SERVOS OU SENHORES?
Há cem anos, um dramaturgo tcheco criava o termo robô. Desde então, ele atiça a criatividade e o temor da humanidade

“Escute, Josef”, disse o dramaturgo tcheco Karel Capek a seu irmão, “tive uma ideia para uma peça.”
Josef, um artista de certo renome, pintava furiosamente e não ficou impressionado com a intromissão do irmão. “Que tipo de peça?”, perguntou rispidamente. Karel explicou a trama. No futuro, os seres humanos inventariam criaturas sintéticas, humanoides, para aumentar a produtividade nas fábricas e lutar nas guerras. Construídas como trabalhadores escravos, elas acabarão se rebelando e eliminando a raça humana. Josef ficou indiferente diante da ideia. “Então a escreva!”, ele disse. Mas Karel estava emperrado. Não conseguia encontrar uma palavra adequada para descrever seus trabalhadores artificiais. “Chame-os de “roboti”, disse Josef. Era a palavra tcheca para “servo” ou “trabalhador forçado”.
Karel decidiu que a palavra “robô” se encaixava perfeitamente. A peça Os Robôs Universais de Rossum (RUR) estreou em Praga em janeiro de 1921. A conversa com seu irmão foi contada por Karel Capek em um jornal alguns anos depois, refletindo como ele apresentou a palavra “robô” ao mundo há exatamente cem anos.
A peça foi um sucesso. Uma obra original de ficção científica, ela inspirava-se nos temores do início do século XX sobre o papel da tecnologia no movimento em favor da produção em massa depois da Primeira Guerra Mundial. A visão ousada e temível de RUR, de um futuro em que a humanidade é ameaçada pelos robôs, causou sensação.
Kara Reilly é professora, dramaturga e autora de Automata and Mimesis on the Stage of Theatre History (Autômatos e Imitações no Palco da História do Teatro). No livro, ela diz: “Todo mundo na plateia conhecia alguém que morreu em consequência da guerra, e a ideia de robôs substituírem os soldados devia ser fascinante. Com o uso de tanques, dirigíveis e imagens fotográficas, a Primeira Guerra Mundial foi uma vitrine para tecnologias emergentes. Tornou as pessoas subitamente cientes da possibilidade muito real de destruição da raça humana por suas próprias criações baseadas em máquinas”.
Os robôs de Capek aprofundaram a discussão sobre se a tecnologia poderia libertar os trabalhadores e erradicar o trabalho manual. Como Reilly comenta, “esses escravos têm o potencial de transformar o mundo em um paraíso para os seres humanos. Em parte, RUR interroga e satiriza aquela luta modernista entre capital e mão de obra para forjar um paraíso dos trabalhadores”.
A primeira tradução em inglês chegou à Broadway em 1922, com o ator Spencer Tracy. Um ano depois, era apresentada no West End de Londres, no Teatro St. Martin, e um crítico da revista Pall Mall Gazette comentou: “Os robôs tornam-se bastante assustadores com seus rostos sem expressão e gestos automatizados. Ao sairmos, os pobres robôs sem alma parecem nos cercar: na rua, na escada do metrô, no trem. Efeito curioso. Poderia ser verdade?”
E RUR era ao mesmo tempo cativante e aterrorizante para o público. Em 1927, foi a primeira peça completa transmitida pela BBC e, mais tarde, em 1938, tornou-se a primeira peça de ficção científica televisionada, quando um programa de meia hora foi ao ar ao vivo pela mesma BBC.
“Eu acho que as ideias de RUR continuaram influenciando a cultura da ficção científica, mesmo em um nível subconsciente”, diz o autor premiado e campeão de vendas de ficção científica Stephen Baxter. “Os robôs de Capek rebelaram-se, como fizeram os robôs desde então, do Exterminador aos Simpsons”.
Baxter prossegue: “Hoje, pensamos mais em inteligências artificiais possivelmente sem corpo, mais que em humanoides, mas os dilemas morais são os mesmos. Como se controlam os robôs? Não acredito que Capek tenha pensado nisso tudo conscientemente, mas ele nos deu uma fábula, quase uma parábola bíblica, que nos permite explorar essas questões. Cunhar a palavra ‘robô’ foi uma ideia nova para explorar na ficção e na própria ciência”.
Enquanto a invenção do “robô” por Capek se mostrou cultural e cientificamente importante, a popularidade de RUR esvaneceu, e hoje a peça é quase desconhecida. Caitriona McLaughlin é uma diretora de teatro irlandesa que dirigiu a produção de RUR do Teatro Jovem Nacional da Irlanda, no Abbey Theatre em Dublin, em 2017. “Eu procurava uma peça que tentasse articular quem somos como espécie e que tipo de código moral queremos definir para nós”, analisa. “RUR usava alguns temas muito contemporâneos aos quais eu sabia que um jovem elenco reagiria, em particular a super dependência da tecnologia.” O tema de rebelião e revolta também forneceu um fundo cultural importante para a produção. “Trabalhamos na peça em meio a uma série de comemorações centenárias marcando a Revolta da Páscoa na Irlanda e a iminente formação do Estado irlandês, por isso ela parecia estranhamente apropriada.”
Mas, como descobriu McLaughlin, interpretar uma peça de ficção científica de um século para um público do século XXI encerra seus próprios desafios. “O texto em si era um pouco datado e precisávamos encontrar maneira de construir uma visão do futuro criada no passado que ainda parecesse o futuro atual.”
Os robôs trabalhadores humanoides de Capek e o cenário de uma ilha futurista dão aos artistas e diretores a oportunidade de montar diferentes desenhos de palco. “Nossos cenaristas e figurinistas criaram um mundo que era satisfatoriamente retrô, mas ainda sobrenatural o suficiente para sustentar a produção”, diz McLaughlin. “O conceito geral do design tornou-se a lente através da qual pudemos explorar algumas questões muito essenciais sobre a humanidade.”
É fácil ver como RUR influenciou a narrativa da ficção científica, dos androides de Philip K. Dick sonhando com carneiros elétricos ao Exterminador em perpétuo retorno de Arnold Schwarzenegger. Há até um musical de rock no estilo Rocky Horror Picture Show inspirado em RUR. Rob Susman, criador de Save the Robots, diz: “Foi uma peça que li na escola e sempre ficou comigo”. Embora, como indica o coautor Jacques Lamarre, a breguice explícita não estivesse necessariamente aparente no original de Capek: “Nossa versão vai um pouco além, fazendo os cientistas usarem couro e calcinhas”.
RUR também fez parte da carreira florescente de um ícone do cinema britânico. Em 1986, Michael Caine participou do programa de entrevistas de Terry Wogan e contou que seu pai, um peixeiro, lhe havia aconselhado: “Nunca faça um trabalho no qual você possa ser substituído por uma máquina”. (pausa) Então eu me tornei ator (risos). E na primeira peça que fiz interpretei um robô (mais risos). Muito esotérica na sociedade teatral amadora, era uma peça chamada Robôs Universais de Rossum, RUR. Um crítico da South London Press disse: “Caine estava muito convincente como robô”.
Para comemorar o centenário de RUR, um projeto sediado em Praga, The Aitre, fará uma apresentação ao vivo da primeira peça escrita por robôs. Estará disponível gratuitamente em 26 de fevereiro. The Aitre é uma colaboração entre programadores de IA, pesquisadores e representantes do teatro, que fazem as perguntas: Você acha que a inteligência artificial é capaz de criar um roteiro de teatro? Ela é capaz de criar uma peça sobre seu próprio pai, Karel Capek, que escreveu sobre robôs cem anos atrás?
Rudolf Rosa, um especialista em psicologia de robôs na Universidade Carlos, em Praga, que usa o apelido de RUR desde o seu tempo de escola, foi convidado a chefiar o projeto. Tecnicamente, não serão robôs a escrever a peça, pois, como Rosa explicou em uma entrevista recente, “embora os robôs existam e sejam usados, ao contrário das ideias clássicas, eles não são muito inteligentes. A inteligência geralmente está escondida em outro lugar, em poderosos computadores e servidores em centros de dados. Os robôs são mais como bonecos”.
Os robôs de Capek atuaram mais como advertência do que como previsão. RUR nos pedia para imaginar até onde a busca incansável por progresso tecnológico poderia levar a humanidade. Hoje, cem anos depois, a humanidade, em sua maior parte, continua a controlar firmemente suas máquinas. Mas quem sabe, talvez no bicentenário de RUR, humanos e robôs estejam unidos na comemoração.

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