DUPLO SENTIDO
A cumplicidade entre gêmeos é um privilégio, mas pode distanciá-los do convívio social; cabe a pais e educadores incentivar o desenvolvimento autônomo, sem prejudicar o intenso vínculo afetivo dessas crianças

O nascimento de gêmeos sempre provoca alguma inquietação nos pais e nos parentes mais próximos. As dúvidas geralmente dizem respeito a situações corriqueiras, como por exemplo, a ordem de amamentar os bebês, a conveniência de vesti-los ou não com as mesmas roupas, a forma de lidar com as diferenças e as semelhanças. O chamado “efeito dupla” sempre interessou psicólogos, que reconhecem no vínculo de irmãos nascidos da mesma gestação uma relação diferente da existente entre não-gêmeos O tipo de identificação que existe entre dois indivíduos que compartilharam simultaneamente o mesmo útero vai além das questões biológicas O convívio no ventre materno pode ter importantes implicações nessa fase, anterior ao nascimento.
Embora se dediquem também ao estudo de casos de trigêmeos, de quadrigêmeos ou de quíntuplos, os especialistas mostram maior interesse pelas duplas, cujo vínculo afetivo, segundo eles, seria mais intenso. Um dos aspectos analisados nessas pesquisas é a afinidade e a sincronicidade dessas relações. A psicóloga Piera Brustia, professora da Universidade de Turim, alerta para o fato de que a cumplicidade estabelecida entre os gêmeos pode tornar o relacionamento entre eles tão exclusivo a ponto de distanciá-los de outras crianças. Nesses casos, o acompanhamento psicológico é fundamental para prevenir o isolamento, segundo a psicóloga.
As adolescentes italianas Ângela e Marina são idênticas e participam de uma associação coordenada por Brustia que promove encontros entre famílias com filhos gêmeos. “Nossa relação é intensa e única; difícil de ser comparada a qualquer outra em minha vida”, diz Ângela. Ela e a irmã compartilham atividades e preferências: estudam e trabalham juntas, gostam das mesmas roupas e têm os mesmos hábitos alimentares. “O risco de isolamento é real; essa convivência intensa pode, muitas vezes, eliminar o interesse em relações com outras pessoas”, explica. Os eventos promovidos pela associação são oportunidades para troca de informações com pessoas em condições semelhantes. Ambientes herméticos, muitas vezes estimulados pela família, trazem dificuldades mais tarde. “Pode acontecer de os pais reforçarem o isolamento, seja por acreditar que gêmeos não devem ser separados, seja pela comodidade de ter as crianças brincando juntas”, diz Brustia.
SIMBIOSE AMEAÇADA
Dinâmicas familiares corriqueiras podem se tornar complexas. Um exemplo é a ligação simbiótica necessária entre mãe e filho, fundamental para a constituição do self, comprometida pela presença do outro bebê, constantemente também à espera de atenção. “Para a mãe é difícil agradar apenas a uma das crianças; enquanto frusta a outra, deixando-a esperar por seus cuidados, até o contato visual é menos frequente e mais fragmentado, o que leva muitas mulheres a se sentir em falta com seus bebês”, explica Brustia. Ao mesmo tempo, a presença de gêmeos quase sempre leva a um maior envolvimento do pai, muitas vezes fascinado pela fantasia da superpotência na concepção de duas crianças. Além disso, ao envolver-se nos cuidados, o homem se sente menos excluído da relação dual entre mãe e filho. “Em geral, apesar do atordoamento inicial, o nascimento de gêmeos é recebido como um privilégio.”
A psicóloga enfatiza, contudo, a necessidade de procedimentos que estimulem o desenvolvimento autônomo das crianças. “A distinção precisa começar durante a gravidez: a futura mãe deve evitar pensar em seus filhos como ‘os gêmeos,’ e considerar cada um separadamente.” Segundo ela, a diferenciação tem de ser mantida durante todo o processo de desenvolvimento das crianças. “A família não deve ceder ao desejo de formar uma ‘duplinha idêntica’, com roupas iguais e o mesmo corte de cabelo, por exemplo.” A escolha de brinquedos e, mais tarde, de escolas, também deve levar em conta os interesses de cada criança, nem sempre coincidentes. É importante criar oportunidades para que os irmãos se envolvam, cada um por si, em atividades diversas.
Nos casos em que as crianças são tratadas quase como clones, a separação tem de ser feita com cautela, para não interferir no desejo dos irmãos de brincar ou estudar juntos. Segundo a psicóloga, as duplas costumam responder bem à separação; mesmo assim, as escolas devem incentivar esse processo de forma gradativa, inserindo cada irmão em novos grupos. Nesse relacionamento, é comum que a curiosidade dos colegas torne os gêmeos mais requisitados. “É quando podem brincar com a turma, trocando de identidade sem ser notados.”
CÓDIGO SECRETO
Muitas crianças gêmeas adotam a criptofasia, isto é, criam códigos de comunicação exclusivos. Essa linguagem é expressa por meio de gestos, sussurros, silêncios, palavras inventadas, expressões comuns que assumem sentidos diversos. Muitas vezes essa cumplicidade se estende à fase adulta. Estudos mostram que a maioria dos gêmeos cria uma forma secreta de conversação em algum momento da vida. “Alguns pais e professores se incomodam com a situação, sentindo-se mais distanciados da dupla” afirma Brustia. Segundo ela, tais códigos ricos em expressões aparentemente desconexas – mas cheios de significados ocultos – surgem em crianças com idades entre 2 e 4 anos. Trata-se de uma forma de comunicação espontânea, que valoriza a simbiose gemelar, mas pode comprometer compreensões linguísticas e sociais. Embora revele cumplicidade, a criptofasia pode restringir outros contatos. Para não comprometer o desenvolvimento linguístico, os pais devem estimular a comunicação individual.
PASSIVO E DOMINANTE
A psicóloga Serena Lecce, professora da Universidade de Pavia desenvolve pesquisas com crianças desde o início da fase escolar com o objetivo de identificar o grau de autonomia nas relações entre irmãos (gêmeos ou não) e colegas. Ela já constatou que os univitelinos tendem a ter menos amigos e parecem aproveitar pequenas diferenças entre si de modo hierárquico, estabelecendo papéis a serem desempenhados por cada um. Estudos semelhantes realizados pela psicóloga Marta Bassi, professora da Universidade de Milão, indicam que pode surgir um tipo de identidade de dupla com atuações complementares entre os irmãos. Paralelamente, cada um desenvolve a própria percepção das situações, constituindo sua individualidade. Bassi também investiga a evolução do relacionamento entre gêmeos durante a adolescência. “Embora menos intensas que na infância, as trocas nessa fase revelam vínculos alicerçados no cotidiano compartilhado”, diz.
O psicólogo francês René Zazzo (1910-1995) classificou o fenômeno como “paradoxo gemelar”, referindo-se ao fato de indivíduos tão próximos e cúmplices desenvolverem, ao mesmo tempo, personalidades distintas e muitas vezes, conflitantes.
Numa dupla de gêmeos é comum haver o dominante e o passivo. O primeiro se responsabiliza pelo contato com as pessoas, enquanto o outro cuida da relação da dupla, mostrando-se mais tolerante e dependente da aprovação do outro. Essa diferenciação parece menor entre bivitelinos, capazes de construir vínculos mais equilibrados, menos hierárquicos. Alguns pesquisadores investigam se o contraste no comportamento de gêmeos idênticos poderia interferir na construção de relacionamentos afetivos.
Para as irmãs Ângela e Marina não é fácil estabelecer relações estáveis fora da dupla. “Talvez por não experimentarmos a carência que leva as pessoas a procurar um companheiro. Quem é gêmeo dificilmente se sente sozinho, mesmo em momentos difíceis”, diz Ângela. Ela lembra ainda a necessidade de compreensão por parte da terceira pessoa. “Quem se relaciona com um gêmeo deve aceitar, racional e emocionalmente, uma espécie de relação a três que pode ser trabalhosa.”
As pesquisas de Brustia identificaram vários casos em que os gêmeos evitavam envolvimento afetivo, com receio de que uma nova união comprometesse o relacionamento com o irmão. Não é raro o casamento entre duplas de gêmeos.
Uma maneira de buscar a própria identidade, mas sem se desligar da cumplicidade mais arcaica.

ETERNA LUTA ENTRE O BEM E O MAL
Na ficção, enredos que envolvem gêmeos fisicamente idênticos, mas com personalidades opostas e conflitantes, são bastante comuns. Segundo esses enredos, um sempre é o exemplo da bondade e da perfeição e outro, pérfido e invejoso. As telenovelas já exploraram esse argumento inúmeras vezes. O caso mais recente é o das irmãs Paula e Taís, interpretadas por Alessandra Negrini, em Paraíso Tropical, de Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Outros pares também se tornaram famosos na telinha: em 1981 foi a vez de Quinzinho e João Victor, vividos por Toni Ramos em Baila comigo, de Manoel Carlos; Ruth e Raquel, em Mulheres de areia, de lvani Ribeiro, interpretadas por Eva Wilma em 1973 e, 20 anos depois, por Glória Pires. Em 1988 o ator britânico Jeremy lrons protagonizou os irmã os Mantle em Gêmeos, mórbida semelhança, de David Cronenberg. Os personagens, dois ginecologistas de sucesso, passam por um processo de enlouquecimento. O fenômeno, conhecido como “perturbação psicótica partilhada”, envolve duas pessoas da mesma família com os mesmos interesses e modos de vida. Em geral, um deles desenvolve a perturbação primária e induz o outro, mais suscetível, ao distúrbio. A literatura também tem bons exemplos de histórias de gêmeos. Em Dois irmãos, prêmio Jabuti de melhor romance em 2001, o escritor amazonense Milton Hatoum mostra as diferenças entre Omar, boêmio e mimado, e Yaqub, um engenheiro conservador. No clássico Esaú e Jacó, de 1904, Machado de Assis inspira-se na passagem bíblica sobre a rivalidade entre irmãos para contar a história dos gêmeos Pedro e Paulo.
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