O PARADOXO
Até o momento, nada sugere que haja razão para pavor: ao que parece, as vacinas – as aprovadas para uso e as que estão em ensaio clínico – não ficarão obsoletas, nem deverão ter a eficácia afetada.

Assim como gente nasce, vírus mutam. O nascimento é uma condição fundamental aos seres humanos, assim como a mutação é intrínseca a ser vírus. Deixando de lado a questão existencial dos vírus, isto é, se são ou não são, o fato é que se não muta dentro de uma célula hospedeira, então não é vírus. A condição de mutar é determinada pela função existencial de um vírus: a de se replicar. Vírus mutam quando se replicam. Como a replicação é essencial para sua sobrevivência, e as mutações só ocorrem no processo de replicação, não há vírus que não mute.
Outra forma de apresentar o que disse acima é que vírussão parasitas de células, o que significa que eles dependem delas para se replicar. Logo. dependem de células para mutar. Uma questão é: células do quê ou de quem? No caso do sars-CoV-2, vírus causador da Covid-19, nós somos seus hospedeiros mais recentes. Como outros vírus, o sars CoV-2 é zoonótico: pulou espécies até chegar a nós. Se ele não está em nós, em nossas células, ele não se replica e não sofre mutações. Se ele está em nós, ele parasita nossas células, toma o controle dos mecanismos de transcrição e tradução genética para fabricar partes de si, reacoplá-las e produzir outros vírus. Estes não são exatamente cópias do original, e aqui está a grande sacada em relação aos vírus: ao contrário das bactérias, que se dividem e se clonam, como nossas células, os vírus fabricam cópias não idênticas ao original, ou seja, aquele primeiro vírus a entrar na célula. Essas cópias não são idênticas porque sofrem mutações no processo de replicação viral. A vasta maioria dessas mutações é aleatória e/ou confere desvantagens ao vírus – sendo por isso eliminadas -, ou são inócuas.
Contudo, há mutações que ocorrem de modo aleatório e que podem dar ao vírus certas vantagens. No caso do sars-CoV-2, tais mutações tendem a ocorrer na proteína spike, a espícula ou “coroa” do vírus. Essa proteína, encontrada em sua superfície, é a chave que abre a fechadura (o receptor ACE2) de nossas células. Se as mutações são tais que o encaixe da chave viral em nossas fechaduras se torna melhor, o vírus terá maior capacidade de infectar novas células. Há, também, a possibilidade de que as mutações na chave – o alvo principal de nosso sistema imune – modifiquem-na de tal modo que ela se torne menos reconhecível para nosso arsenal imunológico, ou mesmo que os anticorpos que atuam para neutralizar a chave e impedir que ela se encaixe na fechadura não mais sejam capazes de fazê-lo. Mutações com esse potencial devem sempre ser investigadas para saber se o vírus está se tornando mais transmissível. É o que os cientistas denominam de VUI – Variant Under Investigation, ou variante sob investigação. Uma variante é a versão do vírus que difere da que se utiliza para comparação, o vírus original, pois possui algumas mutações, ainda que não em quantidade suficiente para alterar o comportamento do vírus. Cepa é o termo que caracteriza um vírus que muito se desviou do original – fenotipicamente – devido ao acúmulo de muitas mutações.
Escrevi tudo isso para chegar à variante B.1.1.7, fonte de notícias e ansiedade mundo afora. Dentre as 23 mutações dessa variante, há pelo menos duas mutações sob investigação pelos motivos descritos acima. Ainda não se sabe se elas tornam o vírus, de fato, mais transmissível. Mas, na incerteza gerada pelo que é desconhecido em um momento em que os anseios por normalidade são aplacados pela perspectiva de imunização, muita gente se apavorou.
Todo o medo dos brasileiros sobre a variante britânica às vésperas das pandêmicas festas de fim de ano contrasta com seu descaso com a circulação do vírus nas cidades. As boas notícias sobre as vacinas não o justificam, pois já se sabe que elas serão inicialmente escassas no mundo e ainda mais no Brasil, em que a letargia do governo resultou num portfolio ainda diminuto de opções. “A variante! A variante pode produzir um supervírus!” (Não produz). “A variante pode tornar as medidas de proteção inócuas!” (Não pode). O vírus continua a ser imprevisível e letal? Sim.
“Ah, mas quer saber? Vai rolar uma superfesta na casa do fulano, eu já estou de saco cheio desse vírus, quero mais é me divertir!”
*** MÔNICA DE BOLLE – é pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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