o tema. Um inquérito realizado entre mais de 8 mil pacientes revelou que 41% se queixavam de deficiência olfativa. Na Universidade de Teerã, a aplicação de um teste em cem pacientes com Covid mostrou que 96% apresentavam algum grau de disfunção. Em 18% a perda era total.
O comprometimento do olfato costuma surgir de forma repentina, sem guardar relação com a ocorrência de congestão nasal. Muitos autores consideram o déficit olfativo um marcador importante para o diagnóstico da infecção.
Embora o mecanismo seja mal conhecido, as evidências sugerem que esteja relacionado com o processo inflamatório provocado pelo vírus ao infectar as células sustentaculares, aquelas que dão suporte aos neurônios responsáveis pela captação dos estímulos olfatórios nas mucosas nasais. A ação do vírus nessa população celular deixaria os neurônios mais vulneráveis e com dificuldade de acesso aos nutrientes.
Menos conhecida, a perda do paladar é geralmente associada à do olfato. Como a combinação de odor, gosto e quimiostese (sensações que surgem quando compostos químicos ativam receptores relacionados com a dor, o toque e a percepção térmica) é essencial para a identificação dos sabores, a perda do olfato interfere com o paladar.
Na maioria das vezes, a sensibilidade aos odores retorna em algumas semanas. Um estudo mostrou que em um mês o olfato voltou ao que era antes em 72% dos casos, e o paladar em 84%. O acompanhamento de 202 pacientes durante um mês, no Guy’s Hospital, de Londres, encontrou números menos favoráveis: em apenas 49% houve retorno do olfato à normalidade em 30 dias. Em 41% do total de participantes a recuperação foi parcial, nesse período.
Alguns pacientes evoluem, no entanto, com alterações mais duradouras do olfato e do paladar. Outros, à medida que se recuperam, queixam-se de que os odores ficaram pervertidos, de que tudo tem cheiro de azedo ou de apodrecido. Conhecido como parosmia, esse fenômeno pode persistir por meses. Em alguns casos, a perda completa do olfato (anosmia) também pode durar vários meses. É possível que seja definitiva em casos mais raros, atribuídos à morte dos neurônios olfatórios.
A perda do olfato tem consequências danosas. Publicado em 2014, um estudo mostrou que a anosmia duplica o risco de acidentes, como o de ingerir alimentos deteriorados ou inalar gás do fogão. Além da relação com o paladar, o olfato é importante no relacionamento que a mãe estabelece com o recém-nascido. Perda de olfato aumenta o risco de depressão.
Não existem medicamentos para tratar o déficit olfativo. Há uma experiência limitada com o uso de corticoides para reduzir o processo inflamatório na mucosa nasal. Treinamento realizado com a exposição a diversos odores distintos tem sido empregado para acelerar a recuperação.
Clima seco e quente favorece a maturação das uvas no rio Grande do Sul e promete uma produção de vinho de qualidade internacional
Desde que os imigrantes italianos trouxeram na bagagem, além das mudas de videira, a cultura do vinho para o Rio Grande do Sul, há um sonho na região: produzir bebida de qualidade internacional. Entre 1875 e 2020, quase 150 anos depois, a produção evoluiu significativamente. Mas a adaptação das uvas viníferas, aquelas usadas na elaboração de vinhos finos, sempre foi um empecilho para que o brasileiro pudesse desfrutar bebidas equivalentes a congêneres europeus feitos em território nacional. Isso pode estar perto de mudar – ao menos é o que asseguram enólogos e agrônomos. A safra de uva vinífera colhida no início deste ano no estado está sendo considerada a melhor de todos os tempos. Isso graças à estiagem que atingiu em cheio os vinhedos por lá durante o verão.
A safra deverá apresentar uma queda na produção, em média, de 20%, devido a fortes chuvas que caíram em outubro e afetaram a floração das plantas. A quebra parcial, porém, será revertida em qualidade. “A partir do início de dezembro, ocorreu em todo o estado uma estiagem, um período de pouca chuva, com tempo seco, o que é excelente para a maturação das uvas. Quando isso acontece, sempre temos safras de qualidade, como as de 1999, 2005 e 2018. A de 2020 desponta como a melhor dos últimos vinte anos”, explica Mauro Celso Zanus, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho. O tempo seco durante as fases de formação do grão, de maturação do cacho e até o momento da colheita favorece o amadurecimento da uva, aumentando a concentração de açúcar. Outro ponto determinante para o bom desenvolvimento do vinhedo é a amplitude térmica, com dias bem quentes e noites frias, o que estimula a formação dos aromas. Esses fatores juntos resultam na maturação ideal tanto do açúcar quanto dos taninos – substâncias que conferem textura e adstringência à bebida – da uva, o que levará à produção de um vinho mais encorpado, mais estruturado, mais elegante e fácil de beber.
Um dos principais parâmetros que mostram a qualidade superior da safra de 2020 é a graduação do açúcar na fruta, que neste ano atingiu, em média, 3 graus acima do registrado em temporadas normais, segundo o padrão Babo, a medida que representa a quantidade de açúcar a cada 100 gramas de suco. “Em 2020, conseguimos nos nossos vinhedos uma marca histórica de uma média de 24 graus Babo, quando o normal é alcançarmos 21 graus. O que tivemos nesta safra é o máximo da qualidade que pode ser atingida em qualquer outro país produtor de uva na elaboração de um vinho tinto seco”, relata Edegar Scortegagna, enólogo da vinícola Luiz Argenta.
Com uma matéria-prima de primeira linha, a questão agora é saber qual será a qualidade dos vinhos elaborados no Rio Grande do Sul. “Se o enólogo seguir o caderno da escola de enologia, com a menor intervenção possível, vamos ter bebidas de qualidade superior diferenciada, com vinhos mais encorpados e com grande potencial de guarda”, explica o presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), Daniel Salvador. Atualmente, a tecnologia à disposição das empresas é muito melhor do que aquela utilizada quinze anos atrás, na safra histórica de 2005. As vinícolas inovaram no manejo dos vinhedos, trocaram as mudas, investiram nos equipamentos e nas técnicas de vinificação.
A grande maioria dos vinhos tintos produzidos nesta safra deverá estar disponível para o consumidor daqui a dois anos. Alguns tintos jovens e os brancos poderão ser encontrados no começo de 2021. “Como estamos falando de bebidas de qualidade elevada, as empresas devem envelhecer esses vinhos por, no mínimo, um ano antes de engarrafá-los, com passagens por barricas de carvalho. E ainda assim serão vinhos de guarda, que poderão ser armazenados por mais dez anos a quinze anos”, analisa Adriano Miolo, presidente e enólogo da vinícola gaúcha Miolo.
De fato, o caminho para que uma ótima uva se torne um excelente vinho é considerado longo. “O maior defeito que vejo em safras de grande potencial é quando os enólogos ficam entusiasmados com a qualidade da fruta e acabam fazendo a extração em demasia, o que deixa os vinhos sobrecarregados de taninos e duros, demorando anos para arredondar”, afirma o especialista Dirceu Vianna Junior, o único Master of Wine brasileiro, que vive em Londres. Não há dúvida de que 2020 é uma safra com extraordinário potencial para os vinhos brasileiros. Resta torcer para que a mão do homem agora aproveite o que a natureza concedeu.
Pela bênção que os retos suscitam, a cidade se exalta, mas pela boca dos perversos é derribada (Provérbios 11.11).
O justo não é abençoado apenas, ele suscita bênçãos. O justo não é somente receptáculo da bênção, é também seu veículo. O sábio diz que, pela bênção que os retos suscitam, a cidade se exalta. Deus abençoa toda uma cidade por causa da presença de seus filhos nela. Se houvesse dez justos em Sodoma, Deus não a teria destruído. Contudo, a boca dos perversos é uma bomba explosiva. A cidade é derribada quando segue os conselhos insensatos dos perversos, quando dá ouvidos às suas loucuras. A boca do perverso hoje é a mídia sem o temor de Deus, a qual despeja o lixo da degradação moral nos ouvidos da cidade. Com raras exceções, as telenovelas, os filmes e os programas de entretenimento, baseados no mentiroso argumento de estarem retratando a realidade, promovem e instigam toda sorte de corrupção dos valores, solapando assim os alicerces da família e destruindo os valores morais que devem sustentar a sociedade. Uma cidade nunca é verdadeiramente forte se o povo que nela habita está rendido ao pecado e à devassidão. É a virtude, e não o vício, que exalta a cidade; é a bênção decorrente do justo, e não a maldição oriunda do perverso, que levanta as colunas de uma sociedade justa e feliz.
O home office prometia liberdade aos funcionários, mas a realidade é diferente. Cada vez mais empresas usam softwares para monitorar os colaboradores
A adoção do home office por empresas de diversos setores levou a uma série de análises apressadas. Alguns especialistas disseram que os escritórios sumiriam do mapa (claro que houve uma transformação, mas o desaparecimento está longe). Outros afirmaram que o trabalho a distância impulsionaria os comércios locais, já que, ao ficar mais tempo em casa, as pessoas realizariam maior parte de suas compras nos arredores da residência. Isso não ocorreu por uma simples razão: com a explosão do comércio eletrônico, foram as corporações gigantescas que mais se expandiram. A terceira projeção imprecisa diz respeito à liberdade para cumprir a labuta diária. No trabalho a distância, cravaram os observadores corporativos, os profissionais teriam liberdade para fazer o que bem entendessem, usufruindo do tempo da maneira que considerassem adequada. Nada poderia ser mais falso do que a última premissa. No home office, os funcionários nunca foram tão vigiados pelas grandes companhias, que passaram a usar a tecnologia para fazer marcação cerrada nos colaboradores. De certa forma, os chefes jamais estiveram tão atentos aos movimentos dos subordinados – cada e-mail, conversa, site visitado ou relatório está na mira de quem manda.
A americana Microsoft, uma das maiores empresas de tecnologia do mundo, criou um software para medir a produtividade dos funcionários. Chamado Productivity Score, ele identifica tudo o que o colaborador faz durante o dia. Com o equipamento, os chefes sabem quantos e-mails profissionais foram enviados, quem desliga a câmera em reuniões e até o tempo que a pessoa fica na frente do computador. Para tornar o sistema mais rigoroso, os funcionários receberiam uma pontuação de acordo com as informações coletadas pelo software. A ideia da Microsoft parecia tão radical – e recebeu tantas críticas – que a companhia decidiu voltar atrás, abandonando o tal sistema de pontuação. “A liberdade de trabalho é uma ficção do home office”, diz o consultor Eduardo Tancinsky. “Por mais que o mercado tenha mudado nos últimos anos, ainda é ousado demais permitir que o empregado disponha da maneira que quiser do seu tempo, incluindo não fazer nada.”
Há uma certa ironia no fato de as empresas de tecnologia, supostamente mais abertas às inovações impostas pelos ventos da transformação, serem as mais preocupadas em controlar os funcionários. A também americana Zoom, que viu seu programa de videoconferência se tornar uma febre na pandemia, adotou o home office em larga escala, mas usa um software de monitoramento para acompanhar o expediente de sua equipe.
No Vale do Silício; o lar das empresas de tecnologia dos Estados Unidos, programas como o Sneek, que tira fotos com a Webcam, viraram a febre do momento. O funcionário que trabalha em casa é fotografado em períodos predeterminados – a cada cinco, quinze ou vinte minutos, a depender da rigidez do chefe -, como se fosse uma máquina programada apenas para trabalhar. O Sneek se tornou um sucesso global. Segundo a empresa, a base de usuários semanais cresceu 250% desde o início da pandemia. É mais ou menos isso o que faz a TimeDoctor, empresa que se define como “um instrumento para empresas e indivíduos se tornarem mais produtivos”, mas que no fundo consiste apenas em um software que capta fotos periódicas da webcam. Outro programa, criado pela startup Einable, usa inteligência artificial para calcular a rapidez com que os colaboradores em home office executam diferentes tarefas.
A crescente vigilância suscita alguns questionamentos. Até que ponto as empresas têm o direito de controlar o que os funcionários fazem no expediente? Segundo a nova Lei Geral de Proteção da Dados (LGPD), o monitoramento deve ser limitado ao uso de dados relacionados ao trabalho e não é permitido que as companhias tornem públicas as informações obtidas através da vigilância. A avaliação de desempenho do empregado, porém, não está prevista nas novas regras da LGPD. De todo modo, dizem os especialistas, a recente legislação precisa de tempo para ser assimilada pelas empresas e pela sociedade.
De todas as transformações impostas pela pandemia do coronavírus, o home office talvez seja a mais efetiva. O trabalho a distância, de fato, é uma tendência que veio para ficar. Não significa, porém, que o ambiente de trabalho será revirado do avesso. Há desafios pela frente. Como será possível construir uma cultura empresarial se parte dos funcionários trabalha a distância? A construção de um DNA corporativo deve-se, sobretudo, ao relacionamento entre as equipes, à troca diária entre chefes e subordinados, aos acertos – e erros – compartilhados. Como fazer isso se as pessoas estão separadas? Como criar redes colaborativas permanentes se cada profissional está em seu próprio canto? A tecnologia encurta caminhos e é forte aliada, mas não traz respostas para tudo. Esse é um desafio que as empresas terão de superar.
Nas origens da psicanálise é possível identificar influências do misticismo heterodoxo judaico; a despeito das perspectivas contrárias à religião tradicional, obras como Totem e tabu abordam temas de espiritualidade
Muito mais profunda e abrangente do que em geral se acredita foi a influência da religião, em seus diversos modos e dimensões, na vida e na obra de Sigmund Schlomo Freud – nascido em uma família judia asquenazita em 6 de maio de 1856, em Freiberg, Áustria (hoje território da República Tcheca) e falecido em Londres, em 23 de setembro de 1939, aos 83 anos. A ideia de que o fundador da psicanálise foi um intelectual completamente fechado na cultura cientificista e secularizada não guarda correspondência com os fatos. Em sua autobiografia, por exemplo, ele fala da familiaridade com as histórias da Bíblia antes mesmo de ter aprendido a escrever e do quanto este conhecimento teve um efeito duradouro sobre seus interesses. Ainda mais importante, a religião foi objeto de uma grande parte de seus artigos, ensaios e cartas. Entre os livros, três de suas obras mais importantes tratam diretamente do tema: Totem e tabu (1913); O futuro de uma ilusão (1927); e Moisés e o monoteísmo (1939).
Em Totem e tabu, sustentou a controvertida e petulante tese de que toda religião não passa de uma forma coletiva de neurose – ou de culpa pelo homicídio da figura paterna. Em O futuro de uma ilusão, escreve que a religião deriva de desejos humanos. Não haveria nela, portanto, elementos transcendentes ou revelados, e Deus representaria apenas um anseio infantil pela figura paterna. Em suma, expunha uma visão negativa da natureza e do papel da religião: ou era uma ilusão ou uma expressão coletiva de neurose.
Finalmente, em Moisés e o monoteísmo, leva ao paroxismo sua fixação no tema do homicídio do pai ao apresentar o profeta e revelador da tradição judaica, Moisés, como um gói (não-judeu) – no caso, um egípcio! O homem que revelou a Torá e trouxe as Tábuas da Lei – código de conduta depois ‘universalizado” ao ser incorporado tanto pelo cristianismo como pelo islamismo -, o mesmo Moisés que libertou seu povo do faraó, cerca de 1.300 anos antes de Cristo, não seria um judeu. Além disso, segundo a visão altamente idiossincrática de Freud, ele foi morto pelos próprios israelitas, supostamente revoltados com a imposição da circuncisão! Ao matar tal “pai” e, depois, para fazer frente ao sentimento de culpa resultante, os judeus passam a seguir a religião de Moisés como forma de expiação de sua culpa. Nesta desconstrução iconoclasta da figura do pai por excelência da tradição judaica, Freud pretende pôr em xeque, por meio de uma simples “canetada”, uma tradição milenar.
ANTIPATIAS
Neste momento é importante ressaltar a pouco conhecida relação de Freud com o misticismo heterodoxo, que dá conta do intenso intercâmbio do inventor da psicanálise com formas dissidentes da cabala, especialmente com o legado das escolas sabataístas (século XVII) e frankista (século XVIII), que agitaram profundamente as comunidades judaicas na Europa e no Oriente Próximo. Ou seja, se Freud de fato nutria uma visceral antipatia e implicância em relação a religiões tradicionais – sobretudo a ortodoxia mosaica -, por outro lado tinha conhecimentos abrangentes e interesse por toda forma de heterodoxia e de movimentos de rebeldia religiosa. Esse fato é atestado por seu grande apreço por técnicas cabalistas como a de interpretação dos sonhos e sua imensa coleção de ídolos e estátuas de divindades diversas, que atulhavam seu escritório e seu consultório em Viena em oposição, diga-se, ao primeiro mandamento da lei mosaica, que diz: “Não terás outros deuses além de Mim; não farás para ti imagem de escultura, nem figura alguma. (…) Não adorarás tais coisas” (Êxodo, 20:3-7).
A vida de Freud pode ser dividida em dois períodos principais. O conhecimento que temos do segundo abarcando o século XX – é bastante extenso. Caracterizam-no palavras-chave como neurologia, psiquiatria ou ciência. Quanto ao período inicial, abrangendo o século XIX, há muito pouca informação disponível. Tal período pode ser simbolizado por palavras-chave como diáspora judaica, gueto, cabala e, inevitavelmente, anti-semitismo. Foi nesse ambiente que ele nasceu e cresceu, e do qual recebeu influências que marcariam todo o seu posterior percurso existencial e intelectual.
Um exemplo dessa influência duradoura é o prefácio que escreveu para a edição hebraica de Totem e tabu, publicada em Jerusalém, em 1939, ano de sua morte. “Eu me encontro tão distanciado da religião paterna como de toda outra religião, mas nunca reneguei a conexão com meu povo. Se alguém, contudo, me perguntasse o que ainda há de judeu em mim, dado que renunciei a tantos elementos comuns, eu responderia: ainda muitas coisas, talvez todo o principal.”
Essas palavras foram compostas, provavelmente, para prevenir possíveis reações contrárias, dadas as críticas violentas aos “elementos comuns aos quais ele renunciou” – referência ao seu abandono da tradição de seus pais – , mas também para indicar que, por trás da rejeição à ortodoxia mosaica, havia ainda uma ligação com correntes subterrâneas do misticismo judaico.
ARQUIVOS DESTRUÍDOS
Pouco se sabe desse período inicial, entre outras razões porque o próprio Freud destruiu seu arquivo de documentos pessoais pelo menos duas vezes, em 1885 e em 1907. Alguns eruditos perguntam qual a razão para isso. A resposta mais óbvia é que a ação visava resguardar tanto informações puramente pessoais como também, inevitavelmente, documentos que poderiam indicar visões diferentes da oficial que se queria propagar. Além disso, os documentos posteriores a esta data têm permanecido rigorosamente guardados nos Arquivos Freud e só têm se tornado disponíveis a um círculo restrito de psicanalistas “ortodoxos”.
Seja como for, uma inovação tão revolucionária como a psicanálise, que ademais transmitiu sua influência para diversos e variados domínios da cultura contemporânea, cujos conceitos e práticas se infiltraram em praticamente todo tipo de atividade, não poderia ser obra exclusiva de uma única mente, como observou o autor americano Whitall Peny em Challenges to the secular society (EUA, 1996). Em Moisés e o monoteísmo, o próprio Freud notou que “tudo o que existe hoje deriva de alguma corrente do passado”. Esta corrente, subjacente às origens da psicanálise, refere-se à própria tradição judaica, sobretudo ao seu ramo místico, a cabala. E, mais particularmente ainda, suas correntes heterodoxas ou antitradicionais.
As origens familiares de Freud eram hassídicas, escola mística estabelecida no leste europeu no século XVIII. Sua maior figura é o Baal Shem Tov (1 700-1760), o “mestre do nome sagrado”, fascinante “homem santo” que renovou o judaísmo com seu fervor místico e sua ênfase na oração, na música e na dança como suportes contemplativos. O hassidismo, contudo, como apontou Gershom Scholem em O nome de Deus (1999), não ficou imune às teses subversivas de escolas heterodoxas como o sabataísmo e o frankismo.
Sabatai Zevi (1626-1676), originário de Esmirna (atual Turquia), declarou-se o “messias” e causou uma torrente de entusiasmo entre as comunidades judaicas da Europa e do Oriente Médio. Costumava assinar suas cartas com um prosaico “o Senhor, seu Deus. Sabatai Zevi”. A despeito da excomunhão que sofreu por parte do rabinato de Jerusalém, contou com o apoio entusiástico das massas e entrou em Istambul, capital do então poder o Império Otomano, com o propósito de converter o sultão ao seu tipo especial de judaísmo. Pagou caro, contudo, por sua ousadia e irrealismo: foi ele quem teve de trocar de lado, apostatando para o Islã sob o nome de Mehmet Effendi.
A frustração que tal fraude causou no mundo judaico foi enorme, mas o anarquismo religioso e a ruptura com a tradição, incluindo a contestação da moral sexual, como pregados por Sabatai Zevi, deixaram sequelas.
No século seguinte, outro rebelde, Jacob Frank (1726-1791), se auto proclamou seu continuador; é quase desnecessário informar que também se dizia o “messias” e que, igualmente, foi excluído da comunidade judaica. O credo e o culto frankista desafiavam a lei mosaica. Seu “fazei o que quiseres, é tudo da lei” era posto em prática especialmente mediante ritos de “liberação dos instintos sexuais”. Com suas teses condenadas, Frank acabou por simular, como Zevi, adesão a outra religião, desta vez o catolicismo e, assim, sua influência extrapolou os limites do mosaísmo, abrangendo a Europa central e oriental, onde suas ideias circulavam com desenvoltura no século XIX, quando Freud nasceu. “Eu vim ao mundo para livrá-lo de todas as leis e estatutos em vigor”, Frank costumava dizer. Nas palavras de Gershom Scholem, Jacob Frank foi uma das mais sinistras figuras do messianismo judaico, mescla de “déspota, profeta popular e impostor ardiloso”.
Tais correntes heterodoxas exerciam influência latente no judaísmo, levando seus adeptos à crença de que teriam “superado” a Torá. David Bakan, professor de psicologia da Universidade de York, sustenta, no estimulante Freud and the lewish mystical tradition (Dover, 2004), que foram essas correntes que influenciaram diversas concepções freudianas. Freud operou desse modo uma secularização da mística judaica, e a psicanálise pode ser vista como tal secularização.
SEGREDOS DO OFÍCIO
Mas, se foi de fato assim, por que não há referências explícitas a este ponto em sua obra? A resposta que Whitall Peny e David Bakan dão é convergente: uma das causas foi o anti-semitismo; a outra, o orgulho de Freud, sua “personalidade messiânica” como notou Bakan. Freud temia que no contexto de racismo, latente ou explícito, vigente na Europa de então, indicar suas fontes judaicas, ainda que não ortodoxas, exporia desnecessariamente a psicanálise a forte, e talvez fatal, oposição. Não foi por outra razão que ele insistiu tanto na unção de Carl Gustav Jung, o único não-judeu do círculo inicial da psicanálise, como seu sucessor e presidente da Sociedade Psicanalítica Internacional. A defecção de Jung causou tanto mais desgosto em Freud na medida em que ele acreditava que o suíço “salvaria a psicanálise”. Outro fator a ser levado em conta é que o segredo e a dissimulação fazem parte da cabala; tanto da ortodoxa como das correntes heterodoxas. A cabala, além disso, inclui o que, na falta de um termo melhor, poderíamos chamar de “visão consagrada” da sexualidade. Entre suas visões figura a da união conjugal como uma emanação da união in divinis entre o Divino e sua Shekinah (a presença Divina), protótipo perene de todas as polaridades complementares que se manifestam no mundo do tempo e do espaço – como a terra e o céu, o dia e a noite, o esforço e o descanso, o masculino e o feminino, etc.
O par oposto e completamente formado pelo polo masculino e pelo feminino constitui, assim, uma resultante da primeira polarização que ocorre no Princípio Supremo, entre Absoluto e Infinito. É dessa dualidade principial que deriva todas as oposições distintas e complementares que fazem o mundo terreno. Dessa maneira, a sexualidade humana é encarada simbolicamente como conectada à “atividade” eterna da Divindade. Não é por outra razão que a intrínseca sacralidade atribuída ao sexo, nas civilizações tradicionais, é cercada de ada de rígidas condições e sanções.
SENTIDOS OCULTOS
É por isso também que o código mosaico – ao qual Freud, como judeu, estava originalmente vinculado – coloca os desvios sexuais como particularmente graves. Não surpreende, portanto, que as transgressões do código mosaico estejam no centro de interesse da teoria e da prática psicanalítica.
Freud, dessa forma, não inovou propriamente ao trazer a sexualidade para o centro da cena. Mas, ao efetuar essa operação, tornou-a profana, dessacralizou-a, desvinculando-as de seus elos com o domínio transcendente. Assim, despojou a sexualidade humana de sua aura espiritual.
Nessa secularização, Freud foi tão longe a ponto de, em outra operação iconoclasta, “desconstruir” a figura do “pai” da tradição de seus antepassados como fez em Moisés e o monoteísmo, uma obra exótica e excêntrica. Nessa operação transparece algo das ideias antitradicionais e “anarquistas” de Sabatai Zevi e Jacob Frank.
Outro exemplo de influências esotéricas heterodoxas pode ser visto no interesse do fundador da moderna psicanálise pela técnica cabalista da gematria – estudo dos significados ocultos dos números e das letras -, curiosamente usada pelos adeptos de Sabatai Zevi para “provar” sua condição messiânica. Freud valeu-se da gematria na interpretação dos sonhos, na técnica da “livre associação” e, também, na análise dos atos falhos. A visão reducionista da religião tradicional – pois o freudismo tem a pretensão de tudo reduzir a fatores psíquicos e de excluir o intelectual e o espiritual, encarando as expressões da espiritualidade como consequência de uma “sexualidade reprimida” – não se limitou ao campo judaico, podendo-se constatar operações similares também em relação ao cristianismo. A começar pela ideia da “sucessão apostólica”.
Cristo transmitiu aos apóstolos autorização para ouvir confissões e “perdoar” pecados, o que envolve a transmissão de poderes espirituais. Mediante iniciação religiosa – o sacramento da Ordem -, certos indivíduos são investidos do sacerdócio e recebem tais “poderes”. Freud, por assim dizer, adaptou, segundo seu método “desconsagrador”, tal concepção: um psicanalista só se habilita a pôr em prática as metodologias específicas da profissão, segundo a concepção freudiana, se for antes psicanalizado ou “iniciado” por outro analista.
O princípio pelo qual todo psicanalista deve antes ser analisado levanta a incômoda questão, como observou René Guénon em O reino da quantidade e os sinais dos tempos (1989), acerca da fonte a partir da qual os primeiros analistas obtiveram os poderes que transmitem. Ou seja, quem ocupou o primeiro lugar na fila e passou os “segredos” do ofício a Freud. E se ele foi o primeiro da série, autocolocava-se então, ainda que de forma “cabalisticamente” dissimulada, como o fundador de uma nova linhagem pararreligiosa?
Técnicas do confessionário católico foram igualmente reelaboradas pela psicanálise, também em modo secularizante. O caráter rigorosamente individual da sessão psicanalítica, a tese da transferência – sejam pecados ou complexos – , o alívio da culpa e até o próprio posicionamento físico dos envolvidos são alguns exemplos de paralelismos com o confessionário, a despeito, é claro, de os valores e objetivos envolvidos serem radicalmente distintos.
LUGAR DO SACERDOTE
Para a maioria dos psicólogos modernos, escreveu Titus Burckhardt em Modem psychology, a moralidade tradicional – facilmente confundida com uma moral puramente social ou convencional – não passa de uma espécie de barragem psíquica, útil ocasionalmente, mas, mais comumente, um obstáculo ou mesmo algo prejudicial ao desenvolvimento saudável do indivíduo. Essa opinião é propagada especialmente pela psicanálise, que se tornou amplamente aplicada em alguns países, onde usurpou na prática a função que em outros lugares pertence ao sacramento da confissão. O psicanalista substitui o sacerdote e a irrupção de complexos toma o lugar da absolvição. Na confissão ritual, o sacerdote não é senão o representante impessoal – necessariamente circunspecto e cauteloso – da Verdade transcendente que julga e perdoa; o penitente, ao admitir seus erros e pecados, funde tendências psíquicas que esses pecados manifestam. Ao arrepender-se, ele separa a si mesmo desses erros e pecados e, ao receber o perdão sacramental, sua alma é virtualmente reintegrada e recentrada em seu equilíbrio primitivo. No caso da psicanálise, o homem expõe suas entranhas psíquicas, não diante de um representante do sagrado, mas de um profissional profano. Ele não se distancia das profundezas caóticas e obscuras de sua alma, as quais o psicanalista revela ou remexe, mas, pelo contrário, aceita-as como suas, pois deve dizer para si mesmo: “Isto é o que eu sou na realidade”.
Essa tendência secularizante, de que a psicanálise é apenas um exemplo, pode ser percebida no ideário moderno em geral como intuito de cortar as “asas metafísicas” do homem, como observou Frithjof Schuon. Suspenso, por assim dizer, entre dois planos de realidade, o físico e o metafísico, o homem é reduzido pelo freudismo, na prática ao primeiro. Isso, contudo não surpreende se se tem em conta a antropologia reducionista: para o Freudismo, o homem em última instância é o id, a parte instintiva, animal e irracional oculta por trás da “máscara” da racionalidade – id que constitui, assim, o “cerne de nosso ser”, como Freud sustentou, por exemplo em Outlineof pshychoanalysis.
Mas a pergunta é inevitável: se a racionalidade é apenas “uma espécie de fachada”, como Freud escreveu em O mal estar na civilização, para uma animalidade mais fundamental e a custo mantida sob controle – animalidade que é “o cerne de nosso ser” – como fica a própria psicanálise, dado que ela é também uma doutrina que se quer racional? É ela condenada por seu próprio veredito, como argutamente apontou Schuon, ou seria a única doutrina a escapar como um passe de mágica dessa animalidade tornada inescapável?
CURA DE ALMAS
Outro autor a quem as contradições do freudismo tampouco passaram despercebidas foi o romeno Mircea Eliade. Em sua autobiografia, No souvenirs, o historiador das religiões afirma que “a psicanálise justifica sua importância dizendo que ela nos força a olhar para a realidade e aceita-la. Mas que tipo de ‘realidade?’ Uma realidade condicionada pela ideologia materialista da própria psicanálise”. Em Cultural fashions and history of religions, Eliade critica as “histórias de horror apresentadas como fato histórico objetivo” num dos principais textos sobre religião de Freud, Totem e tabu – livro este que constitui um autêntico roman noir, frenético para Eliade.
A conclusão a que se chega após ponderar esses elementos é que, a despeito de sua violenta hostilidade à religião tradicional, Freud utilizou diversos conceitos e procedimentos derivados dela. Os princípios para a análise dos sonhos e dos atos falhos, por exemplo, devem à gematria cabalista. A sessão psicanalítica é devedora de técnicas do confessionário. A ideia da “transmissão psicanalítica” vem da “sucessão apostólica” católica. O conceito do complexo de Édipo foi tirado da antiga religião grega. O papel central atribuído à sexualidade deriva da cabala. Influências essas, ou melhor, “empréstimos ” esses nunca reconhecidos por Freud. Envolvendo toda essa atmosfera, percebe-se também um viés mental antinômico e negacionista, herdado – inconscientemente? – de correntes heterodoxas do judaísmo como o sabataísmo e o frankismo. Em síntese, a despeito de sua perspectiva virulentamente contrária à religião tradicional, o freudismo paradoxalmente se atribui papéis que de fato são espirituais, como o alívio da culpa e a cura de almas, sendo que um autêntico médico da alma sempre foi visto, em todas as civilizações, como um pontifex ou um medicine-man, um genuíno mestre espiritual. Esses papéis obrigam a psicanálise a se colocar na prática como um substituto da religião ou uma contrafação da espiritualidade, posando simultaneamente de descobridora de fatos que já eram conhecidos.
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