MOVIMENTOS EM DESORDEM
A ataxia é um conjunto de sintomas causados pela degeneração de neurônios do cerebelo, da medula e dos nervos periféricos; avanços da pesquisa genética revelam esperanças de cura
De início um tropeço sem grandes consequências, depois desequilíbrios e quedas frequentes, sem falar na estranha dificuldade para executar movimentos automáticos, como descascar uma fruta, manipular os talheres, andar de bicicleta, dirigir o carro. Ações cotidianas, que em geral realizamos sem nos dar conta, são comprometidas pelos primeiros sintomas das ataxias, distúrbios que podem ter origens diversas, mas guardam em comum a lesão de neurônios do cerebelo, da medula espinhal e dos nervos periféricos. Sem eles a comunicação entre o cérebro e os músculos fica deficiente e desordenada.
A palavra “ataxia” vem do grego ataxis e significa falta de coordenação. Caracterizada por falta de equilíbrio e dificuldade para realizar movimentos voluntários (o que inclui andar, falar e deglutir), não é propriamente uma doença, mas um conjunto de sintomas resultantes da degeneração de neurônios, que pode estar associada a um grande número de patologias e situações. Estima-se que duas em cada 100 mil pessoas do mundo sofram com alguma forma de ataxia; o distúrbio atinge igualmente homens e mulheres.
As ataxias adquiridas podem ter causas diversas, como trauma craniano, abuso de drogas, deficiência de vitaminas, degeneração cerebelar, lesão na medula espinhal, nos nervos periféricos ou em ambos. Mais comuns, porém, são as ataxias hereditárias, cujos sintomas costumam se agravar com os anos, principalmente se o paciente não tiver acesso a terapias complementares como fonoaudiologia e fisioterapia. Na última década, os avanços dos estudos sobre genética têm renovado a esperança de pacientes com ataxias hereditárias, famílias e médicos.
Ataxias se dividem em quatro grupos, dependendo de onde ocorre a mutação genética. No caso das autossômicas dominantes, basta herdar um dos alelos de um gene com a mutação (do pai ou da mãe) para desenvolver o distúrbio, as autossômicas recessivas é preciso receber os dois alelos do mesmo gene. Jáas ataxias ligadas ao cromossomo X e mitocondrial, em que a mutação está presente no DNA mitocondrialsão raríssimas.
A maioria das ataxias autossômicas dominantes pertence a um grupo de doenças genéticas neurodegenerativas chamadas ataxias espinocerebelares, caracterizadas pela perda progressiva de neurônios do cerebelo – estrutura que mais parece um cérebro, localizada junto do tronco cerebral, à altura da nuca.
No Brasil, a mais prevalente é a do tipo 3, também conhecida como ataxia de Machado-Joseph, cuja mutação genética se encontra no cromossomo14. As alterações iniciais incluem problemas de equilíbrio e de coordenação motora, com comprometimento de braços e pernas. Dificuldades de articulação da fala tornam a voz pastosa, motivo pelo qual muitos pacientes são discriminados, pois as pessoas tendem a julgá-los embriagados. Para compensar a falta de equilíbrio, a marcha adquire ritmo característico, com os pés afastados. Em alguns casos são observados movimentos oculares anormais e problemas de deglutição. Os primeiros sinais costumam aparecer entre 25 e 55 anos.
Na forma recessiva do distúrbio os sintomas são mais variados dependendo da alteração genética envolvida. O tipo mais frequente é a ataxia de Friedreich, que é também a forma de ataxia mais comum no mundo. Os sintomas geralmente têm início antes dos 25 anos e incluem diminuição dos reflexos nos membros inferiores, dificuldade de localizar pés e mãos no espaço, curvatura anormal da espinha dorsal (cifoscoliose), cavidade alta nos pés (pés cavus). Além disso, cardiopatias, diabetes e incontinência urinária são comuns nesses pacientes à medida que a doença progride.
FILHOS E NETOS
já foram identificadas cerca de 30 mutações genéticas associadas a diferentes formas de ataxia espinocerebelar. O que se observa em muitas delas é uma repetição excessiva de determinada sequência de nucleotídeos que pode variar de um tipo para o outro. Essas repetições anormais podem aumentar de uma geração para outra, fenômeno que os especialistas chamam de antecipação e que leva a manifestações mais graves e mais precoces da doença nos descendentes.
Na ataxia de Friedreich, a mais estudada até hoje, há um excesso da sequência guanina-adenina-adenina (GAA) nos dois alelos do gene FRDA, envolvido no processo de codificação de uma proteína chamada frataxina e localizado no cromossomo 9. A frataxina participa da regulação do aporte de íons ferro no metabolismo das mitocôndrias, estruturas responsáveis pela respiração celular. Com o gene FRDA defeituoso e logo, a síntese de frataxina comprometida, as mitocôndrias absorvem ferro demais, o que leva à produção exagerada de radicais livres que por fim matam a célula. Por um desses mistérios que a genômica ainda não desvendou, as células mais afetadas são as do cerebelo e as da medula espinhal.
Não é fácil distinguir clinicamente as várias formas de ataxia, daí a importância dos testes genéticos, especialmente quando o histórico familiar sugere o padrão dominante da doença. O diagnóstico da ataxia de Friedreich é mais específico: por meio de técnicas moleculares pesquisa-se diretamente o gene da frataxina em busca do excesso de cópias do trinucleotídeo GAA. Esses testes são fundamentais não apenas para a intervenção clínica precoce, mas também para o aconselhamento genético dos pacientes que desejam ter filhos. Nas ataxias autossômicas dominantes, o risco de uma criança nascer com o mesmo problema é de 50%. Quando um casal tem um descendente afetado por uma ataxia recessiva, como a de Friedreich, o risco de o problema se repetir na próxima gravidez é de 25%.
A probabilidade de uma pessoa com Friedreich ter filhos ou netos com o mesmo problema depende da constituição genética do parceiro. Se a esposa ou o marido saudável não tiver em seu DNA nenhum gene recessivo para essa característica (que faz transmitir, mas não apresentar a doença), o filho não desenvolverá a ataxia, mas pode passar essa configuração genética para os próprios filhos. Se a terceira geração vai ou não desenvolver os sintomas mais uma vez dependerá da herança que receber de seu outro genitor. Estudos desenvolvidos no Brasil e no exterior têm apresentado resultados importantes. Trabalho publicado em 2006 na Nature Chemical Biology por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Scripps em La Jolla, Califórnia, alcançou resultados animadores ao conseguir reativar o gene da frataxina em cultura de células extraídas de portadores do distúrbio. Se reativar genes é um dos caminhos possíveis, o contrário, isto é, o silenciamento genético, parece ser uma alternativa ainda mais interessante, principalmente depois que os cientistas americanos Andrew Fire, da Universidade Stanford, e Craig Mello, da Universidade de Massachusetts, receberam o Prêmio Nobel de Medicina em 2006. Eles desenvolveram uma técnica conhecida como interferência de RNA, com a qual conseguiram inibir o funcionamento de genes defeituosos. Os experimentos realizados em nematóides, um tipo de verme, oferecem uma informação importante: nas gerações sequentes também se verifica a inibição dos genes defeituosos.
A interferência de RNA abre boas perspectivas não só para o tratamento e prevenção das ataxias hereditárias, mas para uma série de outras doenças genéticas. “É algo promissor, mas ainda não pode ser aplicado imediatamente”, adverte a médica lscia Lopes Mendes, chefe do departamento de genética médica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo ela, muitas pesquisas sobre ataxia têm sido feitas no Brasil. A especialista destaca o trabalho do neurologista Marconde Cavalcanti França Jr., um dos premiados no Congresso Anual da Academia Americana de Neurologia, em Boston. França Jr. usou técnicas de imageamento cerebral, entre elas a espectroscopia de prótons por ressonância magnética, em pacientes com ataxia de Friedreich.
Os resultados mostraram que também o cérebro pode ser comprometido pela doença, pois até então se acreditava que as lesões ocorressem apenas no cerebelo, na medula e nos nervos periféricos. Isso explica as sequelas cognitivas observadas em alguns pacientes.
Um novo tipo de ataxia espinocerebelar, chamada tipo 10 foi observado no Brasil em 2004. Inicialmente descoberto no México três anos antes, o distúrbio foi identificado em dez famílias brasileiras pelo neurologista Hélio Teive, coordenador do setor de distúrbios do movimento da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “As características são semelhantes às da ataxia de Machado – Joseph, porém mais brandas”, diz o médico, que atualmente acompanha 60 pacientes com o problema além de outras 160 famílias com casos de ataxias hereditárias dominantes.
GRUPOS DE APOIO
Na falta de ferramentas que, pelo menos por enquanto, atuem diretamente nas causas das ataxias hereditárias, o tratamento baseia-se em medicamentos para aliviar outros sintomas, como câimbras e distúrbios de sono, e em suplementos nutricionais, como a coenzima Q 10, um tipo de vitamina importante para o metabolismo muscular encontrada em níveis mais baixos em pacientes com ataxia de Freidreich.
Os médicos ressaltam que outro aspecto importante é o apoio fornecido aos pacientes por meio de grupos de portadores, como a Associação Brasileira de Ataxias Hereditárias e Adquiridas (Abahe). “Como é uma doença ainda pouco conhecida pela maioria das pessoas é preciso que os pacientes participem dessas associações – para que a ataxia saia do limbo – para acompanhar as novidades sobre pesquisa nessa área, se adaptar às restrições impostas pela doença e melhorar a qualidade de vida”, afirma o médico Orlando Barsottini, chefe do setor de neurologia da Unifesp, que participa das atividades da Abahe e incentiva seus pacientes a fazer o mesmo.
“De fato, a falta de informações sobre os sintomas agrava as dificuldades dos portadores e fomenta preconceitos”, comenta Priscila Fonseca, 30 anos, diagnosticada com ataxia aos 25, vice-presidente da Abahe e organizadora do blog Ataxia Brasil. “Depois de descobrir o problema o paciente costuma passar por três fases: primeiro nega, depois acaba aceitando; em seguida vem a fase em que luta ou se entrega.” Segundo ela, o trabalho na Abahe é fundamental porque a impede de se prender às limitações impostas pela doença.
TIPOS DE ATAXIA HEREDITÁRIA AUTOSSÔMICA
MAESTRO DOS MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS
Ele tem apenas 10% do tamanho do cérebro, mas contém o equivalente à metade dos neurônios deste. Subestimado por décadas, o cerebelo (do latim, pequeno cérebro) começa a conquistar o status que merece nas neurociências. Essa estrutura localizada na parte inferior e posterior do encéfalo, adjacente ao tronco cerebral, tem papel decisivo na integração de processos sensoriais e motores. Muitos circuitos neurais cerebelares funcionam como estação de processamento de sinais que partem do córtex motor com destino aos músculos via medula espinhal. Ao integrar esses circuitos, o cerebelo promove um ajuste fino dos movimentos com base no constante feedback sobre a posição do corpo, que tem origem nos sistemas vestibular e proprioceptivo. Mas a prova da importância dessa espécie de regente dos movimentos voluntários está no fato de a mais leve lesão de sua estrutura resultar em consequências graves para os indivíduos, quase sempre incapacitantes, como as ataxias.
Mais recentemente os neurocientistas vêmreconhecendo o papel do cerebelo para o aprendizado motor e a memória, embora não se compreenda muito bem de que modo essa estrutura se comunica com estruturas reconhecidamente envolvidas nos processos mnemônicos, entre eles o hipocampo. Alguns estudos mostram que a frequência e a amplitude de movimentos aprendidos (por exemplo, dirigir, digitar ou dançar) são codificados no cerebelo. Além disso, técnicas de imageamento cerebral estão ajudando os pesquisadores a identificar outras funções cognitivas que podem ser atribuídas, pelo menos em parte, a essa estrutura encontrada, em versões mais primitivas, nos primeiros vertebrados que habitaram a Terra.
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