ATAQUES E ESPERANÇAS
Mesmo sob fogo cerrado, a ciência tem mostrado seu valor e respondido à altura aos desafios impostos

O título contraditório deste artigo deve-se ao fato de estar ocorrendo atualmente uma desvalorização da ciência pelas declarações negacionistas dos governantes, não só no que concerne à pandemia, mas também às mudanças climáticas e a outros aspectos. Essa desvalorização também é observada pelos escassos recursos financeiros a ela destinados, como pode observar-se pelo Projeto de Lei Orçamentária de 2021 enviado ao Congresso, no qual os recursos previstos para investimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações serão de 2,7 bilhões de reais, 34% menores do que os de 2020, e menos de um terço do valor de uma década atrás.
Se, por um lado, o atual governo e a sua política econômica desprestigiam a ciência e, diante da pandemia, descreditam as recomendações provenientes das organizações sanitárias e científicas, por outro, a ciência tem sido a principal fonte de esperança da população brasileira, uma vez que esta comunidade científica tem se dedicado incansavelmente à busca e construção de informações confiáveis e na expressão das medidas preventivas e corretivas que precisam ser tomadas para conter o coronavírus.
Os dados da pesquisa realizada sobre “Percepção Pública em C&T no Brasil” (CGEE, 2019) apontavam, mesmo antes da pandemia, que os brasileiros têm uma visão otimista em relação à ciência. Os resultados mostraram que 73% dos entrevistados acham que C&T trazem só benefícios, ou mais benefícios que malefícios para a sociedade. O perfil da representação dos cientistas na cultura brasileira ao longo dos anos também foi positivo: eles são vistos principalmente como “pessoas inteligentes que fazem coisas úteis à humanidade” por 41% da amostra.
Ainda que essa percepção favorável à ciência anteceda à pandemia, podemos, contudo, no atual momento, acenar para uma recuperação da autoridade científica e da autoridade institucional da universidade enquanto locus de produção do conhecimento, ao menos no que se refere a grande parte da população brasileira e à mídia (nunca os cientistas tiveram tanto espaço para falar da ciência e usaram as redes sociais para divulgação científica). Depois de inúmeras críticas sofridas pelos cientistas e pelas universidades públicas e instituições de pesquisa, associadas, por sua vez, a cortes de investimentos, passa se a falar e a esperar muito da ciência. E ela tem respondido com resultados robustos.
Tenho abordado as condições de produção de conhecimento como condições cognitivas ou intrínsecas ao próprio processo (por exemplo, a acumulação de conhecimento na área, a existência de um paradigma hegemônico ou de teorias em competição) e como condições socioinstitucionais, até certo ponto externas a este processo (por exemplo, certas características do contexto econômico e político, políticas governamentais de apoio ou de restrição à produção, financiamento, criação de instituições). Se essas condições influenciam a produção de conhecimento, como explicar a intensa produção atual em todas as ciências, abordando e atendendo um problema emergencial, já que estamos vivenciando um momento de democracia rasurada, de hegemonia do liberalismo econômico e do quadro de escassez de recursos para ciência, tecnologia e educação com políticas de fomento restritivas?
Essas condições econômicas e políticas sinteticamente apontadas não favorecem a nossa produção científica, que, a despeito de tudo isso, tem se mostrado relevante, sobretudo pelas condições cognitivas e socioinstitucionais. Há um problema sanitário e social de grande repercussão e uma competência acumulada na ciência. Dada a “autonomia relativa” do sistema de ciência e tecnologia no tempo. Ao se considerar a variável tempo, pode-se adaptar aqui o Princípio de Continuidade de Mattedi (2017), usado para discutir catástrofes ambientais, e levar em conta o período pré-pandemia de arranjo institucional para CT & I. O princípio estabelece que existe uma relação de persistência entre as fases pré, trans e pós-impacto, ou seja, que as condições sociais observadas nos períodos trans e pós-impacto seriam uma propriedade emergente, embora mais complexa, das condições sociais existentes no período pré-impacto. Tanto a autonomia quanto a continuidade institucional são propriedade de instituições científicas que decorrem do tempo reivindicado pela ciência para produzir resultados em escalas temporais mais longas.
Cabe registrar, por exemplo, que novas tecnologias de vacinas que estão sendo utilizadas para a Covid-19 vêm sendo desenvolvidas há cerca de 18 anos. Além disso, essa competência acumulada se deve a políticas de fomento e de pós-graduação anteriores, que consolidaram nossa ciência, com correspondente atuação das universidades, sobretudo públicas, mas também pelos esforços das sociedades científicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que há 72 anos luta pela ciência, pela educação, meio ambiente, direitos sociais. Questões que, por sua vez, estão sempre inseridas na construção e consolidação da democracia.
Finalmente, a busca pela preservação da vida explicitou a importância da integração entre as ciências. Diante da pandemia que nos assola, pode afirmar-se que as ciências da saúde e biológicas estão na linha de frente dos diagnósticos e tratamentos, ao lado de áreas como matemática, computação e estatística, que ficam apoiando com projeções, modelos e dados, e das ciências humanas e sociais, que oferecem contribuições no que se refere aos seus impactos sociais e econômicos. O investimento no passado está garantindo a ciência no presente. Mas e o futuro? E se não houver investimento suficiente em ciência na atualidade? Não podemos esquecer que a pandemia trouxe uma evolução científica que vai ser importante para outras situações emergenciais. Precisamos proteger a ciência e garantir que esse desenvolvimento chegue às próximas gerações.
*** FERNANDA FONSECA SOBRAL – é professora aposentada de Sociologia na UnB e vice-presidente da SBPC.
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